Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
58/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. TÁVORA VITOR
Descritores: CONTRATO DE ADESÃO
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA PELO PAGAMENTO DE CHEQUES FALSIFICADOS
Data do Acordão: 03/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: RECOMENDAÇÃO COMUNITÁRIA 97/489/CE. ARTIGOS 563.º, 798.º E 799.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:

1. Os contratos de adesão tendem funcionar em pro-veito das empresas de cariz monopo-lista que os elabo-ram. Daí a função das cláusulas con-tratuais gerais pro-curando condicioná-los assegurando a defesa do consumi-dor, contratante mais débil.
2. Só pode ser considerado como resultante de um comportamento censurável, o facto que tenha naquele a sua consequência adequada.
3. Em caso de roubo e levantamento de um conjunto de cheques, a responsabilidade pelas respectivas conse-quências devem repartir-se em dois momentos; num pri-meiro, que se estende desde o roubo até ao alertar do banco, ao titular da conta se o mesmo infringiu deveres de prudência que lhe eram impostos pelo contrato com vista a neutralizar ou eliminar o roubo e as suas con-sequências; num segundo momento e após o aviso à enti-dade bancária detentora da conta do cliente assaltado a culpa pelo levantamento de qualquer importância nomea-damente através da falsificação dos títulos, recai exclusivamente sobre aquela já que deveria de imediato ter accionado os mecanismos em ordem ao cancelamento dos cheques.
4. Não pode ser responsabilizado o cliente da AA vítima de roubo em 25 de Junho de 1991, que mau grado não tivesse tomado todas as pre-cauções recomendadas no contrato de adesão, provi-den-ciou no sentido de que fosse avisada logo no dia ime-diato de manhã aquela entidade bancária, a qual não obstou através de aviso imediato que os cheques viessem a ser pagos em França entre os dias 5 a 16 de Julho de 1991 pelo Banco.
5. É de considerar nula por contrária aos princí-pios da boa-fé a cláusula das Condições Gerais de Uti-lização do cartão eurocheque estatuindo que sendo o Eurocheque um meio de pagamento internacional “o titu-lar assume inteira responsabilidade pelas consequências advindas de qualquer utilização indevida no estrangeiro (...)”.
Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO.
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.
A AA intentou a presente acção declarativa com Processo sumário contra BB e mulher CC, pedindo estes sejam condenados a pagar-lhe a quantia de C 10.709,29 acrescida dos juros vincendos desde 9 de Abril de 2002 até integral pagamento, à razão de € 2,06 por dia.
Alega, para tanto e em síntese, que os RR. São titulares da conta de depósitos à ordem com o nº 0204.014406.700 constituída na dependência da A. em Cantanhede.
O R. marido adquiriu dois conjuntos de Euroche-ques, numerados de 9O192601 a 610 e 90184021 a Q30, os quais lhe foram furtados.
Alega ainda que a comunicação do furto dos euroche-ques correspondentes à série 90192601 a 610 e respectivo cartão, foi efectuada em 1 de Julho de 1991, e no dia 18 de mesmo mês a comunicação do furto dos eurocheques nºs 90184021 a 030.
De acordo com as condições gerais de utilização os RR. comprometeram-se a tomar as devidas precauções, prevenindo o uso indevido do meio de pagamento em ques-tão e nomeadamente a não transportar o cartão euroche-que e os eurocheques conjuntamente nos mesmos bolsos ou carteiras, malas etc., a não deixar o cartão eurocheque no meio de transporte utilizado, não ser portadores de mais de cinco eurocheques simultaneamente e a guardar os eurocheques na quantidade máxima indicada e em locais separados.
O R. não cumpriu as regras de segurança, tendo guardado todos os eurocheques conjuntamente com o car-tão e por isso foram-lhe debitados na sua conta à ordem os eurocheques apresentados a pagamento no valor global de 691 86$00 – € 3.451.02, a qual ficou a apresentar, por forçados movimentos efectuados a deito, um saldo negativo de 669.848$00.
Contestaram os RR. alegando, em suma, que o R. marido no dia 25 de Junho de 1991 foi alvo do roubo de uma pasta em Bruxelas, cerca de 19 horas, contendo diversa documentação e os eurocheques.
