Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2094/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. TÁVORA VITOR
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
EXERCÍCIO DA ACTIVIDADE INDUSTRIAL
Data do Acordão: 03/02/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 25.º N.º 1 E 62.º DA CONSTITUIÇÃO; ART. 335.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:

1) A Constituição da República e a Lei Ordinária protegem os cidadãos contra as agressões ambientais que possam perturbar o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono.
2) Em caso de colisão entre os direitos constitu-cionalmente garantidos da personalidade, no qual se insere o direito ao repouso e o de exercício de uma actividade industrial ou comercial os primeiros preva-lecem sobre este último.
3) A via correcta para a solução das questões de colisão de direitos fundamentais passa pela análise em concreto de cada caso peculiar; e só quando de todo não seja possível graduar em coexistência os direitos con-flituantes, é que haverá, como última ratio, que proce-der ao sacrifício de um deles.
4) Constituindo o caminho directo para a solução a cessação do ruído de uma cave onde funcione um estabe-lecimento de talho, a sua insonorização completa, torna-se necessário que esteja provado no processo a viabilidade prática dessa solução para que a mesma possa ser ordenada pelo Tribunal, sem o que uma ulte-rior execução de sentença da medida pode tornar-se numa impossibilidade de ordem prática.
5) Não resultando contudo da aresto impugnado que os RR. deverão encerrar o estabelecimento mas apenas fazer cessar os ruídos, os meios que podem conduzir a esse escopo são vários, neles se incluindo a medida de insonorização completa que a Ré pretendia ver decretada na sentença apelada e que, a ser viável, a todo o momento a apelante pode incrementar independentemente do aresto em causa.
Decisão Texto Integral:

1. RELATÓRIO.
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AA e mulher, BB, casados, ele professor e ela doméstica, resi-dentes na CC, em Viseu, por si e em representação de seus filhos menores, DD e EE, ambos solteiros e com aqueles residentes, vieram instaurar a presente acção sob forma de processo ordinário, contra a R., FF, com sede na GG, em Viseu, pedindo que a R. seja conde-nada a fazer cessar, de imediato, os ruídos incomodati-vos e violadores dos direitos de personalidade dos AA., consubstanciados nos ruídos provenientes dos equipamen-tos de frio, ruídos tipo sirene, ruídos provenientes do talho e ruídos de arrastar nos actos de carga e des-carga dos produtos, e a pagar aos AA. a indemnização pelos danos causados resultantes da sua actuação cujo montante se liquidará em execução de sentença.
Alegaram para tanto e em resumo, que a R. explora um estabelecimento de supermercado, instalado na frac-ção A (cave) do prédio denominado por HH, em Viseu, prédio esse no qual os AA. habitam juntamente com os seus filhos, numa fracção autónoma imediatamente superior a tal estabelecimento, identificada como fracção “ E “, correspondente ao r/ch esq. Frente. Desde 28 de Abril de 1998, a R. abriu ao público o referido estabeleci-mento, na laboração diária do qual utiliza diversos equipamentos, nomeadamente de frio, que produzem baru-lhos incomodativos pela sua grande intensidade, conti-nuidade e persistência que se propagam à residência dos AA.; desde tal data, os AA. vêm-se forçados a suportar diária e ininterruptamente (dia e noite) os barulhos provenientes dos equipamentos de frio, ruído tipo sirene, ruídos provenientes do talho, ruídos de "arras-tar “ provenientes de actos de descarga ao fazer desli-zar os produtos dos carros de distribuição para o supermercado; tais ruídos lesam o sossego e tranquili-dade dos AA., prejudicando o seu descanso, tendo já forçado a A. BB a socorrer-se de tra-ta-mento médico especializado.
Contestou a Ré invocando que tomou de arrendamento a fracção "A" do aludido prédio onde instalou o seu estabelecimento de minimercado, preocupando-se com todas as questões relacionadas com o ambiente; para tanto, instalou equipamentos especiais, procedeu ao isolamento do tecto do estabelecimento com um tecto falso em lã de rocha, sempre seguindo as indicações técnicas que os especialistas lhe haviam dado e munindo-se de equipamentos certificados, tendo assim conseguido valores de sons produzidos no estabeleci-mento inferiores aos níveis regulamentares; o ruído produzido pelos veículos no exterior, concretamente na rua de sentido descendente, produz um nível de ruído bem mais gravoso, sendo certo que igualmente as descar-gas de produtos para os estabelecimentos vizinhos pro-vocam idêntico ruído, factos que, sendo notórios, não coibi-ram os AA. de ali terem instalado a sua residência e de terem instaurado a presente acção com intenção maléfica, tendo já conseguido o encerramento do estabe-lecimento durante cerca de um mês, que se traduziu num prejuízo para a R. superior a um milhão de escudos.
