Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
158/09.3TBVZL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 343 CC
Sumário: I - Nas acções em que só esteja em causa a simples apreciação negativa de um direito de que o réu se tenha arrogado, o autor só tem de alegar e provar esse arrogo e os factos que demonstram o seu interesse em agir, cabendo ao réu a alegação e prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga.

II - Na acção em que também esteja em causa um pedido de condenação, para a procedência deste o autor tem que provar o seu direito e que ele foi violado.

Decisão Texto Integral:               Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

             

              J (…), residente em ..., instaurou a presente acção contra JQ (…), residente em ..., ..., ..., pedindo que seja declarada “a inexistência de direito por parte do réu para edificar os dois muros indicados no artigo 10, com todas as consequências legais”.

              Antes de encerrada a audiência de julgamento, o autor ampliou o pedido para a: “...condenação do réu a destruir os dois muros em causa, assim repondo a situação anterior”. Esta ampliação teve a oposição do réu, mas foi deferida, sem que do respectivo despacho tenha sido interposto recurso.

              Como fundamentação do pedido, o autor alegava apenas, no essencial, que o réu é dono de um prédio limitado a sul por um carreiro de trânsito de pessoas e animais, com um rego ou levada de condução permanente de águas, a céu aberto na maior parte. Ora, o réu construiu aqueles muros transversais ao carreiro, apropriando-se de 10 m do mesmo e impedindo o trânsito por eles, ficando assim o autor impedido de acompanhar a condução da água nessa parte, o que também compromete a utilização adequada da água.

              Depois de ter sido convidado, por despacho judicial, acrescen-tou o seguinte às suas alegações – não sem antes dizer em requerimento introdutório…: “[…] a presente acção é uma acção de simples apreciação negativa […] o que está em causa e interessa no caso é a afirmação do direito por parte do réu (nanja por parte do autor). Daí que não importe, no fundo, o direito invocado pelo autor…” (por manifesto lapso, o autor escreveu ‘réu’ onde agora se colocou ‘autor’ em itálico) – que as águas passam pelo carreiro, sendo encaminhadas para o prédio do autor, por aqueduto subterrâneo e rego de pedra, há mais de 100 anos, sendo o autor e os seus antepossuidores quem sempre cuidaram do rego e acompanharam as águas, autorizando terceiros a aproveitarem-se do aqueduto para colocarem tubos de plástico encaminhadores de outras águas, tendo por isso adquirido por usucapião o direito às ditas águas para rega e merugem do seu prédio. A construção dos muros também impede a limpeza do aqueduto.

              O réu na contestação veio alegar que o seu prédio confina a sul com o prédio de um terceiro (não confina por isso com nenhum carreiro); os muros erguidos consubstanciam a vedação do seu prédio, o que tinha o direito de fazer: art. 1356 do Código Civil (= CC); impugna também as afirmações do autor de que transitava pelo carreiro para utilização adequada da água e limpeza do aqueduto; acrescenta que o aqueduto não passa pelo seu prédio (ou pelo menos não passa só por ele e que o rego não passa pelo seu prédio em parte a céu aberto. Deduz a excepção de ineptidão da petição inicial por não se alegar a extensão do direito de servidão do autor, nem se alegar actos de posse em concreto de uma servidão de águas ou de aqueduto. E subsidiariamente a excepção da ilegitimidade do autor: se tal carreiro for um atravessadouro, o autor não tem legitimidade para o reivindicar. Impugna ainda, subsidiariamente, o direito do autor para o caso de se tratar de um atravessadouro, pois que estes foram abolidos pelo CC se não se dirigirem a ponte ou fonte com manifesto interesse público; impugna ainda quando diz que mesmo que haja servidão de aqueduto o autor não necessita de acompanhar as águas porque estão subterrâneas; e a existir tal direito, diz que o mesmo deve ser retirado ao autor, por dele não carecer. Pugna pela improcedência da acção.

              Notificado da petição “corrigida” do autor, o réu deduziu a excepção de ilegitimidade do autor, por se impor e não ter sido respeitado o litisconsórcio activo e impugnou a invocada usucapião, pois que sem uso da água, por não ter sido concretizado, não haveria corpus e por isso não haveria posse que pudesse levar à mesma.

              O autor respondeu às excepções, entre o mais dizendo que não reivindica nenhum direito sobre o prédio do réu, antes diz que é proprietário das águas indicadas; acrescenta que os atravessadouros que a lei aboliu foram os privados, não o dos autos que está fora desse terreno; não há necessidade de qualquer litisconsórcio activo porque não está invocado um direito de servidão de aqueduto, muito menos que tal direito seja de outros.

                                                                 *

              No despacho saneador julgaram-se, em concreto, improcedentes as excepções de ilegitimidade. Depois do julgamento foi proferida sentença em que se declarou a inexistência de direito por parte do réu a edificar os dois muros que se encontram a obstruir o carreiro denominado Quelha ... e se condenou o réu a demolir os dois muros que ergueu, transversais ao referido carreiro.

                                                                 *

              O réu interpôs recurso desta sentença – para que seja revogada a sentença “que julgou procedente a acção e admitiu a ampliação do pedido inicial” – terminando assim as suas alegações com as seguintes conclu-sões:
         1. A ampliação do pedido, na medida em que altera, a final, a forma do processo (em vez de uma acção de declaração negativa passou a ser uma acção de condenação) e bem assim a executoriedade da sentença final, foi indevidamente admitida;
         2. A expressão “...com as legais consequências” (texto do pedido inicial) não suporta a ampliação do pedido desde logo porque a legal consequência da acção de declaração negativa não é, nunca, uma condenação;
         3. A Quelha ... era um mero atravessadouro, apenas passível de trânsito pedonal (e este com riscos perante a irregularidade e humidade do leito) que se não dirigia “...a ponte ou fonte com manifesta utilidade pública...”
         4. Que, perante a beneficiação do piso e comodidade dos caminhos públicos adjacentes, deixou sequer de ser alternativa de trânsito pedonal (até pelos riscos que comportava) e foi abandonada;
         5. A abolição legal do carreiro ( Quelha ...) implicou que o seu leito fosse integrado no logradouro do prédio do réu, pois que o (logradouro) “onerava”;
         6. O espaço da distância de 10 m, sob o qual não se acha integralmente instalado o cano de pedra (o terreno vizinho é o mais onerado e é mesmo nele que desemboca!) não está obrigado a suportar os adminiculae da servidão de aqueduto, i.é., por ele não pode o titular da servidão de aqueduto subterrâneo transitar para acompanhar a água (é dessa falta de passagem que o autora se queixa!)
         7. A água da Mina da C ... é utilizada exclusivamente para o prédio do autor no período da merugem e na sua totalidade no período da rega, pelo que este (o autor ou os seus caseiros) nem sequer necessita de ir, diária ou semanalmente, à mina para abrir ou fechar a água!
         8. Nenhum prejuízo, pois, teve o autor com a construção dos muros.
         9. Acresce, por outro lado, que o autor não tem legitimidade para defender a Quelha ... esta se e enquanto pertença ao domínio público, facto que a Junta de Freguesia de ... assume mas, conhecedora da situação e do abandono do interesse vicinal da quelha, não quis pleitear.
         10. Os factos apurados e trazidos pelas próprias testemunhas do autor – aludidos, por referência, supra - impunham uma decisão diversa e isto porquanto;
         11. A Sr. juíza a quo fez, com o muito e devido respeito, uma errada aplicação do direito aos factos que emergiram quer dos enunciados nos articulados quer dos depoimentos das testemunhas do autor, este que nem tinha sequer, antes da ampliação do pedido, o ónus da prova...!
         Normas jurídicas violadas: arts. 335º/2, 1561º e 1565º/1 do CC e arts. 4º e 273º ss CPC.

