Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
823/05.4TACBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: AMEAÇA
Data do Acordão: 01/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Legislação Nacional: ARTIGO 153º DO CP
Sumário: 1. No crime do artº 153º do CP não se exige que a ameaça provoque medo ou inquietação. Antes é mister que seja adequada a provocar um estado de temor ou medo capaz de limitar ou constranger, de forma reputada relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da pessoa visada. O futuro mal anunciado pelo sujeito activo há-de revelar-se apto para numa avaliação objectiva se configurar como condicionador da liberdade de determinação da pessoa alvo da ameaça e subjectivamente idóneo a inculcar na pessoa visada um estado de medo e inquietação constrangedora da sua normal e fluente forma de ser e agir. O facto injusto e ilícito anunciado e potencialmente gerador do estado de inquietação e factor de perturbação no visado prefigura-se, assim, dependente de um fazer assumido da parte do autor da ameaça e a ser decidido pela sua vontade.
2. A expressão “quem lhe vai f.. a vida vou ser eu”, já que a outra expressão contida na matéria de facto provada “você leva já um estalo” apenas se pode qualificar como constituindo o anúncio iminente de uma agressão física a concretizar no preciso momento em que a expressão é proferida. Esta última expressão só é compaginável como uma tentativa de uma ofensa à integridade física do assistente e não como anúncio ou manifestação de execução de um mal futuro como exige a norma incriminante.
3. A referida expressão de anúncio de um mal não contém a virtualidade ou potencialidade de influenciar negativamente o normal agir e estar de um cidadão e de lhe perturbar o seu quotidiano.
Decisão Texto Integral: Acordam, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.
I. – Relatório.
No processo supra epigrafado foi decidido julgar procedente a acusação que o Ministério Público havia deduzido contra o arguido A.., casado, advogado, nascido a 22.07.1946, filho de B.. e C.., natural de Esporões, Braga, residente na Rua do Carmo, nº 11 – 1º, Braga e, pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de ameaça, p. e p. pelo artº 153º, nº 1, do Código Penal, condená-lo na pena de noventa dias de multa à taxa diária de vinte euros, o que perfez o montante de mil e oitocentos euros, ou, subsidiariamente, nos termos do artigo 49º do mesmo código, sessenta dias de prisão; e ainda julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização deduzido por D..e, em consequência, condenar o demandado A.. no pagamento da quantia de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros) a título de danos morais, acrescida de juros à taxa legal em cada momento em vigor até efectivo e integral pagamento.
Em dissídio com o julgado traz o arguido o presente recurso que termina com a síntese conclusiva que a seguir se transcreve.
“B1: Uma vez que o processo chegou a tramitar na espécie especial “sumaríssima”, não se justificava que o Mmo. Juiz tanto se afastasse, a final, da proposta que o Mª Pª fizera ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal para aplicação, por consenso, da sanção. Isto quer em sede de medida da pena, na tributária, ou, mesmo, no que respeita a pretensão indemnizatória. Por outro lado,
B2: o julgamento teve o respectivo início na ausência do arguido, alegadamente ao abrigo do disposto no artigo 333º, nº 1, do Código de Processo Penal. Porém,
B3: por força de disposições constantes de instrumentos jurídicos internacionais vinculantes na ordem interna – e é o caso do no 3 do artigo 14º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 6º, nº 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 67º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, a despeito do disposto no nº 6 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa – norma constitucional inconstitucional – não pode haver lugar, sem mais, a julgamentos in absentia, razão pela qual deve considerar-se materialmente inconstitucional a regra do nº 1 do artigo 333º do Código de Processo Penal
B4: inconstitucionalidade da qual cumpria ao Mmo Juiz ter conhecido oficiosamente, nos termos do artigo 204º da Constituição da República Portuguesa. Por conseguinte,
B5: resultaram violados os mencionados comandos. Acresce que,
B6: é sabido que a advocacia goza das imunidades atribuídas pelos artigos 6º e 114º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, normas que constituem a densificação, ao nível do direito legislado, do disposto no artigo 208º da Constituição da República. Por conseguinte,
B7: o Mmo Juiz deveria ter sobrestado na realização do julgamento e ordenado a notificação da Ordem dos Advogados para que esta apreciasse, como questão prévia, do relevo da conduta do recorrente na sede deontológica. Ora,
B8: por assim não ter actuado e por desconsideração, resultaram violados os comandos acabados de referir.