Termina a R. pugnando pela improcedência da acção e pela condenação dos AA. como litigantes de má fé, em multa e indemnização à R., consistente esta no reem-bolso das despesas a que a má fé deu lugar, incluindo os honorários devidos ao mandatário, a apresentar a final.
No saneador conheceu-se da validade e regularidade da instância tendo sido especificados os factos prova-dos e elaborada a BI sofrendo posteriormente aditamen-tos.
Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sen-tença que julgou parcialmente procedente a presente acção e assim, condenou a Ré a fazer cessar, de ime-diato, os ruídos produzidos pelos diversos equi-pamentos utilizados pela R. na laboração diária do seu estabele-cimento, nomeadamente de frio, como arcas fri-goríficas, durante o período nocturno, este com-preen-dido entre as 22 horas da noite e as 8 horas da manhã; a fazer ces-sar, de imediato, os ruídos provenientes do talho durante 3 dos 6 dias de laboração semanal do estabele-cimento, e a fazer cessar, de ime-diato, os ruí-dos de arrastar nos actos de carga e des-carga dos pro-dutos também durante 3 dos mesmos 6 dias de laboração semanal do estabelecimento e ainda a pagar a título de indemni-zação pela perturbação do silêncio, sossego, descanso e sono dos AA., e pelo agravamento da sintoma-tologia de doença psiquiátrica de que padece a A. BB em virtude de tal perturbação, a quantia que se vier a liquidar em execu-ção de sentença.
Daí o presente recurso de apelação interposto pela Ré, a qual no termo da sua alegação apresentou as seguintes,

Conclusões.

1) O único elemento probatório credível no qual o tribunal “a quo” se baseou para fixar os valores dos níveis sonoros audíveis na habitação onde residem os Autores, foi o relatório pericial de fls. 100 e seguin-tes;
2) Com base em tal relatório pericial, deu o tribu-nal “a quo” como provado, sem que sobre o respec-tivo facto tivesse incidido qualquer reclamação, que o nível sonoro ou diferença a que se refere o nº 1 do Artigo 14º do Dec-Lei nº 251/87 de 24/06 verificado na habita-ção dos autores no período diurno é de 0 (zero) dB(A);
3) Nível sonoro este que no período nocturno se eleva a 5,8 dB(A) pelo simples facto de neste período o nível sonoro do chamado ruído de fundo baixar dos nor-mais 24,8 dB(A) diurnos para os 19,0 dB(A), tudo como melhor resulta do relatório de fls. 100 e seguintes que aqui se deixa por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4) De entre as fontes de produção do ruído particu-lar verificadas no estabelecimento da recorrente e identificadas nos pontos 2º, 7º, 8º, 9º e 10º da base instrutória e de acordo com as respostas à mesma confe-ridas, aquelas que vêm referenciados nos pontos 9º e 10º não se verificam no período nocturno e enquanto o estabele-cimento da recorrente se encontra encerrado.
5) A verificar-se o desligamento das arcas frigorí-ficas e demais equipamentos de frio, identifica-dos no ponto 2º da Base Instrutória, teríamos que sem-pre subsistiria na habitação dos AA. como perturbadora dos seus direitos da personalidade, todo o ruído de fundo cujo nível sonoro ascende a 19,0 dB (A) prove-niente do ruído da vizinhança, bater da porta do pré-dio, passos nas escadas do prédio e da circulação de viaturas.
6) Face aos verificados níveis sonoros resultantes concretamente do chamado ruído de fundo e atenta a doença de que padece a Autora mulher – doença do foro psiquiátrico com terapia ansiolítica e antidepressiva – que requereria o estabelecimento da respectiva residên-cia em local totalmente ausente de qualquer fonte pro-dutora de ruído, não é possível estabelecer qualquer nexo de causalidade entre o quase imperceptível nível sonoro de 5,8 dB(A) audíveis -durante o período noc-turno na sua residência e o alegado mas não comprovado agravamento de tal doença.
7) Pelo que não ficou demonstrada com absoluta cla-reza a obrigação de indemnizar nos termos em que a define o artº 563º do Código Civil.