Sustentam ainda que no dia 26 de Junho de 3991, pelas 9 horas, aquando da abertura do balcão respectivo em Cantanhede, a R., porque alertada pelo marido, comu-nicou a ocorrência do furto dos eurocheques para que esta difundisse o alerta para todo a rede de Balcões pagadores dos eurocheques.
O R. marido apenas regressou ao país no dia 30 de Junho de 1991 à noite e no dia 1 de Julho dirigiu-se à delegação da Autora em Cantanhede onde lhe foi dito que todo o sistema estava informado e cancelados todos os eventuais pagamentos dos eurocheques, sendo apenas necessário formalizar tal ocorrência por escrito, o que o R. fez.
Em 18 de Julho de 1991 a A. informou o R. marido que era necessário assinar novo aviso de extravio de eurocheques, já que em vez dos 10 cheques iniciais haviam sido furtados 20, o que este cumpriu.
Houve manifesta negligência da A. que os pagou após tempestiva comunicação do furto.
Sustentam ainda que são nulas por contrárias ao princípio da boa fé as cláusulas apostas no contrato de adesão ao eurocheque em que se estabelece uma presunção “iuris et de iure” da culpa do titular do cartão de utilização abusiva ou fraudulenta dos eurocheques e em que este se compromete a nunca contestar os débitos que a utilização do cartão e dos eurocheques originar.
Na Réplica a A. responde à matéria de excepção invocada e impugna os factos alegados pelos RR.
Foi elaborado despacho saneador, fixando-se os fac-tos assentes e a base instrutória constante de fls. 40 a 43 tendo-se igualmente concluído pela procedência da invocada excepção peremptória de prescrição apenas no que respeita ao crédito de juros.
Procedeu-se a julgamento tendo sido proferida ulte-riormente sentença que julgou a acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência absol-veu os RR. BB e mulher CC do pedido formulado pela Autora AA.
Daí o presente recurso de apelação interposto pela Caixa Geral dos Depósitos, a qual no termo da sua ale-gação pediu que se revogue a sentença e se julgue a acção procedente.
Foram apresentadas para tanto as seguintes,

Conclusões.

1) Nos termos constantes dos antecedentes nºs 2 a 7, a ocorrência em apreço nos autos só se iniciou e se tornou possível, mormente com a amplitude que teve, porque e na medida em que o R. apelado violou injusti-ficada e gravemente três das obrigações a que estava contratualmente vinculado perante a apelante, clausula-das no nº 5 das ‘Condições Gerais de Utilização do Car-tão Eurocheque/CGD – porquanto, não guardando os Euro-cheques, no máximo de 5, em locais separados, os trans-portava, a todos os 20, conjuntamente com o respectivo cartão, numa mesma pasta, quando do assalto de que foi alvo;
2) Ainda que tais obrigações – assumidas no âmbito da celebração do contrato de adesão em apreço nos autos e em nada ofensivas dos princípios da boa fé e ordem pública -não tivessem sido reduzidas a escrito, as mais elementares razões e regras de segurança, de prudência e de bom senso impunham que o R. ora apelado tivesse usado, na circunstância, de um maior cuidado e atenção na guarda e transporte dos documentos em causa,
3) O que injustificadamente se não verificou e tra-duz uma actuação grosseiramente negligente por parte do R. marido.
4) De igual modo, nos termos e pelas razões aduzi-das nos antecedentes nºs 11 a 21, parece impor-se a conclusão de que, posteriormente a tal assalto, o ora apelado violou culposamente também os deveres constan-tes da cláusula 11 dos referenciados C.G.U.C.E., ao não comunicar nem confirmar por escrito, correcta e atempa-damente, o furto ocorrido e a sua efectiva amplitude – o que só veio a verificar-se relativamente a apenas 10 dos eurocheques em causa, em 18 de Julho de 1991, e, portanto, em tempo irremediavelmente tardio, dado que os 20 eurocheques se encontravam já todos pagos desde 16 desse mês;
5) Só tais omissões, a acrescer às anteceden-tes, possibilitaram, portanto, e decisivamente determinaram os pagamentos feitos,
6) Não podendo os ora apelados alegar ou pretender escudar-se no pretenso desconhecimento dos concretos procedimentos que deveriam então adoptar, quando da participação da ocorrência, dado que há muito haviam já sido dados a conhecer pela ora apelante ao R. marido, quando da celebração do contrato de adesão em apreço nos autos, pelo que a ele se impunha – em primeira-mão – adoptá-los e dá-los a conhecer à Ré sua mulher – o que não fez nem providenciou;
7) Assim e uma vez mais, pelas omissões referi-das, o comportamento assumido patenteia, de forma indesculpável, grave negligência.