                                                                 *

              Questões que importa solucionar:

              As conclusões 1 e 2 respeitam ao despacho que admitiu a amplia-ção do pedido. O réu não interpôs recurso desse despacho quando o devia ter feito. Por isso, ele transitou em despacho. Não é agora, no recurso da sentença, que o réu o pode pôr em causa. Estas conclusões não levantam, por isso, questões que possam ser objecto deste recurso. A conclusão 10ª não tem autonomia face que constava das conclusões 3ª a 9ª.

              Ficam assim por resolver as questões levantadas pelas outras con-clusões, ou seja: do relevo dos factos referidos nas 3ª, 4ª, 5ª, 7ª e 8ª con-clusões; se nesta acção está em causa a defesa de um caminho público e, nesse caso, se o autor tem legitimidade material para a mesma; se o autor tem o direito de passagem pelo local do carreiro delimitado pelos dois mu-ros construídos pelo réu, como adminiculae de uma servidão de aqueduto e se, por isso, se justifica a condenação do réu a destruir os muros.

                                                                 *

              Foram os seguintes os factos dados como provados (os sob alíneas vêm dos factos assentes e os sob números vêm da resposta aos quesitos):
         A) M (…) tem inscrita a seu favor (ap.11 de 20/11/1997) a aquisição, por doação com subsequente partilha em vida, do prédio rústico designado ... ou ..., terreno de cultura, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº. ... e inscrito na matriz sob o artigo ...º.
         B) M (…) faleceu em 21/08/2000, sucedendo-lhe como único herdeiro o autor.
         C) Desde há mais de 20 anos que o autor, por si e antepossuidores, no prédio A), procedem à cultura, semeando e recolhendo os produtos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, na convicção de que não lesam interesses de outrem e de que são seus legítimos proprietários.
         D) O réu tem inscrita a seu favor (ap. 8 de 11/10/2000) a aquisição, por sucessão hereditária, do prédio urbano, sito em ..., ..., ..., descrito na CRP de ... sob o n.º 2336 e inscrito na matriz sob o artigo 111º
         1. O prédio D) é composto por casa de habitação, anexo e recinto.
         2. A sul do prédio D) existe um carreiro de trânsito de pessoas e animais, conhecido por Quelha do ou da P...., com um rego ou levada de condução permanente de águas, na maior parte a céu aberto.
         3. Até há pouco, o prédio D) era vedado do carreiro referido no número anterior, por um muro de alvenaria com cerca de 2 m, paralelo ao carreiro.
         4. Já no ano de 2009, o réu suprimiu o muro referido em 3 e ergueu nos seus topos, a nascente e a poente, dois muros da mesma altura, transversais ao carreiro, referido em 2 e 3, impedindo o trânsito no mesmo, numa extensão de cerca de 10 m.
         5. O prédio A) é abastecido desde há mais de 30 anos, com águas diversas provenientes da designada Mina da C ....
         6. A Mina da C ... situa-se a cerca de 30 m do prédio D) e é constituída por duas aberturas de altura superior a 1 m e largura superior a 0,5 m, escavadas no saibro com as bocas bem visíveis e permanentes, construídas em pedra sobreposta, que deitam ou escoam directamente para um pequeno tracto de terreno ligeira-mente abaulado, onde represa alguma água, ladeado por muros de pedra, terra e cômoros.
         7. No pequeno tracto referido em 6 são as águas captadas, no início do carreiro Quelha ..., por meio de uma boca ou abertura rectangular, bem visível, existente há mais de 40 anos, feita pelo homem em pedra sobreposta com cerca de 15 cm de largura, seguindo encanadas, em aqueduto subterrâneo capeado em pedra com torças de granito, sob o leito do referido carreiro.
         8. A cerca de 50 m de captação, e seguindo sempre a Quelha ..., junto ao muro poente construído pelo réu, o dito rego passa a céu aberto, existindo aí uma abertura contornada em pedra sobreposta, continuando daí em rego de pedra, demarcado e definido, até ao caminho novo, atravessando-o, aqui em manilhas de cimento subterrâneas, para entrar no prédio A), junto ao portão de ferro, onde existe um buraco entalhado pelo homem no muro de pedra que separa o prédio A) do caminho.
         9. O rego, o aqueduto e a mina referidos nos pontos anteriores existem, de forma visível e permanente, desde há mais de 100 anos.
         10. Sempre o autor e seus antepossuidores exerceram a captação e a passagem daquelas águas, conduzindo-as para o prédio A) e aí utilizando-as, para rega e merugem.
         11. Bem como passaram no carreiro Quelha ..., para tapar e abrir as águas provenientes da Mina da C ..., bem como para o seu acompanhamento ou vigilância e limpeza, desobstrução ou conservação do rego e mina.
         12 a 16. O autor e seu antepossuidores actuavam da forma descrita em 10 e 11 há mais de 100 anos. Convictos de exercerem um direito próprio, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja.
         17. A conduta do réu referida em 4 impede o autor de acompanhar a condução da água nos termos referidos em 5 a 8.
         18. Esse facto, para além de comprometer a utilização da água, obriga o autor a dar uma volta, percorrendo uma distância superior a 200 m, para ir de um muro ao outro dos que o réu ergueu, os quais distam entre si 10 m.

                                                                  I

              Na conclusão 3 o réu está a afirmar, ao fim e ao cabo, como se vê também da conclusão 10, que os factos que aí invoca deviam ter sido considerados como provados.

              Os factos são: a Quelha ... era apenas passível de trânsito pedonal e a Quelha ... não se dirigia “...a ponte ou fonte com manifesta utilidade pública...”.

              O primeiro facto não foi alegado pelo réu, pelo que, assim, sem mais nada, não poderia ter sido objecto de prova e por isso não pode ser considerado provado.