8) Na sequência do acordo celebrado entre as par-tes, no âmbito da providência cautelar apensa e de acordo com a resposta dada ao quesito 18º da base ins-trutória, foi possível baixar o nível sonoro audível na habitação dos autores de 8,5 para 5,8 dB(A).
9) Por outro lado e de acordo com as respostas dadas aos pontos 14º a 17º da base instrutória, reali-zou a recorrente toda uma série de procedimentos ai referidos, nomeadamente, instalou equipamentos com motores incorporados e amortecedores anti-vibratórios; procedeu ao isolamento do tecto de tal estabelecimento com a instalação de um tecto falso; na instalação de tais equipamentos seguiu de perto todas as indicações técnicas dos especialistas, bem como se muniu de equipa-mentos devidamente certificados, em obediência a padrões comunitários, de forma a obter o resultado cuja produ-ção sonora se cifra em O (zero) dB(A) diurnos e nos quase imperceptíveis 5,8 dB(A) nocturnos.
10) Todo este esforço redundou em investimento con-siderado elevado, atentos quer os interesses mate-riais em jogo, quer, essencialmente, o respeito e a intransigente defesa dos direitos de personalidade de todas as pessoas que habitam o prédio, concretamente dos ora autores.
11) A revelar-se violador dos direitos de persona-lidade dos Autores, o nível sonoro audível no período nocturno na habitação dos Autores sempre será possível baixar o mesmo para o nível O (zero) dB(A), bastando que, para tanto e à imagem do alegado se tomem os ade-quados procedimentos.
12) Ou seja, e de acordo com o invocado princípio da proporcionalidade, atentos os conflitos de interesse em jogo e na prevalência dos direitos de personalidade, sempre poderia o Mmo. Juiz “a quo” construir uma medida concreta, alternativa à requerida para que fossem eli-minadas as fontes de produção do ruído produzidos no estabelecimento da recorrente e audível na habitação dos autores.
13) Sendo que, e para tanto, como aliás foi aven-tado na sentença recorrida, se poderia decretar uma mais eficaz insonorização do estabelecimento comercial ou outras que eventualmente se viessem a afigurar necessárias e suficientes,
14) Assim se dando total garantia à defesa dos interesses em jogo, quer o interesse patrimonial da recorrente quer os indisponíveis direitos de personali-dade dos Autores.
15) É que a não acontecer assim, seria a total der-rocada da estrutura económica da recorrente, assente no elevado investimento aplicado no estabelecimento em causa.
16) Foram assim violadas as normas dos Artigos 156º; 264º nº 1, 2 e 3, 661º, 663º e 664º, do CPC e Artigo 8º nº 3 e 563º, ambos do Código Civil, entre outros.
Contra-alegaram os apelados pugnando pela confirma-ção da sentença.
Cabe decidir.
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2. FUNDAMENTOS.
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O Tribunal deu como provados os seguintes,
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2.1. Factos.
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2.1.1. A R. explora um estabelecimento de supermer-cado, instalado na fracção "A" (cave), do pré-dio denominado por HH, em Viseu.
2.1.2. Na laboração diária daquele estabeleci-mento, a R. utiliza diversos equipamentos, nomeadamente de frio, como arcas frigoríficas.
2.1.3. Por escritura pública de constituição de propriedade horizontal, lavrada em 10.11.92, a fracção "A" do prédio em causa (cave) foi destinada a estabele-cimento comercial e a fracção E (rés-do-chão esquerdo frente) a habitação.
2.1.4. Por escritura celebrada em 24.10.97, a frac-ção A. foi dada de arrendamento à R., para exercí-cio do comércio de exploração de supermercado e activi-dades conexas – Cfr. certidão de fls. 75-81 da provi-dência em apenso.
2.1.5. Os AA. habitam a fracção autónoma imediata-mente superior ao estabelecimento referido em 1., iden-tificada como fracção E.
2.1.6. Com aqueles vivem os seus filhos e também AA., DD e EE, actualmente com 19 e 14 anos de idade, respectivamente.
2.1.7. Os equipamentos referidos em 2. produzem ruídos que se propagam à residência dos AA.
2.1.8. Tais ruídos são produzidos diariamente, quer de dia, quer de noite, desde 28.04.98.
2.1.9. Desde a data referida em 8. o citado estabe-lecimento produz ruídos provenientes do talho, derivados de pan-cadas, várias vezes ao dia, entre as 9 e as 20 horas.