B9: As expressões que o Mmo Juiz deu como provadas e que foram alegadamente proferidas pelo recorrente não percutem o elemento objectivo do crime do artigo 153º, nº 1 do Código penal, pelo que o recorrente deveria ter sido absolvido da prática do assinalado delito
B10: norma que, consequentemente, também foi violada pelo Senhor Juiz. Finalmente,
B11: Fica por compreender-se a razão pela qual a sentença recorrida desvalorizou em tão elevado grau os depoimentos das testemunhas abonatórias Dr. E..e Exmo. Juiz Conselheiro Jubilado Dr. F.., pelo que também por aqui mal andou, salvo o devido respeito o Mmo Juiz. Em suma:
B12: o julgamento dos autos deve ser anulado, com reenvio do processo para novo julgamento”.


Na comarca o Ministério Público pugna pela manutenção do julgado e nesta instância, em sagaz e munificente parecer, o Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto é de parecer que: “Antes de mais, convirá adiantar que o recurso não abrange a matéria de facto assente, como facilmente se conclui das conclusões da motivação de fls. 265 e contrariamente ao que parece pensar-se da realização da transcrição.
Não tendo impugnado a matéria de facto nos termos legais, o recurso por ele interposto só poderá ter por objecto matéria de facto no âmbito da revista alargado, e oficiosa, a que se reporta o nº 2 do artigo. 410.º do Código de Processo Penal. O mesmo é dizer que este Tribunal não pode apreciar a decisão de facto a não ser na medida em que «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum» resulte a existência de algum dos vícios elencados naquele nº 2 do citado artigo 410º do Código de Processo Penal.
Ora, analisada a esta luz a referida peça processual, não se vislumbra, manifestamente, a existência de nenhum dos enunciados vícios: a matéria considerada provada permite fundamentar a decisão jurídica, não existe contradição na fundamentação ou entre esta e a decisão, nem se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova.
4.2 – O que nos parece merecer melhor ponderação tem a ver com o problema de saber se as expressões constantes da matéria de facto, inseridas no contexto de uma discussão entre advogados por motivos relacionados com a defesa dos seus clientes numa questão de partilha de bens é ou não susceptível de integrar a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de ameaças subsumível à previsão do artigo 153º do Código Penal.
Na nossa óptica, temos sérias dúvidas em considerar que sim.
Quanto á primeira expressão: “ você leva já um estalo”
Não se anuncia a intenção de produzir um mal futuro ao dizer-se que leva já um estalo, sendo que o crime de ameaça do artigo 153º do Código Penal apenas se prevêem actos ou expressões susceptíveis de perturbar de seguida a tranquilidade e liberdade do ofendido.
Trata-se, isso sim, de um crime de ofensa á integridade física simples (artigo 143º do Código Penal), que, por ser tentado, nem é punível.
Quanto á outra expressão “quem lhe vai foder a vida vou ser eu”, trata-se, salvo melhor entendimento, de uma frase que, objectivamente considerada, nem tem carga suficientemente constrangedora ou inibitória, nem cremos que encerre em si, de forma minimamente credível, uma ameaça de um mal futuro dirigido ao assistente.
Ora, e como é sabido, para o preenchimento do tipo definido no artigo 153º do Código Penal é necessário, para além do mais, que a ameaça, na situação concreta, seja adequada a provocar medo ou inquietação ao visado.
E se é certo que o crime em causa, após a revisão de 1995 do Código Penal/82, deixou de ser um crime de resultado, para passar a ser um crime de mera acção e de perigo, não é menos certo também que não basta, em caso algum, a mera ameaça da prática de crime, exigindo-se ainda que essa ameaça, na situação concreta, seja adequada a provocar medo ou inquietação ao visado. Como escreve Taipa de Carvalho – “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo (pág. 348), «o critério de adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçado (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado)».