              Já quanto ao segundo facto, ele foi alegado, embora subsidiaria-mente…

              Mas como ele não foi levado à base instrutória, não se pode discutir se ele está provado ou não. Pode-se apenas discutir se ele devia ter sido levado à base instrutória.

              Ou seja: tem interesse saber se o carreiro não se dirigia a ponte ou fonte com manifesta utilidade pública?

                                                                 II

              O pedido original do autor – pedido que subsiste – é objecto típico daquelas que se chamam acções de simples apreciação negativa

              O prof. Castro Mendes diz que este tipo de acções, de simples apre-ciação negativa (Direito Processual Civil, AAFDL, 1977/78, vol. I, págs. 277/283, especi­almente págs. 280/283), podem ser vistas como uma acção normal, com objecto determinado e causa de pedir, ou seja, fundamento possível, igual-mente determinado, da relação ou facto negado pelo autor, fundamento esse cuja inexistência ou ineficácia o autor alega e deve provar. Ou como uma acção peculiar, em que o autor se pode limitar a negar certa relação (possi-velmente até determinada em abstracto), não invocando qualquer funda-mento – antes empurrando para o réu o ónus de precisar o que impugna nessa negação e o seu fundamento.

              E depois faz a distinção entre aqueles casos que o réu previamente se arrogue injustificadamente de certo direito e os casos em que não há uma prévia arrogância da parte do réu.

              Nos casos em que há arrogo, compete ao autor a alegação e prova da arrogância do réu e ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (art. 343/1 do Código Civil). Neste caso estamos perante uma acção “do tipo a que os antigos chamavam provocatio ad agendum (ou acção de jactância ou de provocação): coloca outra pessoa (mas sibi imputet, pela sua arrogância) em situação semelhante à do autor, com o ónus e risco de fundamentar o seu direito”.

              Nos casos em que não há uma prévia arrogância da parte do réu, cabe ao autor alegar e provar o fundamento possível, determinado, da relação ou facto por si negado, bem como a inexistência ou ineficácia desse fundamento.

              Antunes Varela, no seu Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, Coimbra Editora, começando por esclarecer que a admissibilidade das acções de simples apreciação negativa “dependerá da existência de um interesse processual na sua propositura, mas não de se ter o réu arrogado a titularidade do direito que o autor pretende negar, ao invés do que, primo conspectu, se poderia depreender do disposto no art. 343/1 do CC” (pág. 20 nota 2, 2º§), acrescenta mais à frente (págs. 460/461) que nos casos em que é o réu quem, antes de a acção ser proposta, alardeia a existência do direito ou do facto, cuja inexistência o autor pretende seja declarada, a solução aceite pela lei (art. 343/1 do CC) não é a de competir ao autor o ónus de provar o facto constitutivo da sua pretensão sob pena da acção vir a ser julgada improcedente; antes a lei, movida pela ideia de ser, por via de regra, mais fácil provar a existência dum direito ou dum facto (apontando para determinada causa específica de um ou outro) do que demonstrar a sua inexistência (eliminando todas as causas possíveis da sua produção) converteu, no que se refere ao onus probandi, estas acções em verdadeiras provocationes ad agendum.

              Anselmo de Castro depois de esclarecer que “a interposição da acção de mera apreciação requer um real interesse em agir, consubstanciado num estado de incerteza objectiva que possa comprometer o valor ou a ne­gociabilidade da própria relação jurídica” (pág. 117), acrescen­ta mais à frente (págs. 122/125) que “as acções de declaração negativa apresentam a particularidade de o réu poder vir a ser colocado na necessidade de ir a juízo demonstrar a existência dum direito em altura que lhe não seja propícia, quando não disponha, de momento, dos elementos bastantes para a sua prova”, mas mesmo assim não é ao autor que cabe a prova da inexistência do direito ou facto em questão, é ao réu que cabe o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito (“caberá ao réu a prova da existência do direito que o autor lhe nega”), cabendo ao autor, se o réu fizer essa prova, demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extinti­vos do direito invocado pelo réu e a mais disso de provar o interesse em agir. E esclarece que não devem impressionar as dificuldades em que venha a ser colocado quem se arrogou o direito, “uma vez que foi precisamente ele que tomou essa atitude cujas consequências lhe caberá arrostar.”

              Quanto aos argumentos a favor da desnecessidade do pressuposto processual do interesse em agir, Anselmo de Castro explica que o nº. 2 do art. 662 do CPC, que apenas inverte o ónus das custas nas acções que se se peça a condenação em prestação ainda não vencida, refere-se tão só às acções de condenação e não de simples apreciação e apenas rege para as situações em que o autor dá como vencida a obrigação embora injustificadamente, e nesse sentido aponta, a contrario, o nº. 2 do art. 472 do CPC. Por outro lado, diz, a prescindir-se do interesse em agir graves inconvenientes resultariam para os particulares, como para os próprios tribunais: - para os particulares porque ver-se-iam facilmente e sem motivo demandados como réus, e postos, portanto, na necessidade de ser defenderem; para os tribunais, uma vez que, recusada a necessidade do interesse em agir, poder-se-iam multiplicar as causas sem verdadeira razão de ser. A simples condenação em custas não constitui motivo inibitório suficiente para obviar a estes inconvenientes. Eles apenas serão afastados se fizermos funcionar o interesse em agir como pressuposto processual (págs. 120 e 121).

              Lebre de Freitas (Introdução ao processo civil. Conceito e princí-pios gerais. À Luz do código revisto. Coimbra Editora, 1996, págs. 27 e 28 e nota 27) explica que: “[…a]  questão da exigibilidade do interesse em agir, como pressuposto processual, tem sido posta sobretudo no domínio da acção declarativa de simples apreciação, para a qual os defensores do pressuposto exigem que se verifique uma situação de incerteza objectiva-mente grave, de molde a justificar a intervenção judicial […] não bastando nunca uma incerteza subjectiva independente da ocorrência de factos que possam afectar o interesse material do autor”. Depois, entre o mais, lembra que nas acções de condenação o interesse processual está in re ipsa quando o autor afirme que o seu direito foi violado. E mais à frente: “A ideia de que a falta de interesse processual só é invocável pelo réu […] não colhe: a exi-gência do interesse processual baseia-se fundamentalmente na necessidade de não sobrecarregar os tribunais com acções inúteis, razão de ordem públi-ca que justifica o seu conhecimento oficioso, imposto, aliás, pelo art. 495; a própria falta de um conflito de interesses na base do processo […], tradu-zindo-se em falta de interesse processual e podendo dar azo a acções injus-tificadas contra incertos, não pode deixar de ser oficiosamente conhecida. Poder-se-á, pois, concluir que a exigência do interesse processual só entre nós se poderá pôr […] enquanto exigência dum interesse sério para o recur-so a juízo, mas independentemente da espécie de acção que se venha a propor”.