8) Identicamente, evidenciam os autos ter o ora apelado violado as obrigações assumidas na cláusula 11.1 das C.G.U.C.E. – de participar à autoridade policial local a ocorrência do furto em causa e de avisar, na medida do possível, a insti-tuição bancária mais próxima aderente ao sistema Eurocheque,
9) Obrigações estas que, tal como as anterior-mente referenciadas, se não vê como possam ser ofensivas dos princípios da boa fé e ordem pública, até porque, ainda que não escritas, se imporia a um qualquer cidadão médio acatar, por elemen-tares razões de diligência e prevenção,
10) E cuja observância – afigurando-se ter sido mais que possível nos 9 dias que mediaram até 05/07/91, data do início de pagamento dos eurocheques em causa – a isso teria seguramente obstado, pelo alerta geral que seria então lançado pela (s) entidade (s) participada (s), independentemente até de quaisquer providências já tomadas ou a tomar pela ora apelante;
11) Assim não tendo procedido, uma vez mais o R. marido assumiu, por omissão, um comportamento grossei-ramente negligente e inelutavelmente desencadeador e determinante da ocorrência em apreço e dos prejuízos dela decorrentes.
12) Inexistindo nos autos qualquer prova de que a ora apelante tenha violado qualquer das obrigações a que estava contratualmente vinculada perante os RR. ora apelados,
13) Face ao comprovado contexto em que se verifi-cou a ocorrência em apreço, quer na sua origem quer no seu desenvolvimento ulterior, à ora apelante não era razoavelmente exigível que devesse actuar de outra forma; com efeito,
14) Pelas razões aduzidas no antecedente nº 29, a ora apelante, face à regularidade do tratamento obser-vado e dos pagamentos feitos, estava obrigada a reem-bolsar o Banco francês, por força das convenções regu-ladoras do sistema ‘Eurocheque que firmou e não podia deixar de honrar.
15) Estabelecendo o clausulado nos nºs 12 e 12.1 das C.G.U.C.E. uma mera presunção ‘iuris tantum’, ili-dível mediante prova em contrário, nos termos do artº 350º, nº 2, do C. Civil – o que, conforme doutamente sustenta o Tribunal ‘a quo, é plenamente válido, por mais não traduzir que uma repetição da doutrina do artº 799º, nº 1, do C. Civil – e não tendo os RR., dada a factualidade apurada, ilidido tal presunção, como lhes competia, é manifesto que apenas aos ora apelados deverá ser imputada a responsabilidade pela ocorrência em apreço e pelos prejuízos dela decorrentes, conforme, aliás, se prevê na cláusula 18 das C.G.U.C.E.
16) Ao decidir como decidiu, o Tribunal ‘a quo fez incorrecta interpretação e aplicação, perante a factua-lidade apurada, das normas dos artsº. 350º, 406º, nº 1, 798º e 799º nº 1 do C. Civil.
Contra-alegaram os apelados pugnando pela confirma-ção da sentença.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. FUNDAMENTOS.
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O Tribunal deu como provados os seguintes,
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2.1. Factos.
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2.1.1. Os Réus são titulares da conta de depósito à ordem nº 0204.014406.700 constituída na dependência da Autora em Cantanhede (al. a) dos factos assentes}.
2.1.2 O Réu marido adquiriu dois conjuntos de euro-cheques, numerados de 90192601 a 610 e 90184021 a 030, na referida dependência da Autora (al. b) dos fac-tos assentes).
2.1.3. O meio de pagamento dos eurocheques é garan-tido pela Autora no caso de os titulares não apro-visionarem total ou parcialmente a sua conta de depósi-tos à ordem (al. c) dos factos assentes).
2.1.4. Para beneficiar da garantia, o titular deve-ria apresentar ao tomador o cartão eurocheque, a fim de que este anotasse no verso o respectivo número (al. d) dos factos assentes)
2.1.5. Ao Réu foi furtada uma pasta que continha diversa documentação e os eurocheques referidos em b) (al. e) dos factos assentes).
2.1.6. Todos os eurocheques foram apresentados a pagamento em data posterior a 26 de Junho de 1991 (al. f) dos factos assentes).