2.1.10. E ruídos de "arrastar", provenientes de actos de descarga, com o deslizamento dos produtos desde os carros de distribuição para o interior do supermercado.
2.1.11. Todos estes ruídos perturbam o silêncio, o sossego, o descanso e o sono dos AA..
2.1.12. Tais perturbações agravaram a sintomatolo-gia de doença psiquiátrica de que padece a A. BB há já vários anos.
2.1.13. As fontes de ruído referidas em 9. e 10. e alguns dos equipamentos referidos em 2. ainda não foram desactivados.
2.1.14. A R. instalou no estabelecimento referido em 2. os equipamentos também ali referidos com motores incorporados e amortecedores anti vibratórios.
2.1.15. E procedeu ao isolamento do tecto de tal estabelecimento com a instalação de um tecto falso em lã de rocha.
2.1.16. Na instalação de tais equipamentos a R. seguiu de perto todas as indicações técnicas que os especialistas lhe tinham dado.
2.1.17. E muniu-se dos referidos equipamentos, estes certificados em obediência aos padrões comunitá-rios.
2.1.18. De acordo com as medições efectuadas em 01.09.1998 e 09.09.1998, no período nocturno, a dife-rença a que se refere o nº 1 do art. 14º do D.L. 251/87, de 24.06, foi de 8,5 dB(A) e de acordo com as medições efectuadas em 12.07.2000, 14.07.2000 e 06.09.2000, no período diurno, a diferença a que se refere o nº 1 do artº 14º do D.L. 251/87, de 24.06, foi de 0 dB(A) e, no período nocturno, foi de 5,8 dB(A), tendo contribuído para os níveis sonoros contínuos equivalentes corrigidos (Lar), no período diurno, as fontes de produção de ruídos referidas em 13., e, no período nocturno, os ruídos provenientes dos equipamen-tos referidos em 2., ainda não desactivados.
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2.2. O Direito.
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Tendo em linha de conta que nos termos do precei-tuado nos artsº 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal e conside-rando a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:
- A colisão de direitos fundamentais e o caso ver-tente. A solução adoptada.
- A responsabilidade civil da Ré.
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2.2.1. A colisão de direitos fundamentais e o caso vertente.
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A sentença apelada condenou a Ré na cessação dos ruídos produzidos pelo funcionamento nocturno das arcas frigoríficas sitas no estabelecimento e os ruídos pro-venientes do talho durante os 3 dias de laboração sema-nal para além de a condenar a indemnizar os AA. pela perturbação do sossego e descanso e pelo agravamento da sintomatologia da doença psiquiátrica de que sofre a Autora, indemnização essa a relegar para execução de sentença.
O aresto é impugnado pela Ré nas duas vertentes que ele comporta, referindo-se não ser de tomar qual-quer posição contra os alegados ruídos atenta a sua insignificância e por outro lado não se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil.
Adiantam ainda que a revelar-se violador dos direitos de personalidade dos AA. o nível sonoro audí-vel no período nocturno na habitação dos AA. sempre será possível baixar o mesmo para o nível 0 (zero dB(A) bastando que, para tanto se tomem os adequados procedi-mentos. Neste sentido e de acordo com o princípio da proporcionalidade, atentos os conflitos de interesses e perspectiva e na prevalência dos direitos de personali-dade sempre poderia o Tribunal a quo construir uma medida concreta à requerida para que fossem eliminadas as fontes de produção do ruído no estabelecimento da recorrente e audível na habitação dos AA….
Subjacente à sentença proferida, encontra-se à partida uma opção entre dois direitos constitucional-mente garantidos, a saber o direito de personalidade na sua vertente de integral manutenção da saúde física e psíquica dos AA. – artigo 25º nº 1 da Constituição da República – e por outro lado também o direito à inicia-tiva económica privada a que alude o artº 62º da mesma Lei Fundamental.