              E ainda mais à frente (nota 27 da pág. 29) esclarece: “[…a] acção de simples apreciação dum direito não visa, por definição, tutelar um direito (do autor), mas negar a existência dum direito do réu. Implicando a exigência do interesse processual […] que o direito (negado) do réu seja contrário a um direito incompatível do autor ou tenha como correlativo um dever destes para com o réu, a negação da tutela do direito concreto do réu pode ainda ser reconduzida à ideia da tutela dum direito, concreto ou abstracto (à liberdade de auto-vinculação) do autor.”

              Quanto ao ónus da prova esclarece (págs. 33 e 34): “Normalmente, ao autor (e ao réu reconvinte) caberá provar os factos constitutivos e ao réu (e ao autor reconvindo) os factos impeditivos, modificativos e extintivos, sem prejuízo de ao autor caber ainda a prova dos factos que impeçam, modifiquem ou extinguem os efeitos que o réu alegue; mas nas acções de simples apreciação negativa dá-se o inverso (art. 343/1 do CC).

              Na Acção declarativa comum à luz do Código revisto, Coimbra Editora, 2000, págs. 37 e 38: explica: “[…o] autor há-de indicar os factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer ou negar, ou integran-tes do facto cuja existência ou inexistência afirma, os quais constituem a causa de pedir (art. 498-4), que corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido, embora pela natureza das coisas, essa indicação não tenha, nas acções de simples apreciação negativa da existência dum direito (não na acção de simples apreciação negativa da existência dum facto jurídico, que, como tal, tem de ser individualizado […] mas já pode não […] conter [a individua-lização] a pretensão da inexistência do direito real) o mesmo rigor que naquelas em que o autor afirma a existência dum seu direito (cabe ao réu, nestas acções, a prova dos factos constitutivos do seu direito [art. 343-1 do CC] bem como a sua alegação [art. 502-2], pelo que, sem prejuízo da dedução, sempre possível, da reconvenção […] a acção de simples apreciação se mantém, até à contestação, aberta a todos os eventuais factos constitutivos do direito do réu. Assim, ao autor mais não é exigível, ao propor a acção, do que a alegação dos factos, do seu conhecimento, que o réu afirma como consti-tutivos do seu direito, ou, no limite, do que a individualização do direito que o réu se arroga sem dizer porquê. Antes do CC de 1966 era discutido se […] cabia ao autor alegar e demonstrar a inexistência do direito, isto é, provar a inexistência dos factos de que ele derivaria […] ou se, ao invés […] cabia ao réu alegar e provar os factos constitutivos do seu direito. O art. 343/1 do CC resolveu a questão nestes sentido, mais próximo da configuração da velha provocatio ad agendum (juízo de provocação ou de jactância) […]. A jurisprudência passou então a enunciar a causa de pedir nas acções de simples apreciação negativa como constituída pela inexistência do direito que o réu se arroga e pelos “factos materiais cometidos pelo réu, susceptíveis de objectivar uma incerteza prejudicial para o autor devido a essa arrogância”, só destes tendo o autor o ónus da prova […]. A exigência do estado de incerteza gerado pelas afirmações do réu, ou por outros factos igualmente graves e susceptíveis de justificar a intervenção judicial, é manifestação do pressuposto processual ou interesse em agir, mas o conteúdo dessas afirmações, em si, ou esses outros factos (actuações conformes com a existência do direito do réu […]), constituem sob a forma negativa, a causa de pedir neste tipo de acções, isto é, os factos dos quais tanto quanto o autor sabe, o réu retira a afirmação do seu direito ou uma prática conforme com a sua existência, ainda quanto para tanto sejam manifestamente insuficientes […]”.

              Remédio Marques também exige o interesse em agir como pressuposto processual (Acção declarativa à luz do código revisto, Coimbra Editora, 2007, págs. 86 a 89).

              Até aqui existe pois uma posição unânime da doutrina: nas acções de simples apreciação negativa em que o réu se arrogue um certo direito, cabe-lhe a ele a prova dos factos constitutivos desse direito. E uma quase unanimidade quanto à exigência do interesse em agir como pressuposto processual, interesse em agir que não se confunde com a necessidade de demonstração da existência do direito do autor.

              Existem, no entanto, vozes doutrinais discordantes, quais sejam, a de Teixeira de Sousa (As Par­tes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex, 1995, págs. 114/116, 220/221 e 260/261; veja-se também, do mesmo autor, as págs. 30/33 do In­teresse Processual na Acção Declarativa, 1989, AAFDL), que acompanha Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado, vol. III, 3ª edição, reimpressão de 1981, Coimbra Editora, págs. 288/291) e é acompanhado por Oliveira Ascensão (Tribunal competente; acção de simples apreciação negativa respeitante a sentença estrangeira violadora da ordem pública in­ternacional portuguesa, publicado na CJ.85.4.21/31, especialmente 2ª coluna da pág. 27).
              Para Teixeira de Sousa só quando o réu deduzisse um pedido reconvencional é que teria de provar os alegados factos constitutivos do direito que se arroga; caso não seja deduzido pedido reconvencional, incumbiria ao autor, como em qualquer outra acção, provar os factos invocados como causa de pedir, constituída pelos factos impeditivos ou extintivos do direito alegado pelo réu ou pelos factos dos quais o autor retira a inexistência da­quele direito.

              Diz taxativamente o referido autor (págs. 260/261):

              “Se o autor propõe uma acção de apreciação negativa (art. 4°, n° 2, al. a)), cabe-lhe a prova da inexistência ou do facto impeditivo, modificativo ou extintivo da situação jurídica (que é a causa de pedir dessa acção) e somente perante esta prova se devolve à contraparte a prova do facto constitutivo dessa situação (arts 342°, nº 2, e 343°, nº 1, CC). Esta solução para o ónus da prova nas acções de apreciação negativa decorre da vigência na­quelas acções, como, aliás, em todas as demais, do ónus de alegação da causa de pedir [arts 467°/1c) e 193º/2a); cfr. STJ - 4/I/1979, BMJ. 283, 136], o que, dada a correspondência, em regra, entre o ónus da alegação e o ónus da prova, significa que é essa a factualidade que deve ser provada pelo autor. Ao réu só cabe o ónus da prova dos factos constitutivos da situação jurídica negada pelo autor se essa parte pretender que, sendo a acção julgada improcedente, se reconheça a prova da existência da situação jurídica (e não apenas a falta de prova da inexistência dessa situação), devendo para tal formular o correspondente pedido reconvencional (art. 274, nº 1). Se o autor da acção de apreciação negativa não prova o facto impeditivo, modificativo ou extintivo que alega como causa de pedir e o réu não prova o facto constitutivo, a acção é julgada improcedente (art. 516°). Mas neste caso só fica decidida a falta de prova da inexistência da situação jurídica (e não a prova da existência dessa situação) pelo que o autor pode propor uma outra acção com fundamento num outro facto impeditivo, modificativo ou extintivo da situação negada”.