2.1.7. Nos termos das condições gerais de movimen-tação da conta referida em A), que os Réus aceitaram, ficou a Autora autorizada a debitar na mesma, todos os levantamentos, cheques ou transferências, ordenadas por qualquer dos titulares (quesito 1º da base instrutó-ria).
2.1.8. Obrigando-se os Réus a manter, na conta, saldo disponível suficiente para permitir todos os lan-çamentos a débito, devendo certificar-se desse facto antes de efectuar qualquer operação de levantamento, sacar qualquer cheque ou ordenar qualquer transferência (quesito 2º da base instrutória).
2.1.9. Em 1 de Julho de 1991 o Réu marido comuni-cou à Autora o furto dos eurocheques e respectivo car-tão (quesito 3º da base instrutória).
2.1.10. No dia 18 seguinte, o Réu subscreveu o documento, cuja cópia se mostra junta a fls. 29 dos autos, referente aos eurocheques com o nºs de série 90184021 a 030 (quesito 4º da base instrutória)
2.1.11. No momento em que o Réu adquiriu os euro-cheques foram-lhe entregues as condições gerais de uti-lização do cartão eurocheque lCGD, juntas a fls. 56 dos autos, e cujo teor se dá integralmente por reproduzido, nas quais consta, designadamente das suas condições 5º "Por razões de segurança, o titular compromete-se a tomar as seguintes precauções: - não transportar o car-tão eurocheque e os eurocheques conjuntamente nos mes-mos bolsos, ou carteiras, malas, postas, etc. –...Não ser portador de mais de (cinco) eurocheques simultanea-mente; -Guardar os eurocheques na quantidade máxima indicada e em locais separados”. (quesito 5º da base instrutória).
2.1.12. O Réu guardou todos os eurocheques conjun-tamente com o cartão (quesito 6º da base instrutória).
2.1.13. Os eurocheques foram apresentados a paga-mento e debitados na conta de Depósitos à Ordem dos réus, no valor de 3.451.02 euros. (quesito 7º da base instrutória)
2.1.14. Por força dos movimentos efectuados, a conta dos réus ficou apresentar, em 19/7/92, um saldo negativo de 3.341.19 euros (669.848$00} (quesito 8º da base instrutória).
2.1.15. Os eurocheques foram pagos em França entre os dias 5 a 16 de Julho de 1991 (quesito 9º da base instrutória).
2.1.16. O Réu foi assaltado em Bruxelas no dia 25 de Junho de 1991, tendo ficado sem a pasta referida em E) (quesito 10º da base instrutória).
2.1.17. Logo no dia seguinte, em 26 de Junho de 1991, ao abrir da agência da CGD de Cantanhede, a Ré mulher, depois de ter sido alertada pelo Réu, deslocou-se pessoalmente a essa agência, onde comunicou verbal-mente a ocorrência referida no quesito anterior (que-sito 11º e 12º da base instrutória).
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2.2. O Direito.
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Nos termos do precei-tuado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformi-dade e conside-rando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos:
- A natureza do contrato sub iudice.
- A repartição de responsabilidade em caso de uso abusivo de eurocheques por terceiro não autorizado e o caso vertente.
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2.2.1. A natureza do contrato sub iudice.
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Está em crise o cumprimento do contrato, sendo certo que para a apreciação deste facto releva conside-rar a natureza da relação contratual.
Não nos restam dúvidas de que estamos face a um contrato de adesão, cujas cláusulas foram delineadas na vigência do DL 446/85 de 25 de Outubro.