A globalização e massificação social dando causa à convivência em espaços cada vez mais exíguos, potencia a colisão de direitos protegidos pelo ordenamento jurí-dico, a qual é também facilitada, por seu turno, pelo labor doutrinário e jurisprudencial em ordem à amplia-ção do alcance dos direitos em causa. Os círculos de interesses protegidos por lei interceptam-se tornando-se pois necessário definir critérios de coexistência ou prevalência; um primeiro caminho de resolução destas antinomias efectiva-se através da compressão dos direi-tos em termos que se afigurem toleráveis; outra via de resolução passa pelo sacrifício de um dos direitos em conflito. É também nesta matéria que se faz sentir a necessidade das chamadas leis harmonizadoras vocaciona-das a solucionar este tipo de situações Cfr. mais desenvolvimentos in Vieira de Andrade "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976" Almedina, 2ª Edição, pags. 310 ss.. A esse escopo é entre nós intentado o artº 335º do Código Civil ao estatuir que: "1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito sem maior detrimento para quaisquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se supe-rior".
Na sequência da consagração do carácter inviolável da vida logo à cabeça dos direitos liberdades e garan-tias, em sede de Diploma Fundamental, é doutrina e jurisprudência assente que o direito ao repouso, à tranquilidade da vida familiar, à saúde e à qualidade de vida, são bens cimeiros do ordenamento jurídico, prevalecendo sobre quaisquer outros, nomeadamente os de natureza económica Cfr. na doutrina Gomes Canotilho e Vital Moreira "Fundamentos da Constituição" Coimbra Editora 1991, pags. 136 s e Rabindranath Capelo de Sousa "O Direito Geral de Personalidade", Coimbra Editora 1995, pags. 581 ss. José Gomes-Heras La Ecologia Nuevo Paradigma Hermenêutico in "Revista Portuguesa de Filosofia" Julho-Setembro de 2003 Volume 59, Fascículo 3, pag. 670 e Philosophie unter dem Paradigma der Öcologie em Kolb A., Ed Ökonomie, Ökologie, Ethic (Insbruck Vienna 1977, 17 ss.
Na Jurisprudência cfr. Acs. do S.T.J. de 13-3-1986 (P. 73 196) in Bol. do Min. da Just., 355, 356; de 6-5-1998 (P. 338/98) in Bol. do Min. da Just., 477, 406; de 9-1-1996 (P. 87 941) Col. de Jur., 1996, 1, 37; de 24-10-1995 (P. 87 187) in Bol. do Min. da Just., 450, 403; desta Relação de 15-2-2000 (R. 1249/98) in Col. de Jur., 2000, I, 23. da Rel. do Porto de 22-2-1999 (R. 9851525) in Bol. do Min. da Just., 484, 440; de 12-3-1996 (R. 9 520 883 in Bol. do Min. da Just., 455, 569; da Rel. de Lisboa de 27-2-1997 (R. 1582/6/95) in Col. de Jur., 1997, 1, 145; .
No entanto não é em abstracto que se encontra a via correcta para a solução das questões que surgem nesta sede, mas antes em concreto, face a cada caso pecu-liar, devendo tentar-se perante vários modos de exercí-cio espe-cífico dos direitos, encontrar a solução mais razoável e conforme aos direitos constitucionais consa-grados; e só quando de todo não seja possível gra-duar em coexis-tência os direitos conflituantes, é que haverá, como última ratio, que proceder ao sacrifício de um deles. Essencial é aqui que as medidas a tomar sejam orientadas pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, traduzindo-se o primeiro na adequada (proporção) entre os valores em análise, aquilatando em que medida é que o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro; o "princípio da razoabilidade" vedando o uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restri-tiva Cfr. Jorge Reis Novais "As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas na Constituição", Coimbra Editora, 2003, pags. 752 ss e 765 ss e J.J. Comes Canotilho, "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", Almedina, Coimbra, 5ª Edição pags. 1 299 ss.. A sentença apelada condenou além do mais os ape-lantes a fazer cessar, de imediato os ruídos produzidos pelos diversos equipamentos utilizados pela Ré na labo-ração diária do seu estabelecimento, nomeadamente de frio como arcas frigoríficas durante o período noc-turno, este compreendido entre as 22H00 da noite e as 8H00 da manhã.