No caso em apreço, parece-nos que, a expressão usada não só não encerra em si de forma muito clara o anúncio de um mal futuro para o próprio assistente mas possivelmente para os interesses que este, como advogado, estava a defender. Ou seja: o ameaçado poderá ser mais o cliente que acompanhava o ofendido e que a tudo assistiu (e a quem o arguido disse que só não partiria a cara por respeito á sua idade) do que o próprio queixoso como cidadão.
Apesar de provado, temos dúvidas que esta expressão assuma foros de seriedade ou adequação, por forma a afectar ilicitamente a liberdade pessoal (de decisão e de acção) do visado. Com efeito, só é de reputar como adequada a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pela vítima.
No contexto da discussão – dois advogados que num “café” defendem os seus clientes – não cremos que alguém tenha levado muito a sério qualquer das expressões de molde a que tenham admitido os efeitos que se patenteiam na decisão recorrida.
4.3 – No que respeita aos demais pontos de divergência do arguido, designadamente quanto á inconstitucionalidade invocado, e caso se não considerem prejudicados com o que acima ficou dito, acompanhamos na íntegra a resposta do M.º P.º – fls. 278 e segs, nada se nos afigurando necessário aditar.
5 – PELO EXPOSTO: - É nosso parecer que o presente recurso merece provimento, não sendo de qualificar como crime de ameaça as expressões utilizadas pelo arguido”.
À posição expressa pelo Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto reagiu o recorrido, D...., com a contramina a seguir transcrita.
“O aqui recorrido não pode deixar de discordar com veemência da Douta posição ora defendida pelo Ministério Publico que, recorde-se, serviu de acusador, manteve a acusação pública, e agora, sem que nada o justifique, manifesta uma posição contrária ao que sempre se pautou.
Vem assim o Douto Procurador afirmar que as expressões” você leva já um estalo” e “quem lhe vai foder a vida vou ser eu” não constituem objectivamente crimes, o que, é caso para dizer, são palavras que livremente expressas por um advogado, de forma publica não ofendem objectivamente ninguém, quando, é sabido que por expressões cuja conotação é vislumbradamente menos ameaçadora, e usando o padrão do homem médio e normal como se pretende, os doutos tribunais não hesitam em aplicar pesadas penas contra os prevaricadores, sendo por isso exemplarmente castigados. Aliás nem poderia deixar de assim ser, pois a nossa democracia apesar de recente ainda não permite, diga-se felizmente, o uso de tais expressões ameaçadoras como as proferidas por um Sr. Advogado nos usos da sua profissão. Não pode por isso o assistente concordar com a Douta posição do digno Procurador da Relação da Coimbra nos presentes autos.
Apreciando a amálgama da questão, e como o aqui ofendido se sente e sentiu ameaçado com as expressões usadas pelo arguido, pois como conta o velho provérbio “ quem não se sente não é filho de boa gente”, sempre se dirá;
1. O Meritíssimo Juiz a quo, no uso dos seus poderes consagrados no artigo 127º do C.P.P. é livre na apreciação da prova que é carreada para a audiência de discussão e julgamento.
2. Ficou provado em audiência de discussão e julgamento que;
a) O arguido A.., com as proferidas palavras, pretendeu infundir no assistente um fundado receio de que um mal futuro lhe sucederia, nomeadamente à sua integridade física, o que logrou.
b) o assistente se sentiu receoso, e permaneceu agitado durante dias com medo que o arguido concretiza-se as ditas palavras, , temendo cruzar-se na rua com ele, , na rua ou no tribunal nas audiências seguintes do aludido inventaria judicial.
Oro, esta foi a apreciação e convicção do julgador, tendo em conta a matéria de prova apreciada e valorada em audiência de discussão e julgamento, a qual é inteiramente sufragada pelo recorrido.