              E antes (pág. 220) tinha deixado expressamente dito que a atribuição ao réu do ónus da prova dos factos constitutivos (art. 343/1 do CC) não significa que o autor fique isento da prova da inexistência da situação jurídica.

              No mesmo sentido, vai Remédio Marques, obra citada, págs. 89 a 91.
              Manuel de Andrade é também posto ao lado destes autores, citando-se o seu Noções Elementares de Processo Civil, 5ª edição, Coimbra Edito­ra, pág. 205 ou 2ª edição pág. 204; no entanto, a edição actualizada por Herculano Esteves, de 1979, da Coimbra Editora, pág. 205, diz-se expres­samente o seguinte: “nas acções de simples apreciação negativa [...] o ónus probatório compete ao réu, a ele incumbindo a prova da existência do direi­to que se arroga, e não ao autor a prova da não-existência do mesmo direito. Conquanto nos pareça não ser esta a melhor solução, o artigo 343/1 do CC não admite doutrina diferente” e em nota adverte que “a improcedência destas acções faz caso julgado (material) no sentido da existência do direito que o autor pretendia negar; esta solução, que reputámos correcta ainda quando a improcedência da acção não equivalia à prova da existência do direito, não pode suscitar agora qualquer dúvida, pois que a improcedência resulta da prova efectiva do direito”.

              Posto isto, e ao menos nas acções de simples apreciação negativa de um direito de que o réu se arrogue, opta-se pela primeira posição, entendendo-se que esta segunda posição esquece que: no caso do arrogo pelo réu de um dado direito, existe actualmente norma legal expressa a impôr o ónus da prova dos factos constitutivos do direito invocado ao réu (art. 343/1 do CC); a causa de pedir do autor se basta com a invocação da arrogância por parte do réu e com a invocação de um interesse em agir; não demonstra que a lei tenha querido afastar os antigos juízos de jactância; e seria praticamente impossível o autor fazer prova da in­verificação de todos e qualquer um dos modos de aquisição do direito invo­cado (no caso dos direitos reais, todos aqueles referidos expressa e implicitamente no art. 1316º do CC).

              Para mais, o exemplo que esta última posição dá (na versão de Remédio Marques, pág. 90), não convence: se o réu anda por aí a alardear que o autor lhe deve 100 e este diz que nunca teve qualquer tipo de relação com o réu que desse origem àquele suposto crédito, não pode ser exigido ao autor que alegue e prove qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito, porque eles não existem…

              Concluindo: segue-se a posição da primeira corrente doutrinal, impondo ao réu o ónus da prova dos factos constitutivos do direito de que se arrogou e ao autor a demonstração do arrogo e do interesse em agir (que não é o mesmo que a demonstração do direito incompatível com o do réu…, embora, como é evidente, esta inclua aquela).

                                                                 III
              Note-se, no entanto, o seguinte: tudo isto só é válido para as acções de simples apreciação negativa.

              Nas acções de condenação, como diz o prof. Lebre de Freitas, o interesse processual é inerente à afirmação do direito violado. E nestas o autor tem que alegar e provar que o seu direito existe e que ele foi violado. Se não se demonstrar a existência do direito, a acção improcede. Ainda como diz o prof. Lebre de Freitas, Introdução…, pág. 25: “pressuposto lógi-co da condenação é também a violação dum direito […].” Ou como expõe Antunes Varela, obra citada, pág. 17: “Nas acções de condenação, o autor ou requerente, arrogando-se a titularidade dum direito que afirma estar sen-do violado pelo réu, pretende se declare a existência e a violação do direito e se determine ao réu a realização da prestação (em regra, uma acção, mas podendo bem ser uma abstenção ou omissão) destinada a reintegrar o direito violado ou a reparar de outro modo a falta cometida.”

              Como é evidente, quando se acrescenta um pedido de condenação numa acção de simples apreciação, esta transmuda-se numa acção comple-xa, em parte de simples apreciação e em parte de condenação, valendo quanto a cada pedido as regras próprias acima referidas.

              E agora registem-se as posições assumidas pelo autor nestes autos ao longo do processo, citadas acima:   não alegava quaisquer factos demons-trativos do seu direito de passar pelo local do carreiro dito apropriado pelo réu porque, dizia, a acção era de simples apreciação negativa. Depois de instado pelo despacho judicial de aperfeiçoamento, vem dizer que dado o tipo de acção não importa o direito do autor mas condescende em alegar alguns factos, fazendo-o em relação ao seu direito às águas. Por fim, vem acrescentar um pedido de condenação do réu, a pretexto de que se trata do desenvolvimento do pedido anterior.

                                                                IV

              Posto isto…

              Quando alguém inicia uma construção num dado espaço, está a arrogar-se tacitamente titular de algum direito que o legitima a fazê-lo. Se outrem tiver razões para se sentir prejudicado por tal construção, pode vir a tribunal pedir a declaração da inexistência desse direito, provocando, desse modo, o construtor a vir alegar e provar que é titular do mesmo.

              Foi o que o autor fez: alegou o prejuízo que lhe advinha, para si, da construção de dois muros pelo réu e pediu ao tribunal que declarasse a inexistência do direito a que o réu tacitamente se arrogava. A situação não era injusta para o réu, pois que, se ele se arrogava de um direito, não lhe devia ser difícil prová-lo. E não facilitava a litigiosidade inútil, pois que o autor teria que provar que tinha interesse em agir, ou seja, em fazer aquele pedido, para além de ter de provar o arrogo do réu.

              Perante isto, o réu é de algum modo colocado na posição de autor: ele terá que alegar os factos constitutivos do seu direito e terá que os provar (art. 343/1 do CC).

              No caso dos autos, o réu veio invocar o direito de tapagem do seu prédio (art. 1356 do CC). Logo, o réu tinha que alegar que era proprietário daquele pedaço de terreno delimitado pelos muros. E fê-lo embora de modo conclusivo, ao dizer que o seu prédio confina, a sul, com José Pereira de Campos, o que implica dizer que nada existe entre eles, a norte do último, que não seja terreno do réu.

                                                                 V

              Tendo o réu dito que o seu prédio confinava a sul com aquele outro, o autor tinha uma de duas hipóteses: ou impugnava tais factos ou os aceitava.

              Se o autor impugnasse tais factos e o réu não os provasse, a acção procedia e não interessava para nada saber se o carreiro se dirigia ou não a uma fonte com manifesta utilidade pública.