O contrato de adesão é fruto da evolução econó-mico-social que trouxe consigo o abalar dos quadros tradicionais do contrato concebido em termos quase exclusivos de um acordo celebrado entre vontades após prévia negociação. A massificação do comércio jurídico e o fornecimento de bens e serviços em larga escala, tornados bens de primeira necessidade, não se compadece já com as morosas e personalizadas fases de negociação prévia moldadas à luz do figurino liberal. O comércio pressionado pelas economias de escala, cresceu desmesu-radamente, tudo tornando assim premente a construção de novos ins-trumentos jurídicos em ordem a uma eficaz res-posta às necessidades surgidas com o eclodir na nova realidade social. A prática jurídico-económica raciona-lizou-se e especializou-se; as grandes empresas unifor-mizam os contratos de molde a "acelerar as operações necessárias à colocação dos produtos e a planificar nos diferentes aspectos, as vantagens e as adscrições que lhes advêm do tráfico jurídico". Contudo a breve trecho se fez sentir a necessidade de regulamentar este tipo de con-tratação; como refere Galvão Telles Cfr. "Manual dos Contratos em Geral" Actualizado, Coimbra Editora, 2002, pags. 334. "a homogenei-zação das relações económicas provoca sem dúvida um desequi-líbrio entre as partes contratantes (…) que reclamam a intervenção tutelar do legislador para que o contrato não deixe de ser, como cumpre, um instrumento de jus-tiça. É essa a função disciplinadora dos instrumentos normativos destinados a conformar o conteúdo dos con-tratos de adesão com determinados fins que o legislador tem em vista restringindo a sua apli-cação e alcance, ao mesmo tempo que através delas visa proceder ao respec-tivo controlo em ordem a garantir a eticidade do seu conteúdo. Cabem neste último escopo além do mais as normas tendentes a proteger o contra-tante aderente, necessariamente mais débil, das disfun-ções provocadas pela desigualdade contratual das par-tes; é que, como refere Sousa Ribeiro, "não garantindo o sistema igual-dade na repartição de riqueza mas apenas o tratamento de todos como pessoas iguais, dotados da mesma abs-tracta capacidade jurídica de aquisição, frui-ção e alienação das coisas, admite simultaneamente, as dispa-ridades de poder, assim induzidas entre as partes de uma relação contratual" Cfr. A. citado "O Problema do Contrato" As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual, Teses, Almedina Coimbra 1999, pags. 336. . O aderente não toma parte na formação do contrato, que se lhe apresenta como um dado adquirido a regulamentar não raro o fornecimento de bens ou serviços de primeira necessidade por empre-sas tendencialmente monopolistas; por outro lado em caso de conflito a abissal diferença de poder económico entre o proponente e aderente reflecte-se naturalmente nos meios jurídicos que na realidade cada um dos sujei-tos processuais pode dispor. Daí o acentuar ao nível gené-tico do contrato do princípio transparência postu-lando uma clareza desde logo dos termos do mesmo em ordem a reduzir pelo esclarecimento as fontes de atrito e con-flitualidade ou na impossibilidade de os prevenir, ana-lisar a questão com cuidado, especialmente pelo prisma do contratante aderente, desde logo realçando o princí-pio interpretativo da impressão do destinatário – artigo 227º do Código Civil – vedando assim a tendência neste tipo de relações comerciais de "extrair do con-junto das cláusulas gerais uma significação que habil-mente se disfarçara de sorte que o aderente a não sur-preendeu, nem a surpreenderia naquelas condições" Cfr. Galvão Telles Ob. Cit. pags. 315. e por outro lado que em caso de dúvida na interpretação de uma cláusula contratual deve prevalecer o sentido mais favorável ao aderente – artº 11º nº 2 do DL 446/85, tutelando igualmente desta forma a confiança criada no destinatário da proposta contratual Cfr. neste sentido Carneiro da Frada "Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil" Teses Almedina, Coimbra 2004, pags. 362 ss e nota 366 ss. Oliveira Ascensão "Direito Civil" Teoria Geral III, Coimbra Editora 2002, pags. 231 s.. No fundo trata-se aqui de um postulado do "princípio da boa-fé" que à luz da Doutrina moderna dispensa uma pro-tecção especial ao contraente fraco ou em posição des-favorecida Cfr. Sousa Ribeiro Ob cit. pags. 568 ss. Carvalho Fernandes "Teoria Geral do Direito Civil" II, Universidade Católica Portuguesa, 3ª Edição 2001, pags. 421. .
O contrato subjacente ao pedido da Autora é pois um "contrato de adesão", sendo assim também à luz das considerações expostas que terão que ser interpretadas e aplicadas as cláusulas a que a impetrante liga o direito à indemnização que reclama.
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2.2.2. A repartição de responsabilidades em caso de uso abusivo de eurocheques por terceiro não autori-zado, e o caso vertente.