Para mais, defende o arguido, que a expressão foi que vai dar uma bofetada perante o juiz de Moncorvo, salientando a intenção ou o dolo da actuação, ou seja de concretização futura da ameaça. Pergunta-se por isso se o assistente não terá tido receio da sua concretização? Parece-nos indubitavelmente que sim…pois o assistente é um homem normal, educado e de bons princípios morais e não está habituado, como todos os outros, no uso da sua profissão a ameaças típicas de um “ arruaceiro”, que por si foram, não só constrangedoras no exercício da profissão, como receosas para o mesmo ao incutirem o receio da realização de um mal futuro, entre outros a ofensa à integridade física do aqui assistente.
Nestes termos deve a decisão da 1ª instância manter-se por justa e adequada, fazendo-se assim justiça como já é apanágio desse Venerando Tribunal”.
Como questão vestibular às questões arrumadas no acervo conclusivo pelo recorrente caberá, na economia deste recurso, ponderar da carga antijurídica e ilícita que pode estar contida nas expressões que justificaram a condenação pela prática do crime de ameaças. Para o caso de falência desta questão haverá que analisar a constitucionalidade do artigo 333º, nº 1 do Código de Processo Penal e a necessidade de sobrestação do procedimento criminal enquanto não fosse decidida a censurabilidade da conduta do arguido em sede de procedimento disciplinar.



II. - Fundamentação
II.A. – De facto.
Para a decisão que prolatou cevou-se o tribunal na matéria de facto que fica transcrita a seguir.
“1) - O arguido A.. e o assistente D.... são ambos advogados.
2) - No dia 12.02.2005, cerca das 18.00 horas, encontraram-se os dois, no interior do café “Cartola”, sito na Praça da República em Coimbra, para uma reunião de natureza profissional.
3) - Nessa reunião, na presença dos respectivos clientes, chegaram a uma situação de impasse quanto ao acordo de partilhas de um inventário a correr no Tribunal Judicial da Comarca de Moncorvo.
4) - A certa altura, uma vez que o assistente não aceitava o seu ponto de vista, o arguido, dirigindo-se àquele, disse-lhe “você leva já um estalo” enquanto dirigia ao cliente daquele que não lhe partia a cara porque tinha idade para ser seu pai.
5) - Passados alguns momentos, quando o assistente D.... abandonava o dito “café”, o arguido, enquanto seguia para a porta, ainda dirigiu àquele a seguinte expressão “quem lhe vai foder a vida vou ser eu”.
6) - O arguido A.., com as proferidas palavras, pretendeu infundir no assistente um fundado receio de que um mal futuro lhe sucederia, nomeadamente à sua integridade física, o que logrou.
7) - O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
8) - O assistente sentiu-se receoso, e permaneceu agitado durante dias com medo que o arguido concretizasse as ditas palavras, temendo cruzar-se na rua com ele na rua ou no tribunal nas audiências seguintes do aludido inventário judicial.
9) - O arguido, casado, advoga há mais de 30 anos e declara ganhar mensalmente, em média, pelo menos, € 2.000,00; a esposa é professora e recebe, mensalmente, pelo menos, € 2.000,00; têm duas filhas já adultos mas uma ainda estudante do ensino superior; vivem em casa própria.
10) - O arguido não tem registados quaisquer antecedentes criminais nem qualquer pena disciplinar na Ordem dos Advogados.