              Se o autor aceitasse que o prédio do réu confinava a sul com o prédio de terceiro, e portanto que o terreno do carreiro fazia parte do prédio do réu, então caberia ao autor invocar factos que, se estivessem provados, permitissem a conclusão de que apesar do carreiro pertencer ao réu, ele não podia construir muros naquele espaço.

              Uma das hipótese seria a de o autor invocar que tal carreiro era um atravessadouro que se dirigia a uma fonte particular com manifesta utilidade pública, razão pela qual, apesar de ser um atravessadouro e de a maior parte deles ter sido abolidos, este se mantinha (arts. 1383 e 1384 do CC).

              E ao réu caberia impugnar tal facto.

              Assim, pode-se concluir que o facto que o réu está a invocar, não é um facto relevante, mas sim matéria de impugnação que não tinha que ser levada à base instrutória. Era a afirmação contrária que tinha de ser levada à base instrutória, se o autor a tivesse feito…

              Improcede, por isso, a conclusão 3ª.

                                                                VI

              O mesmo destino tem a conclusão 4ª.

              Ela diz respeito à previsão normativa da abolição dos atravessa-douros e do reconhecimento dos mesmos (arts. 1383 e 1384 do CC). Essa matéria só interessaria se estivesse provado que o terreno por onde o carreiro passa, na parte cujo acesso foi cortado pelo réu, era parte integrante do prédio deste.

              O facto da conclusão 4ª seria matéria de excepção a ser alegada pelo réu, caso o autor tivesse alegado que o atravessadouro se dirigia a fonte particular de interesse público (art. 1384 do CC), o que, como já se viu, o autor não fez.

                                                                VII

              Quanto à conclusão 5ª:

              Tendo o réu alegado que o carreiro estava integrado no seu prédio, o autor podia ter alegado, entre o mais, que apesar de se tratar de um atravessadouro, ele estava estabelecido em proveito de prédios determinados, constituindo servidão. Daqui decorreria que apesar de atravessadouro, ele não tinha sido abolido (art. 1383 do CC). Mas o autor não o fez, pelo que não interessa saber se se tratava de um atravessadouro e se foi ou não abolido.

                                                               VIII

              Quanto à conclusão 6ª:

              Se o réu tivesse conseguido provar – se o tivesse alegado devida-mente de modo a poder ser levado à base instrutória – que o local por onde passa o carreiro é parte integrante do seu prédio, importaria discutir a que título é que o autor poderia, mesmo assim, impedir o réu de construir os muros que agora o estão a delimitar.

              Um desses títulos poderia ser o direito de servidão de passagem, constituído por usucapião, a favor do prédio do autor, sobre o prédio do réu (no espaço do carreiro). Ou poderia ser o direito de passagem para cuidar de um direito de servidão de aqueduto (arts. 1561, 1564 e 1565, todos do CC).

              A sentença recorrida segue por aqui: diz que existia uma servidão privada, de aqueduto, a favor do autor, incluindo o direito de passagem para cuidar dela. Só que assim se esqueceu que, primeiro, o autor negava a existência de qualquer servidão privada e, segundo, que uma servidão tem… um prédio serviente. Ora, como o autor negava a existência de qualquer servidão, não podia ter alegado, nem alegou, os factos necessários à prova da existência da mesma. Daí que a sentença não saiba, como ela próprio o reconhece, se o carreiro é parte do prédio do réu. Ou seja, a sentença está a reconhecer a existência de uma servidão privada sem prova dos respectivos pressupostos, desde logo, o de que a servidão se exerça sobre um prédio devidamente identificado, isto é, o prédio serviente. Está-se a reconhecer a existência de uma servidão, que impede o réu de construir muros, sem se dizer que ele é proprietário do prédio serviente.

              Não pode ser.

              Assim, é certo que a sentença não podia concluir que o autor tem um direito de servidão de aqueduto sobre o terreno por onde passa o carreiro (art. 1561 do CC). Também por isso a sentença não podia dizer que o autor tinha o direito de passagem por tal carreiro para cuidar da servidão de aqueduto (os tais adminiculae da servidão de aqueduto de que fala o réu – art. 1565 do CC).

              Ma isto é irrelevante do ponto de vista da acção do pedido de simples apreciação, porque, um por lado, não está provado que o carreiro passe por terreno integrado no prédio do réu e, por outro, porque o autor não tinha que provar um direito de passagem pelo prédio.

              No máximo, tinha apenas que provar o seu interesse em agir. Mas a demonstração do interesse em agir não vai, como se viu acima, ao ponto de ser equivalente à demonstração de um direito.

              Já é relevante para o pedido de condenação do réu, pois que assim se conclui que quando a sentença fundamenta a condenação na violação do direito do autor de passar, está a fazê-lo sem razão. O autor não provou, ao menos até agora, o direito de que se arroga. Lembre-se: o autor ao ampliar o pedido passou a ter o ónus de prova do seu direito.

              Procede assim, parcialmente, a conclusão 6ª, com os reflexos que se verão adiante.

                                                                IX

              Quanto à conclusão 7ª: o facto de o autor não necessitar de ir, diária ou semanalmente, à mina para abrir ou fechar a água, não implica que o réu tenha direito a vedar o acesso. É este o direito cuja existência está em causa no pedido de simples apreciação.

                                                                 X

              A conclusão 8ª é contrária aos factos provados (factos 17 e 18). Ou, de outra perspectiva, não tem qualquer suporte factual. O prejuizo existe.

                                                                XI

              Quanto à conclusão 9ª: a acção não tem a ver com a defesa de um caminho público. Trata-se em parte de uma acção de simples apreciação negativa, cujos pressupostos já foram analisados. E por isso a legitimidade material existe, como resulta do que já se disse. Quanto à legitimidade processual: já estava resolvida por despacho transitado em julgado.

                                                                XII

              A conclusão 11ª permite, face a tudo o que se disse quanto à conclusão 3ª e quanto à procedência parcial da conclusão 6º, analisar agora o acerto global da decisão recorrida.

              Disse-se acima que ao réu incumbia o ónus de alegação e de prova do facto de ser proprietário do terreno por onde passa, na parte agora em causa, o carreiro delimitado pelos muros construídos. E que se o réu não provasse tal facto, a acção procederia.

              Ora, primeiro, da perspectiva deste recurso, o réu não tem uma úni-ca conclusão dedicada ao tema. Apesar da sentença ter expressamente dito que não se sabia se o carreiro passa pelo prédio do réu, o réu simplesmente recorre partindo do princípio que isso está provado. Como não o está, o recurso assenta, em grande parte, num pressuposto errado. E como são as conclusões que delimitam o objecto do recurso (arts. 684/3 e 685-A/1 do CPC), este tribunal de recurso nem sequer poderia levantar, autonoma-mente, a questão de não ter sido levada à base instrutória a afirmação de que o prédio do réu confinava com prédio de terceiro (e não com o carreiro).