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Na génese do pedido da Autora está o alegado incum-primento do "contrato de adesão" que regulamenta a utilização do cartão Eurocheque. Constitui o eurocheque um meio de pagamento emergente de convenções interban-cárias que permite aos portadores que se deslocam ao estrangeiro adquirir divisas locais nos bancos afilia-dos ao sistema e pagar bens ou serviços fornecidos pelas entidades que a ele tenham aderido. Os cheques são acompanhados de um cartão numerado que identifica o portador, sendo pagos desde que a legitimidade do subs-critor seja comprovada pela exibição do cartão; os che-ques e o cartão são elementos indissociáveis Cfr. Alberto Luís "Direito Bancário" Temas Críticos e Legislação Conexa, Almedina, Coimbra 1985, pags. 151 ss..
O apelado foi em 25 de Junho de 1991, alvo de roubo em Bruxelas que o privou de uma pasta com 20 eurocheques e cartão respectivo. Esses títulos vieram a ser posteriormente preenchidos de forma abusiva, apre-sentados a pagamento e debitados na conta de depósitos à ordem dos RR. no valor de € 3.451,19. Os eurocheques foram pagos em França entre os dias 5 a 16 de Julho de 1991.
No dia seguinte ao assalto, em 26 de Julho de 1991, ao abrir da agência da CGD de Cantanhede a Ré mulher depois de ter sido alertada pelo Réu deslocou-se pessoalmente a essa agência onde comunicou verbalmente a ocorrência referida.
A Autora pagou a importância em causa ao banco francês.
Por força dos movimentos efectuados a conta dos RR. ostentava em 19-7-92 um saldo negativo.
A Autora assaca ao Réu a violação de três cláusu-las do contrato de adesão, o que esteve na base do des-falque patrimonial, a saber:
1) Não guardou os cheques e cartão respectivo em locais separados, transportando os 20 títulos conjunta-mente com o cartão numa mesma pasta aquando do assalto. (Cláusula
2) Não participou à autoridade policial local a ocorrência do roubo em causa, nem tão pouco avisou na medida do possível a instituição mais próxima aderente ao sistema eurocheque, o que teria evitado o levanta-mento dos fundos desde logo pelo alerta geral que teria sido dado.
3) Não confirmou a ocorrência por escrito dentro das 48H seguintes em qualquer Agência da AA.
Da análise dos factos provados verifica-se que na realidade o Réu transportava na pasta que lhe foi rou-bada aquando do assalto, os eurocheques e o respectivo cartão, o que a não ter ocorrido não teria provavel-mente dado azo ao que sucedeu, já que é impossível levantar o cheque sem o cartão; trata-se de uma precau-ção inserta na cláusula 5ª do contrato a fls. 56, sendo aliás a mesma objecto da recomendação comunitária 97/489/CE.
Só que daí não se pode seguir a conclusão de que o levantamento da importância ora pedida seja consequên-cia adequada dos factos supra-apontados. Na verdade poder-se-ia aceitar que assim fosse até ao momento em que a Ré avisou a Agência da AA, logo no dia imediatamente seguinte ao roubo; só que esta responsabilidade não vai para além do momento deste aviso; a ocorrência, que funcionaria até aí como causa adequada de um eventual levantamento, deixou de o ser a partir do momento em que alertada do sucedido a AA poderia e deveria ter accio-nado os mecanismos de alerta de todas as suas congéne-res e aderentes em ordem a não efectuarem o pagamento dos cheques cancelados. A falta de precaução do Réu que esteve na origem do ocorrido deixa de funcionar como causa adequada do desfalque patrimonial para se assumir apenas como mera condição do mesmo, simples “causa vir-tual”, irrelevante para o resultado. Como refere Galvão Telles "só se considera como causa jurídica do prejuízo a condição que, pela sua natureza e em face das cir-cunstâncias do caso se mostre apropriada para o gerar. A ideia de causalidade fica assim restringida às condi-ções que, nos termos expostos, apresentam aptidão ou idoneidade para a produção do dano. Causa será só a condição adequada a essa produção Cfr. A. citado "Direito das Obrigações" Coimbra Editora, 6ª edição 1989, pags. 404 