Factos não provados
Nenhuns outros factos com relevância para a decisão se provaram em audiência de julgamento, nomeadamente não se demonstrou que:
A – o assistente ficou com uma depressão nervosa que se prolongou por mais de um ano;
B – o assistente permaneceu fechado em casa durante três dias devido ao comportamento do arguido;
C – o assistente se sentiu incapaz de se deslocar ao seu escritório e deixou de atender chamadas telefónicas realizadas pelos seus clientes para o escritório e para o seu telemóvel;
D – o assistente foi incapaz de realizar a consulta com um potencial cliente que tinha agendada para o dia 14.02.2005 devido ao comportamento do arguido;
E – o assistente perdeu um cliente e a possibilidade de auferir um valor não inferior a € 500,00 devido ao comportamento do arguido;
F – o assistente faltou a uma consulta com um cliente agendada para o dia 15.02.2005 devido ao comportamento do arguido;
G – os clientes do assistente ficaram com uma péssima impressão sua;
H – o assistente viu a sua capacidade laboral diminuída e profundamente afectada devido ao comportamento do arguido;
I – o assistente é conhecido na comarca de Coimbra como um advogado de boa índole, de confiança e profissionalismo que defende sempre com toda a justiça e seriedade os direitos dos seus clientes;
J – a descrita situação causou naqueles clientes do assistente e nos frequentadores do dito “café” uma enorme desconfiança e sentimentos de descrédito face a este como advogado;
K – o arguido tenha dito ao assistente “se você nega este acordo perante o Juiz de Moncorvo, eu parto-lhe a cara perante o Juiz”;
L – o arguido sentiu-se verdadeiramente indignado perante uma falta de deontologia profissional do assistente;
M – o único objectivo do arguido foi defender os interesses das suas constituintes;
N – as constituintes do arguido deduziram processo-crime contra o assistente e seu cliente;
O – o arguido tem feito inúmeros acordos judiciais e extrajudiciais com os advogados tendo estes sempre honrado os compromissos assumidos;
P – o arguido ao longo da sua vida, quer profissional quer pessoal, é pessoa de fino trato, educado, respeitador de toda a gente independentemente da sua categoria social ou económica;
Q – o arguido é incapaz de proferir as expressões constantes dos autos.
Motivação.
A decisão do tribunal fundou-se na análise crítica e conjugada das declarações do arguido e do assistente e dos depoimentos das testemunhas I..., J..., K..., L..., M... e N...
O arguido relatou o encontro com o assistente e admitiu o desentendimento mas negou ter proferido as imputadas afirmações. Tal negação mostrou-se incoerente e sem consistência quanto ao aspecto material e sem firmeza ao nível da linguagem não verbal com o esforço de “reduzir os danos” para a frase de dar duas bofetadas perante o juiz de Moncorvo; o comportamento do arguido em audiência mostra que a sua falta de calma facilmente se sobrepõe ao esforço de argumentação.
O assistente relatou o encontrou com o arguido e esclareceu, de modo coerente, o desentendimento bem como as expressões proferidas pelo arguido; no que foi secundado pelas seguintes testemunhas.
As testemunhas I..., J..., K..., L... e M.., encontravam-se no “Cartola”, presenciaram os factos, esclareceram o encontro entre o arguido e o assistente e a actuação daquela com as expressões que dirigiu a este e ao respectivo cliente.
Em suma, o modo como o arguido e o assistente depuseram e reagiram em audiência de julgamento deu credibilidade aos depoimentos deste que foi mais coerente e consistente, o que acabou corroborado pelo depoimento destas testemunhas.
A testemunha N... não presenciou os factos ocorridos no “Cartola”, partilhava o mesmo escritório do assistente em Torre de Moncorvo, de quem era estagiária, relatou os efeitos da actuação do arguido sobre os “receios” do assistente.
A situação pessoal do arguido foi apurada a partir das suas próprias declarações e do relatório do IRS.
Antecedentes criminais: CRC.
A testemunha O..., cliente do arguido, também estava no “Cartola” debitou, sem qualquer nexo ou convicção, a frase constante da contestação; não mereceu crédito pelo modo incoerente e declamatório como apresentou o seu depoimento.
As testemunhas G.. e H..nada de concreto sabiam acerca dos factos apresentaram os habituais, vagos e genéricos testemunhos de carácter sem concreta relevância probatória.
No que respeita aos factos não provados os meios de prova produzidos em audiência de julgamento não permitem uma afirmação convicta sobre a sua ocorrência ou resultam de diferente perspectiva da realidade apurada”.