              Segundo: tudo o que o réu disse, na contestação, era que o seu prédio confinava a sul, com um prédio de terceiro. Esta alegação é perfeitamente conclusiva. Dizer isso é a mesma coisa que afirmar, no caso, que o réu era proprietário do local por onde passava o carreiro. Mas isso é conclusão de direito dependente da prova de factos que tinham que ser alegados. Como o réu não os alegou, os mesmos não podiam ser levados à base instrutória. Por isso, também por aqui, tal questão não tem relevo.

              Em suma, perante os factos provados – os únicos que podem ser considerados (sendo que os factos invocados pelo réu no seu recurso não têm qualquer relevo nos termos que acima foram referidos) – a decisão recorrida está correcta quanto ao pedido original e não pode ser modificada.

                                                               XIII

              Mas quanto à parte ampliada do pedido, a decisão não tem suporte factual suficiente.

              O facto de o réu não ter conseguido demonstrar nesta acção que tem o direito que se arroga, não quer dizer que o autor tenha o direito de lhe exigir a demolição do que construiu.

              E isto porque, formalmente, na parte do pedido ampliado, a acção é de condenação e nesta o autor tem que fazer a prova do seu direito e de que este foi violado.

              E, materialmente, porque para que um particular, numa acção particular, possa exigir de outro que destrua aquilo que construiu, tem que alegar a base legal para o efeito e essa base legal não é nunca apenas a inexistência do direito do réu a construir no local, já que os particulares, como tal, não têm poderes de fiscalização da actividade levada a cabo por outros particulares.

              A base legal poderia ser a invocação da violação de um direito do autor, ou então uma norma legal qualquer que lhe permitisse o pedido de destruição de coisa construída em violação de um seu interesse.

              Ora, o autor, a pretexto de que a acção era uma acção de simples apreciação negativa, não invocava qualquer direito ou qualquer norma legal que lhe permitisse pedir e obter a destruição dos muros construídos pelo réu. Tanto que não a pedia. Só depois do convite que a Srª juíza lhe fez, é que o autor veio, insistindo na desnecessidade de o fazer, invocar um direito.

              Mas mesmo aí, limitou-se a invocar um direito que primeiro ainda sugeriu ser de utilização das águas (dizia: “o direito às ditas águas para rega e merugem do seu prédio) e mais tarde veio dizer ser de propriedade das águas.

              Mas isso para demonstrar o seu interesse em agir, nesta acção que era inicialmente uma acção de simples apreciação negativa, não para demonstrar o seu direito de passagem pelo local do carreiro naquela parte.

                                                               XIV

              Seja como for…

              Os factos provados permitem concluir que o autor tem um direito que lhe permita a passagem pelo local do carreiro, na parte onde o réu construiu os muros? Se assim fosse, o autor teria o direito de exigir a destruição dos mesmos. Ou melhor: a uma abertura neles que lhe permitisse o acesso ao mesmo.

              De que direito se trata?

              Já se viu que o autor não diz qual seja.

              A sentença, já se viu, parece considerá-lo como um dos adminicu-lae da servidão de aqueduto… que o autor expressamente dizia não ter e que já se viu não ter ficado provado porque teria de ter como pressuposto que o réu fosse proprietário do local em causa. E isto vale para qualquer servidão que pudesse estar em causa, inclusive as servidões administrativas (hipótese de que o autor nem sequer fala. De qualquer modo essas serventias públicas, para além de normalmente serem constituídas em benefício de uma povoação, também oneram os prédios particulares, “pelo que o respectivo leito pertence aos proprietários dos prédios sobre que essas serventias incidem” (Antunes Varela, obra citada, págs. 284/285)). 

              Aliás, na resposta à contestação, peça que numa acção de simples apreciação negativa deve ter a função de servir de articulado onde o autor deve alegar os factos correspondentes a excepções ao direito alegado pelo réu, o autor, em vez de o fazer, limita-se a dizer expressamente, que “não reclama qualquer direito sobre o prédio do réu” e depois, na nova resposta à contestação, acrescenta: que “não está invocado um direito de servidão de aqueduto”.

              Mais, se o autor não invoca qualquer servidão de aqueduto e se a usucapião está dependente de uma manifestação de vontade do seu futuro titular (“a aquisição por usucapião não é automática, antes depende de uma manifestação de vontade do possuidor em benefício de quem estejam reuni-dos os requisitos legais […] O efeito aquisitivo resulta da manifestação da vontade”: Oliveira Ascensão, obra citada, pág. 300), como é que a sentença pode basear uma condenação por violação desse direito que o autor recusa ter?

              O autor poderia vir agora dizer que não tem um direito de servidão sobre o prédio do réu, mas sobre um prédio de outrem. Mas a verdade é que nunca o disse antes, nem se sabe de quem é que seria esse prédio (o que sentença reconhece expressamente) nem manifestou a sua vontade em adquirir por usucapião tal direito, nem mesmo o invocou….

              O autor fala sempre pela negativa e de forma imprecisa. Para além de tudo o que já foi sendo citado, vejam-se ainda as suas contra-alegações: nas linhas 3 a 5 e 13 da pág. 3 do recurso, o autor diz que o atravessadouro (que não é atravessadouro) dos autos está fora de terrenos privados, fora pelo menos do terreno do réu; e nas linhas 15 e 16 da pág. 4 diz que não vem alegada [por ele] sequer – nem interessa tão pouco – a natureza dominial da quelha em questão: assim, o autor não sabe e não diz se o leito do carreiro fica em prédios privados ou no domínio público. 

                                                                XV

              Poderia estar em causa um atravessadouro com as características do art. 1384 do CC. Mas o autor não invocou todos os elementos de facto da previsão da norma em causa: designadamente que o atravessadouro se diri-gisse a uma fonte de manifesta utilidade… pública (Antunes Varela, CC anotado, vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 283, citando nesse sentido o ac. do TRP de 17/12/1971, sumariado no BMJ. 212, págs. 291/292).

              Aliás, na nova resposta à contestação, o autor diz: “não está invocado um direito de servidão de aqueduto, muito menos que tal direito seja de outros”, com o que afasta a utilidade pública da passagem.

                                                               XVI 

              O autor também podia ter invocado que o carreiro se trata de um caminho público. Mas não alegou nenhum dos factos necessários para que se pudesse chegar a essa conclusão.            Por força do assento do STJ de 19 de Abril de 1989 (publicado no Diário da República de 2/6/89 e analisado por Oliveira Ascensão num artigo publicado na revista O Direito, 1991, pág. 535 e seguintes), “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.

              Este assento do STJ, deve, como diz o acórdão de 10/11/1993 (publicado no BMJ 431/300) ser interpretado no sentido (restritivo) de o “uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, sem a qual não é lícito o reconhecimento da dominialidade pública”.