ss; Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado I, Coimbra Editora, 4ª Edição pags. 578 ss. . Esta aliás a Dou-trina acolhida no artigo 563º do Código Civil. O juízo de adequação entre a lesão e o facto que lhe esteve subjacente reporta-se ao momento em que o facto danoso se verificou Escreve lapidarmente Pereira Coelho in "O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil" Teses, Almedina Coimbra 1989, pags. 175 que "o momento decisivo para averiguação do nexo de causalidade (condicionalidade) entre o facto e o dano é, obviamente o próprio momento em que o dano (real) se verifica. Não, é claro, o momento anterior da prática da acção condicionante". ; ora neste caso não há qualquer dúvida que após o aviso do ocorrido à AA pela Ré mulher, foi a incúria da Autora que esteve na origem do pagamento da importância em falta por parte de uma das entidades bancárias, a qual deveria estar prevenida para não o fazer. Daí o concluirmos que a responsabilidade pelo pagamento de cheques por entida-des bancárias abusivamente subtraídos e falsificados se reparte em dois momentos sucessivos pelo respectivo titular e pela entidade bancária emitente dos cheques; o primeiro é numa primeira fase responsável na medida em que a sua conduta imprudente (v.g. no caso vertente guardar os cheques juntamente com o cartão) abriu cami-nho para que subsequentemente ao roubo pudessem ser levantados fundos ilicitamente; no entanto a partir do momento em que é alertada a entidade bancária do ocor-rido é da responsabilidade desta última o pagamento de quaisquer importâncias que se prendam com os títulos subtraídos; "quebra-se assim o nexo de causalidade que une os danos sofridos à actuação eventualmente negli-gente do titular do cartão; a responsabilidade pelo uso indevido do cartão transfere-se para a instituição ban-cária, que de resto não sofrerá prejuízos se tomar todas as medidas de segurança adequadas" Cfr. Ac. do S.T.J. de 19-11-2002 (P. 3269/02) in Col. de Jur., 2002, 3, pag. 138 in fine. No mesmo sentido Acs. Ac. da Rel. de Lisboa de 19-5-1994 (R. 67 in Bol. do Min. da Just., 437, 565) de 20-4-1999 (R. 415/99) in Col. de Jur., 1999, 2, 110. Na Doutrina Menezes Cordeiro "Manual de Direito Bancário" Almedina, Coimbra 1998, pags. 489; e optando também expressamente por uma responsabilidade repartida, Maria Raquel Guimarães "Os Cartões Bancários e as Cláusulas Contratuais Gerais" in RDES Ano XLIII, Janeiro-Março de 2002, pags. 76. .
É bem certo que igualmente se não prova que o Réu tivesse alertado as autoridades policiais holandesas do sucedido nem tão pouco qualquer entidade bancária ade-rente ao sistema do eurocheque; mas aqui se reverte uma vez mais para as considerações que fizemos acerca da boa-fé na interpretação das cláusulas gerais dos con-tratos de adesão; os mesmos dirigem-se ao cidadão comum, sendo certo que este se basta em casos semelhan-tes com o alertar da instituição bancária a fim de que proceda ao cancelamento dos cheques; e não há dúvida que esse comportamento na prática é suficiente e idóneo para evitar consequências mais gravosas. Ninguém melhor do que as entidades bancárias está em condições de colocar de sobreaviso as suas congéneres do ocor-rido; o alerta policial e a confirmação por escrito do roubo ou extravio dos títulos poderão eventualmente contribuir para travar um crime em iter de consumação com os inerentes prejuízos; contudo tais medidas não se inserem âmbito da causalidade subjacente ao mesmo no qual o Banco proponente esteve em condições de interfe-rir.
Por último refere a Autora em abono da sua tese que a responsabilidade do Réu se presume desde logo face às cláusulas nsº 12 e 12.1 do contrato de adesão.
Da primeira dessas cláusulas consta que "O Euroche-que cuja assinatura corresponda à reproduzida no cartão e em que o número deste se encontre anotado no verso, presume-se emitida pelo titular". Lê-se na segunda cláusula que "tratando-se de Eurocheques emiti-dos por terceiro, presume-se em qualquer caso que a utilização do cartão foi culposamente consentida ou facilitada pelo titular.