II. – De Direito.
Preceitua o artigo 153º do Código Penal que “1 – Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Ensaiando uma aproximação à definição de ameaça, escreve Francisco Muñoz Conde que “gramaticalmente la voz «amenaza» significa «dar a entender a outro com actos o palabras que se quiere hacerle algún mal». Juridicamente, sin embargo, tal como se deduce de la regulación de este delito en el artigo 169 (do Código Penal espanhol, naturalmente), la palabra «amenaza» tiene aqui un sentido más restringido, ya que el mal com el que se amenaza debe constituir un delito que recaiga sobre bienes jurídicos taIes como la vida, la integridad física, la libertad, la integridad moral, la libertad sexual, la intimidad, el honor, el património y el orden socioeconómico del amenazado (…).
Poderá definir-se simplesmente como a exteriorização efectuada por uma pessoa a outra do propósito de lhe causar a ele (um mal) dependendo do respectivo tipo delitivo a determinação da natureza do dito mal Cfr. Francisco Muñoz Conde, in Derecho Penal, Parte Especial, 13ª edição, Editora Tirant lo Blanch, Valência, 2001, pags. 158 a 160.
São três as características essenciais do conceito ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente. O mal tanto pode ser de natureza pessoal (p. ex., lesão da saúde ou da reputação social) como patrimonial (p. ex., destruição de um automóvel ou danificação de um imóvel). O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal. Objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acta violento, isto é, do respectivo mal. Indispensável é, em terceiro lugar, que a ocorrência do “mal futuro” dependa (ou apareça como dependente da vontade do agente” Cfr. “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 340 e segs. .
“La acción consiste en exteriorizar un propósito. Tal propósito há de consistir en un mal, es decir, en la privación de un bien presente o futuro. EI mal há de ser en principio ilícito, delictivo o no. […] EI sujeto activo há de exteriorizar su propósito de un modo que haga creer al sujeto pasivo que es real, serio y persistente, independientemente de la forma que se use para su exteriorización. No es preciso, sin embargo, que el sujeto activo piense realizar esse propósito realmente, basta com que aparentemente pueda considerarse como tal por parte del sujeto pasivo. Es necesario, por tanto, que la amenaza llegue a conocimiento dei amenazado (sujeto pasivo), aunque sea por via indirecta, y que este comprenda el sentido de la amenaza. De aqui se deduce que hay que tener en cuenta las circunstancias del hecho la cuestión de la gravedad del mal y su adecuación para intimidar tIene que relacionarse com la persona dei amenazado y con las circunstancias que lo rodean; pero no es preciso que la amenaza llegue a intimidar al amenazado, sino que basta com que objetivamente sea adecuada para ello. Expresiones como «te voy a matar), «cuando vayas por mi pueblo te voy a dar una paliza que vas a recordar el resto de tus dias», etc., pueden ser más o menos intimidantes en función de las circunstancias y de la propia condición del que profiere las amenazas y del que las recibe. Desde luego, hay amenazas que por muy graves que parezcan, objetivamente no despiertan ningún sentimiento de inseguridad, ni tienen capacidad para modificar las decisiones de una persona («perro que mucho ladra, poco muerde»). Esto es muy importante en las amenazas simples, no condicionales, ya que el bien jurídico protegido en este delito es, más que la libertad en la formación dei acto voluntário, el sentimiento de seguridad o de tranquilidad, y no parece que una amenaza poco creíble o dificilmente realizable («cuando gane las elecciones voy a hacer que te detengan»), tenga tanta eficácia como para perturbar el sentimiento de seguridad de nadie.
Para Díes Ripollés e outros autores “[…]en todas las amenazas el bien jurídico protegido es único: «la libertad en el proceso de deliberación que ha de llevar a tomar una decisión de obrar externo»)”.