O funcionamento do frio mostra-se indispen-sável à conservação dos produtos frescos como as carnes e por outro lado, a manipulação dos far-dos por via de regra pesados, neste ramo de actividade, produz sempre algum ruído. No entanto o local onde o estabelecimento está instalado, além de regularmente autorizado para o fim referido, foi já alvo de investimento substancial por parte da Ré a qual chegou a isolar par-cialmente o local com equipamento de insonorização, equipando a unidade com algumas máquinas de funciona-mento anti-vibratório. Esses materiais minoraram o ruído sem contudo o elimi-narem de todo; é bem certo que na sentença apelada se afirma que seria tecnicamente possível conseguir uma insono-rização completa preen-chendo de forma integral o escopo da presente acção com a coexistência dos direi-tos em conflito, bastando para tanto que sejam elimina-das as consequências nefastas provenientes da laboração do talho, nomeadamente ao nível sonoro, procedendo-se a um cabal isolamento acús-tico com material apropriado. Esta solução que se afi-gurava mais adequada ao Tribu-nal de 1ª instância, não foi adoptada na sentença por-que na óptica do aresto estar-se-ia a extravasar do pedido formulado na PI o qual se traduzia na cessação dos ruí-dos vindos do esta-belecimento; de outro modo, susten-tava-se, a sen-tença estaria a condenar em pedido dife-rente do formulado – come-tendo assim a nulidade a que se reporta o artº 668º nº 1 alínea e) do Código de Pro-cesso Civil. Este entendi-mento confinado todavia ao espartilho lite-ral da lei não se nos antolharia, com o devido respeito por opi-nião divergente, necessário nem adequado. No cerne do pedido dos AA. está a cessação dos ruídos, o que cons-titui o objecto da acção; os meios que conduzem àquela finali-dade poderão em teoria ser vários e o isolamento sonoro do estabeleci-mento poderá ser um deles. Só que há para nós um óbice de outra natureza quanto à inserção dessa medida na sen-tença; a decisão a pro-ferir no sentido apontado teria que contar com a certeza que a insonoriza-ção completa seria possível; tal matéria não foi ale-gada pela Ré na contestação nem objecto de prova, e tão pouco se encon-tra junto aos autos qualquer ele-mento que possa compro-var a viabilidade prática da medida proposta; e não se diga que uma eventual execução de sen-tença poderia tutelar con-venientemente os direitos dos AA.; é que, na verdade, em nosso entender não pode o Tribunal à par-tida conde-nar numa medida cuja viabili-dade executória na prática se desconhece, já que a condenação correria assim o risco de se converter numa impossibi-lidade prá-tica.
Contudo a intervenção do tribunal de recurso neste ponto não se nos antolha necessária no caso vertente; é que da análise da parte decisória da sentença apelada, não resulta que os RR. deverão encerrar o estabeleci-mento; apenas se fala ali em cessação de ruídos, sendo certo que os meios que podem conduzir a este escopo são vários, neles cabendo perfeitamente a medida adequada cuja construção a Ré solicitava a este Tribunal em alterna-tiva ao fecho do estabelecimento (aliás não ordenado, como vimos). Detentora dos conhecimentos que diz pos-suir, ninguém melhor do que a Ré poderá agora mobilizar os meios técnicos existentes em ordem à com-pleta inso-norização do estabelecimento que aliás acaba por con-fessar ser viável e assim não ter sido feita na sua totalidade.
É pois nesta medida, e com os esclarecimentos supra expendidos que face aos elementos dos autos e maxime à prova produzida, não nos resta outra solução que não seja a da confirmação da sentença sob o item em análise.
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2.2.2. A responsabilidade civil da Ré.
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A apelante insurge-se ainda contra a sentença na medida em que considerou o seu comportamento passível de responsabilidade civil condenando-a a indemnizar os AA. na importância que se venha a liquidar em execução de sen-tença.
O direito a um ambiente sadio assumido como funda-mental e consagrado constitucionalmente comporta duas vertentes: uma pública e outra privada Cfr. sobre esta perspectiva Vasco Pereira da Silva "Verde Cor de Direito" Lições de Direito do Ambiente, Almedina Coimbra, 2002, pags. 100 ss.; pública, na medida em que tal direito constitui uma estrutura objectiva da comunidade com princípios con-formadores da ordem jurídica, postulando deveres progra-máticos de actuação com vista a determinados fins. Mas para além disso, este direito projecta-se também na esfera pri-vada dos cidadãos, preenchendo e conformando determi-nado tipo de relações intersubjectivas com con-teúdos adequados aos novos esquemas da vida em socie-dade. É o que se passa desde logo com a disciplina jurídica das relações de vizinhança, até há pouco tempo objecto de tratamento quase exclusivo nas relações jurídico-reais e encarada apenas na perspectiva dos danos materiais nas habitações – artº 1 346º do Código Civil. A noção de vizinhança assume assim uma dimensão ecológica, des-materializando-se de certa forma e postu-lando exigên-cias a nível dos direitos de personali-dade.