              Um outro acórdão, da Relação de Évora de 3/2/2000, publicado na CJ.2000.I.273, diz que não basta para integrar o primeiro requisito estabelecido pelo assento de 1989 - utilização pelo público em geral – a existência de um acesso aberto a pessoas determinadas ou a um círculo determinado de pessoas.

              Aliás, o próprio autor, na resposta ao recurso, diz expressamente que não está em causa, para ele, qualquer problema de dominialidade: “não vindo provada, nem alegada sequer – nem interessa tão pouco – a natureza dominial da quelha em questão” (§2 do ponto 5 da pág. 4 das contra-alegações).

                                                              XVII

              Continuando na busca do direito do autor, pergunta-se: se as águas forem do autor, ele tem o direito de as fazer passar pelo carreiro no local delimitado pelo réu com os muros e de acompanhar essa passagem?

              E assim: primeiro: as águas são propriedade do autor?

              As águas são públicas ou particulares (art. 1385 do CC). As águas particulares são as previstas no art. 1386 do CC. O autor não alegou factos suficientes para permitir concluir que as águas em causa são particulares. Assim, não se pode dizer que as águas sejam propriedade do autor. Segundo lembra Tavarela Lobo, Manual do Direito das Águas, Vol. I, Coimbra Editora, 1989, pág. 59, “a simples condição jurídica do solo é só por si insuficiente. Como ensina Guilherme Moreira, em terrenos públicos pode haver águas particulares, do mesmo modo que em prédios particulares pode haver águas que, sendo utilizadas por todos, se devam considerar públicas, ou em relação às quais há uma limitação ao direito de propriedade em virtude de um direito que está no domínio público”.

              O autor tem o direito às águas da Mina da C ... para rega e merugem do seu prédio? O autor diz que sim. Mas esse direito, já se viu, não pode ser derivado de ser proprietário das águas, pois que não se provou que o seja.

              Dir-se-ia, de qualquer modo, que teria adquirido, por usucapião, o direito às ditas águas para rega e merugem. Mas a utilização de águas para as necessidades de rega e merugem de um prédio, não é a utilização delas como seu proprietário ou como usufrutuário, mas o seu simples uso. Não é a possibilidade de fazer da coisa o que se quer, mas a de a usar para um determinado fim. O que está provado é a utilização das águas para rega e merugem (facto 10). Ora, assim, estar-se-ia perante um direito de uso. Ora, os direitos de uso não são usucapíveis (arts. 1293/b, 1484/1 e 1485, todos do CC). E, de resto, também não o são as coisas públicas (art. 202/2 do CC e Oliveira Ascensão, Reais, 5ª edição, 1993. Coimbra Editora, pág. 296; Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex, 1993, reimpressão de 1979, pág. 472) e não se sabe se as águas em causa são ou não públicas. Ora, o autor nada disse sobre a questão, dada a imprecisão de tudo o que disse sobre o seu direito, decorrente da posição que assumiu quanto à natureza da acção.

              O autor podia ter invocado, mas não o fez, o direito de aproveita-mento de águas para fins agrícolas (art. 1558 do CC). Não existem, por isso, factos suficientes para considerar que o caso se inscreve no âmbito da pre-visão deste artigo.

              Não se pode concluir, por isso, dos factos provados de 5 a 11 que o autor seja proprietário das águas ou titular de um direito de utilização das águas. Pode sê-lo ou não. Não se sabe.

              Assim, não pode estar em causa o direito à servidão de aqueduto (e seus adminiculae) previsto no art. 1561 do CC, nem o direito de passagem do art. 1556 do CC (para além de que este último direito tem a ver só com o aproveitamento da água para gastos domésticos).

              Não se podendo concluir por essa titularidade das águas, também não se pode dizer que o autor tenha direito a uma servidão de aqueduto para passagem das mesmas, pois que se as águas forem públicas, a servidão só poderia existiria no caso de haver concessão da água (art. 1562 do CC) e isso quer o local do carreiro fosse parte do prédio do réu, ou de terceiro, quer fosse parte do domínio público. E como a hipótese de o carreiro passar pelo domínio público não pode ser afastada (porque o autor nunca disse a quem é que pertencia o local por onde passa o carreiro) e não é possível constituir-se a servidão de aqueduto através de estradas ou caminhos públicos, ruas, praças ou cursos de águas públicas, vias férreas, etc., sem licença (veja-se ainda Tavarela Lobo, obra citada, vol. II, 1990, págs. 379/381), a servidão não se pode dizer constituída por usucapião.

              Não se podendo falar numa servidão de aqueduto, não se pode invocar o direito de passagem para cuidar dela (os tais adminiculae: arts. 1564 e 1565 do CC).

                                                              XVIII

              Aliás, a imprecisão do direito do autor é tanta que na sentença, face aos factos provados, a dada altura se escreve “em nada releva o facto dos muros não permitirem apenas a circulação na parte do carreiro por onde passam as águas subterrâneas […]”.

              Ora, a verdade é que importa. É que o direito de passagem não existe, como adminiculum da servidão de aqueduto subterrânea. Como diz Tavarela Lobo, obra citada, pág. 392 do vol. II, “No âmbito dos direitos conferidos ao titular da servidão de utilizar tudo o que lhe é necessário para o uso e conservação da mesma, avulta o adminiculum da passagem pelo prédio serviente. Se o aqueduto é subterrâneo, é óbvio que não assiste tal direito ao proprietário do prédio dominante, pois necessita apenas de, quando as circunstâncias o imponham, inspeccionar o aqueduto através dos apropriados óculos de observação ou caixas de visita, Não assim tratando-se de aqueduto ou rego a descoberto […]”.

              Pelo que, se for isto o que resulta dos factos provados, o direito de passagem não existe, como diz o réu nas suas alegações de recurso.

                                                               XIX

              Não estando provado qualquer direito do autor, nem, logicamente, a violação de um direito que não se provou, condições de procedência da acção de condenação, não podia haver qualquer condenação.

              Logo, na parte em que a sentença deu procedência ao pedido ampliado, isto é, na parte em que condenou o réu a demolir os muros, ela tem de ser revogada.

                                                                 *

              Sumário:

              I - Nas acções em que só esteja em causa a simples apreciação negativa de um direito de que o réu se tenha arrogado, o autor só tem de alegar e provar esse arrogo e os factos que demonstram o seu interesse em agir, cabendo ao réu a alegação e prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga.

II - Na acção em que também esteja em causa um pedido de condenação, para a procedência deste o autor tem que provar o seu direito e que ele foi violado.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se o 2º§ da parte decisória da sentença recorrida (ou seja, na parte em que condena na demolição).

              Custas pelo autor e pelo réu, quer na acção quer no recurso.


Pedro Martins (Relator)
Virgílio Mateus
António Carvalho Martins