Subjacente à emissão do cartão eurocheque, está um “contrato de utilização” do mesmo, no qual intervêm duas partes: o banco e o utilizador titular, sendo cada um passível de imputação de direitos e deveres. As regras gerais em caso de incumprimento constam dos artigos 798º e 799º do Código Civil, estatuindo-se que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação é responsável pelo prejuízo que causa ao cre-dor, estabelecendo-se uma presunção iuris tantum da culpa do faltoso a apreciar nos termos aplicáveis à responsabilidade civil. No caso específico que analisa-mos teremos também de entender que as cláusulas contra-tuais supracitadas encerram uma presunção de culpa ili-dível a cargo do utilizador, inserindo-se assim na orientação genérica do Código Civil; não há assim que as considerar abusivas já que pela valoração do respec-tivo conteúdo se inserem num contexto de razoabili-dade Denominação preferida por Oliveira Ascensão ao conceito de boa-fé. Cfr. Ob. e local citados maxime pags. 239 ss. não ofendendo as ditas cláusulas na interpreta-ção que se lhes dá, o princípio da boa-fé.
Contudo, e tal como cremos ter demonstrado cabal-mente, a partir do momento em que foi avisada a Agência da AA do roubo de que o Autor foi alvo, passou a responsabilidade no pagamento dos che-ques para a órbita da entidade bancária.
A esta conclusão não pode obstar a cláusula 18ª das Condições Gerais de utilização do cartão eurocheque ao estatuir que "sendo o Eurocheque um meio de paga-mento internacional o titular assume inteira responsa-bilidade pelas consequências advindas de qualquer uti-lização indevida no estrangeiro, devendo nomeadamente obedecer às normas estabelecidas pelo Banco de Portugal ou outra entidade competente". No ponto 8 das suas con-tra-alegações a fls. 139 v., os RR. levantam a nulidade desta cláusula por ofensa ao princípio da boa-fé. E assiste-lhe inteira razão nessa parte, já que ali se estabelece uma presunção iuris et de iure de culpa do aderente sem lhe dar a possibilidade de defesa em cada caso peculiar como regra de negociação leal e colabo-rante que se deve impor quer nos preliminares, quer na execução do contrato Cfr. Acs. da Rel. de Lisboa de 19-5-1994 (R. 6731) in Bol. do Min. da Just., 437, 565; da Rel. de Lisboa de 9-6-1994 (R. 6785) in Col. de Jur., 1994, 3, 107; da Rel. do Porto de 21-10-1993 (R. 177/93) in Bol. do Min. da Just., 430, 510.

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Nesta conformidade considerando o que vem dito e nomeadamente a nulidade da dita cláusula, não é licito assacar a responsabilidade do ocorrido ao Réu marido pelo que a sentença irá confirmada.

Poderá assim concluir-se o seguinte:

1) Os contratos de adesão tendem funcionar em pro-veito das empresas de cariz monopo-lista que os elabo-ram. Daí a função das cláusulas con-tratuais gerais pro-curando condicioná-los assegurando a defesa do consumi-dor, contratante mais débil.
2) Só pode ser considerado como resultante de um comportamento censurável, o facto que tenha naquele a sua consequência adequada.
3) Em caso de roubo e levantamento de um conjunto de cheques, a responsabilidade pelas respectivas conse-quências devem repartir-se em dois momentos; num pri-meiro, que se estende desde o roubo até ao alertar do banco, ao titular da conta se o mesmo infringiu deveres de prudência que lhe eram impostos pelo contrato com vista a neutralizar ou eliminar o roubo e as suas con-sequências; num segundo momento e após o aviso à enti-dade bancária detentora da conta do cliente assaltado a culpa pelo levantamento de qualquer importância nomea-damente através da falsificação dos títulos, recai exclusivamente sobre aquela já que deveria de imediato ter accionado os mecanismos em ordem ao cancelamento dos cheques.
4) Não pode ser responsabilizado o cliente da AA vítima de roubo em 25 de Junho de 1991, que mau grado não tivesse tomado todas as pre-cauções recomendadas no contrato de adesão, provi-den-ciou no sentido de que fosse avisada logo no dia ime-diato de manhã aquela entidade bancária, a qual não obstou através de aviso imediato que os cheques viessem a ser pagos em França entre os dias 5 a 16 de Julho de 1991 pelo Banco.
5) É de considerar nula por contrária aos princí-pios da boa-fé a cláusula das Condições Gerais de Uti-lização do cartão eurocheque estatuindo que sendo o Eurocheque um meio de pagamento internacional “o titu-lar assume inteira responsabilidade pelas consequências advindas de qualquer utilização indevida no estrangeiro (...)”.
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3 DECISÃO.
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Pelo exposto acorda-se julgar a apelação improce-dente confirmando a sentença apelada.
Custas pela apelante.