Mas se assim é, bem se compreende que para além da protecção publicista do direito de ambiente, este seja passível da cobertura do direito civil na medida em que se privatizou, passando a assumir-se como um "direito subjectivo" na sua vertente de direito de personali-dade Acerca da responsabilidade civil conotada com danos ambientais cfr. Henrique Sousa Antunes "Ambiente e Responsabilidade Civil" in "Estudos do Direito de Ambiente" Publicações Universidade Católica, Porto, 2003, pags. 149 ss e José de Sousa Cunhal Sendim "Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos", Cadernos CEDOUA, Coimbra, Almedina. . Assim são pressupostos da obrigação de indemni-zar o facto imputável ao agente, respectiva ilicitude, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano. A existência de ruído é factor perturbador de um ambiente saudável nomeadamente ao nível da habitação hoje arvo-rada em local quase exclusivo de descanso e retempera-dor do equilíbrio físico e psíquico dos cidadãos. Mau grado a Ré tivesse tomado algumas medidas com vista a minorar os efeitos nocivos da laboração do seu equipa-mento a nível de ruído, certo é todavia que como aliás acaba por reconhecer, não se foi tão longe quanto o necessário no isolamento sonoro do estabelecimento, de molde a evitar que o arrastar de pesos, a produção de panca-das durante o dia e o contínuo e perturbador fun-ciona-mento do equipamento de frio durante a noite se viesse a repercutir negativamente no sossego e descanso dos AA. Tais factos tiveram consequências nefastas nomeada-mente na Autora que viu agravada em consequência dos mesmos a doença do foro psiquiátrico de que já padecia.
Diga-se por último que não é o facto de os níveis de ruído medidos em dB serem pouco significativos face aos Regulamentos aplicáveis – maxime DL 251/87 de 24 de Junho – não ultrapassando o limite de 10 dB a que alude o artº 14º nº 1 daquele Diploma, que constitui obstá-culo à responsabilidade da Ré; é que como tem sido entendido, o direito ao repouso e ao descanso pode ser ofendido mesmo que o nível sonoro do ruído seja infe-rior àquele valor e ainda que a actividade de onde resulta tenha sido autorizada administrativamente Cfr. os Acs. do STJ de 9/1/96, já citado e o da Rel Porto de 27/4/95 in CJ 1995, Tomo II, pag. 213..
Estão assim preenchidos por parte da Ré os pressu-postos da responsabilidade civil a que acima fizemos referência, o que é fonte da obrigação de indemnizar os AA., tal como foi decidido; e atenta a impossibilidade de quantificação imediata dos prejuízos causados, jus-tifica-se que a indemnização tivesse sido relegada para execução de sentença de harmonia com o pedido formu-lado.
A apelação improcede pois in toto embora com funda-mentação não coincidente com a da sentença ape-lada.

Poderá assim concluir-se o seguinte:

1) A Constituição da República e a Lei Ordinária protegem os cidadãos contra as agressões ambientais que possam perturbar o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono.
2) Em caso de colisão entre os direitos constitu-cionalmente garantidos da personalidade, no qual se insere o direito ao repouso e o de exercício de uma actividade industrial ou comercial os primeiros preva-lecem sobre este último.
3) A via correcta para a solução das questões de colisão de direitos fundamentais passa pela análise em concreto de cada caso peculiar; e só quando de todo não seja possível graduar em coexistência os direitos con-flituantes, é que haverá, como última ratio, que proce-der ao sacrifício de um deles.
4) Constituindo o caminho directo para a solução a cessação do ruído de uma cave onde funcione um estabe-lecimento de talho, a sua insonorização completa, torna-se necessário que esteja provado no processo a viabilidade prática dessa solução para que a mesma possa ser ordenada pelo Tribunal, sem o que uma ulte-rior execução de sentença da medida pode tornar-se numa impossibilidade de ordem prática.
5) Não resultando contudo da aresto impugnado que os RR. deverão encerrar o estabelecimento mas apenas fazer cessar os ruídos, os meios que podem conduzir a esse escopo são vários, neles se incluindo a medida de insonorização completa que a Ré pretendia ver decretada na sentença apelada e que, a ser viável, a todo o momento a apelante pode incrementar independentemente do aresto em causa.
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3. DECISÃO.
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Pelo exposto decide-se o seguinte:
- Julga-se a apelação improcedente confirmando-se a sentença apelada.
Custas pela Apelante.