Para o Prof. Taipa de Carvalho, na anotação que faz ao artigo 153º no citado Comentário Conimbricense do Código Penal, “[…] é elemento ou característica integrante do conceito “ameaça” que a concretização futura do mal dependa ou apareça como dependente da vontade do agente. […] Relativamente a esta característica do conceito de ameaça e, assim, elemento do tipo objectivo do ilícito “ameaça”, o critério é objectivo-individual. Significa este critério que o ponto de partida para o juízo sobre a dependência, ou não, do mal é feito segundo a perspectiva do homem comum, isto é, da pessoa adulta e normal. Todavia, sendo este o critério-base, não pode deixar de se ter em conta – como factor correctivo do critério objectivo do “homem médio” – as características individuais da pessoa ameaçada”.

O tipo de ilicito configurador da proibição de limitar ou condicionar a liberdade e a capacidade de decisão de um indivíduo confere ao crime de ameaças a morfologia de um ilicito em que o legislador visa tutelar a liberdade da pessoa enquanto sujeito socialmente vinculado mas do mesmo passo individualmente detentor de um direito de não ser condicionado por factores exteriores à formação livre da sua capacidade de agir e de se movimentar sem restrições ou peias de qualquer espécie que não sejam a vinculação a um dever-ser social e juridicamente prevalentes.
Com a proibição contida na norma incriminante do artigo 153º do Código Penal pretende-se salvaguardar a tranquilidade e a segurança do indivíduo no seu estar e ser social e pessoal e estabelecer um patamar de fruição do agir individual num tecido societário onde as acções de cada um se entramam no fluxo de vontades livres mas comprometidas com a paz social.
A afectação da tranquilidade, segurança e paz individual e social é susceptível de ser postergada, pervertida e verrumada se e quando um indivíduo deixa de ter o poder de se determinar e decidir liberto de condicionamentos exteriores exercidos de modo ilegítimo e antijurídico. A capacidade de se determinar e decidir livremente é um dos paradigmas de uma sociedade livre e o direito penal tem o dever de criar o espaço juridicamente apto a promover o convívio inter relacional e comunicacional das pessoas socialmente estabelecidas.
Para o Prof. TAIPA DE CARVALHO a tutela penal da liberdade é, por excelência, uma tutela negativa e pluridimensional: negativa, na medida em que visa impedir as acções de terceiros que afectem a liberdade de decisão e de acção individual; pluridimensional, uma vez que assume as diversas manifestações da liberdade pessoal (liberdade de autodeterminação, de movimento, de acção, sexual) como autónomos objectos de protecção penal. Cfr. Taipa de Carvalho, op. loc. cit. pag. 341.
A acção ou acto de ameaçar traduz-se numa prefiguração ou anúncio de assumpção e execução de um facto contrário à tal capacidade de determinação e decisão de alguém e susceptível de afectar, no futuro, bens pessoais, como a vida, a integridade física e a liberdade sexual ou bens patrimoniais de elevado valor.
Para o preenchimento do tipo objectivo descrito na norma incriminadora, como se deixou dito supra, exige-se que a ameaça dirigida contra alguém contenha em si uma aptidão mobilizadora adequada a provocar medo ou inquietação: a) que corresponda a um mal, seja de natureza pessoal, seja de natureza patrimonial; b) que o mal objecto da ameaça seja futuro, não podendo ser um mal actual ou iminente, porque neste caso estar-se-á perante uma tentativa de execução do respectivo mal; c) e que a sua ocorrência dependa da vontade do agente. Cfr. Taipa de Carvalho, op. loc. cit. p. 343. Não se exige, no entanto, que a ameaça provoque medo ou inquietação. Antes é mister que seja adequada a provocar um estado de temor ou medo capaz de limitar ou constranger, de forma reputada relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da pessoa visada. O futuro mal anunciado pelo sujeito activo há-de revelar-se apto para numa avaliação objectiva se configurar como condicionador da liberdade de determinação da pessoa alvo da ameaça e subjectivamente idóneo a inculcar na pessoa visada um estado de medo e inquietação constrangedora da sua normal e fluente forma de ser e agir. O facto injusto e ilicito anunciado e potencialmente gerador do estado de inquietação e factor de perturbação no visado prefigura-se, assim, dependente de um fazer assumido da parte do autor da ameaça e a ser decidido pela sua vontade.
Feito este excurso pela doutrina caberá perguntar pela idoneidade e aptidão das expressões contidas na decisão para provocar no visado esse estado de receio ou inquietação susceptível de lhe importunar e condicionar a sua capacidade de determinação ou decisão. Vale por perguntar se a expressão “quem lhe vai foder a vida vou ser eu”, já que a outra expressão contida na matéria de facto provada “você leva já um estalo” apenas se pode qualificar como constituindo o anúncio iminente de uma agressão física a concretizar no preciso momento em que a expressão é proferida. Esta última expressão só é compaginável como uma tentativa de uma ofensa à integridade física do assistente e não como anúncio ou manifestação de execução de um mal futuro como exige a norma incriminante.
Na esteira do defendido pelo preclaro Procurador-geral Adjunto também nós entendemos que a expressão de anúncio de um mal não contém a virtualidade ou potencialidade de influenciar negativamente o normal agir e estar de um cidadão e de lhe perturbar o seu quotidiano.
A expressão analisada, ou como agora soe dizer-se, na assumpção da teoria filosófica de Jacques Derrida (chegou tarde e mal estudada mas alguns começam a citá-la, nem sempre adequadamente, mas já é um bom sinal, sequer, aludir a ela) “desconstruída”, na sua denotação proposicional e imagética não inculca a ideia de veicular um injusto concretizável e exequível. A alusão “foder a vida” cerne do que poderia constituir-se como um mal anunciado significa ou pode concitar que interpretação? O anúncio de um mal para a vida profissional do visado? Para a sua vida física? Para a sua familiar? Para a sua vida económica? A expressão “vida” quando utilizada desgranada do seu sentido biológico ou físico assume uma feição polissémica por abrangente de uma cópia de significados vinculados à vivência de uma pessoa na sociedade. O vocábulo “vida” carrega, na linguagem comum e corrente, uma diversidade de sentidos e um leque de acepções significantes que quando empregue na situação em que o foi, depois de uma eventual altercação verbal e no acalorado um dissídio em que se planteavam posições contrapostas relativamente a uma questão conjugal e de partilha do património, não pode deixar de ser entendida como uma manifestação iracunda, despropositada e censurável de alguém que, eventualmente, não estaria a ver satisfeitas as suas pretensões. A indeterminação e vacuidade da expressão empregue inculcam a ideia do anúncio de algo que não tem, previsivelmente, possibilidade de ser executado ou que na sua acepção normal não pode ser entendido como apto a vir a ser concretizável. O “mal” futuro anunciado prefigura-se como insusceptível de se constituir como um vector ou núcleo de feição ameaçante dada a sua inaptidão para atingir um concreto e especifico objectivo da vida do visado. Não é, para nós, um meio capaz e idóneo de afectar a liberdade e tranquilidade de quem quer o anúncio vago e impreciso de algo que tem assento nas expressões vulgares e inconsequentes do quotidiano. Sem uma focalização e específica alusão a um mal dirigido a um concreto bem jurídico tutelado, vida (no sentido físico ou biológico) integridade física ou bens patrimoniais não é possível configurar a actuação do autor como criminalmente censurável e ético-juridicamente reprovável.
Daí que, concordantemente, com a opinião expressa pelo Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto se entenda que a situação configurada na decisão sob impugnação não seja enquadrável na norma incriminadora que permitiu a condenação do arguido.
Com a decisão assumida quanto à não censura jurídico-penal da conduta apurada ficam prejudicadas as questões suscitadas no recurso.
III. – Decisão.
Na defluência do exposto decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, em:
- Julgar procedente o recurso interposto pelo arguido, ainda que por razões distintas das convocadas na peça recursiva, e em consequência absolver o arguido A.. do crime de ameaças por que havia sido condenado na decisão impugnada.
- Sem tributação.


Coimbra,

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(Gabriel Catarino, relator)

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(Dr. Barreto do Carmo)

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(Dr.ª Cacilda Sena)