Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
774/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. OLIVEIRA MENDES
Descritores: DIFAMAÇÃO ATRAVÉS DE MEIO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
Data do Acordão: 03/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
Legislação Nacional: ARTIGO 180°, DO CÓDIGO PENAL
Sumário:

Devem-se considerar atípicos os juízos de apreciação e valoração vertidos sobre realizações científicas, artísticas e profissionais ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapasse o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores, criadores e protagonistas.
Decisão Texto Integral:
Recurso n.º 774/04

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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
No processo comum singular n.º 159/99, do 2º Juízo da comarca de Torres Novas, após a realização do contraditório foi proferida sentença que condenou o arguido AA, com os sinais dos autos, na qualidade de director do jornal “BB”, como co-autor, a título de comissão por omissão, de um crime de difamação previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 31º, n.º 3, da Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro, 10º, n.ºs 1 e 2, 180º, n.º1, 182º, 183º, n.º 2, 184º e 1322º, n.º 2, al.j), do Código Penal, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 7,00.
Na parcial procedência do pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente CC, devidamente identificado, foram os demandados AA e DD condenados a pagar a importância de € 3.000,00, com juros à taxa legal de 4% a partir do trânsito em julgado da decisão.
Interpôs recurso o arguido, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da respectiva motivação:
1. O arguido foi condenado com alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e do despacho de pronúncia, o que implica a nulidade da sentença por violação do disposto na al.b) e/ou c), do n.º 1, do art.379º, do Código de processo penal.
2. O arguido foi condenado por um crime praticado por comissão por omissão, pelo que a sentença recorrida deveria ter aplicado o art.10º, 3, do Código Penal, atenuando especialmente a pena. Não considerando sequer norma legal aplicável ao caso que imporia uma decisão diferente, a sentença é nula.
3. A sentença faz uma errada apreciação dos factos, considerando provado aquilo que não resulta dos autos, os quais impõem uma decisão diversa. Estando provado que é desconhecida a identidade do autor do texto, não pode o Tribunal dar como provados factos atinentes à intenção e disposição interior do mesmo, sendo certo que tal não resulta nem do contexto nem da forma.
4. Considerar não provado “que o arguido, em boa fé, reputou de verdadeiro o teor do texto referido em 4” é ininteligível.
5. Atentos os factos demonstrados nos autos, dever-se-á considerar que o arguido agiu com a diligência que lhe é exigida no âmbito do Direito Penal, na identificação do autor do texto, uma vez que sendo o Direito Penal um Direito de última ratio, para que se considere haver violação do dever de identificação do autor do texto, em termos que merecem a reprovação do Direito Penal, não basta que o arguido não tenha agido da forma mais acertada, do ponto de vista do Tribunal a quo. Donde resulta que a sentença recorrida viola o princípio da necessidade que preside à aplicação do Direito Penal.
6. A liberdade de expressão é um direito fundamental consagrado na Constituição da República Portuguesa, que, quando em conflito com outro direito fundamental, deve ser harmonizado, sem contudo poder ser aniquilado. Pelo que a sentença recorrida viola a norma jurídica contida no artigo 18º, da Constituição da República Portuguesa.
7. O arguido agiu de boa fé, no exercício do legítimo direito de informar e no plano de um problema de indiscutível interesse público, sem ultrapassar os limites daquele direito constitucionalmente consagrado, conforme resulta do texto publicado cuja cópia está junta aos autos.
8. A expressão “… este assunto vem colocar a nu a qualidade técnica de certo jurista avençado…” não é ofensiva, pelo que a sentença aplica indevidamente o artigo 180º, 1 do Código Penal, cujos pressupostos não se verificam.
9. Ainda que tal expressão possa ser considerada uma “critica” às qualidades técnicas do avençado da Câmara, não atinge o grau de gravidade que justifica a intervenção do Direito Penal, atento o princípio da última ratio que é violado pela sentença recorrida.
10. O autor do texto não formula qualquer juízo de valor, não faz qualquer comentário atentatório da reputação do assistente, como resulta dos factos provados nos autos.
11. O autor do texto em pareço nos presentes autos não quis atingir o assistente na sua honra e consideração pessoal e profissional. Ao contrário do que diz a sentença na página 25, não basta que o arguido, tenha conhecimento do teor do artigo e não se tenha oposto à sua publicação, para incorrer na prática, a título omissivo, e com dolo eventual, do crime de difamação. Daí que a sentença recorrida condene o arguido em violação do artigo 14º, n.º 3, do Código Penal.
12. Não existem os elementos cognitivo e volitivo do dolo nem este em qualquer das suas modalidades (artigo 14º, do Código Penal), pelo que o crime de difamação fica afastado, por faltar o essencial elemento subjectivo da conduta do agente.
13. A conduta não é punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos, nomeadamente em casos como o dos autos, em que “na altura dos factos, a circunstância de a Câmara de Torres Novas ter perdido uma acção judicial em que foi condenada a pagar o montante de 28 mil contos a título de juros, constituiu um tema quente e de bastante discussão pública local”. Donde resulta que a sentença deveria ter aplicado o artigo 180º, 2, a), do Código Penal.
14. A veracidade dos factos relatado no texto publicado é notória e não foi posta em causa, pelo que a conduta do agente não é punível nos termos do artigo 180º, 2, b), do Código Penal.
15. Não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil, pelo que não há lugar à indemnização do assistente.
O recurso foi admitido.
Na contra-motivação apresentada a Digna Procuradora Adjunta formulou as seguintes conclusões:
1. As conclusões do recorrente não cumprem os requisitos exigidos pelo n.º 2, do artigo 412º, do Código de Processo Penal, mormente porquanto ao impugnar a decisão proferida sobre a matéria de direito o recorrente, ora não indicou o sentido em que o tribunal recorrido interpretou cada norma, ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada, ou com que deveria ter sido aplicada, ora não indicou sequer qual a norma jurídica em causa, pelo que mercê desta deficiente elaboração das conclusões, deve o recurso ser rejeitado.
2. Não existe violação do disposto nas alíneas b) e/ou c), do n.º1, do artigo 379º, do Código de Processo Penal, porquanto existiu comunicação da alteração dos factos, sendo que tal alteração é não substancial e portanto realizada nos termos do artigo 358º, do Código de Processo Penal.
3. O artigo 10º, n.º 3, do Código Penal, foi aplicado apesar de, certamente por lapso, o Meritíssimo Juiz a quo, não ter feito menção à sua utilização (além de que a atenuação ali prevista, somente facultativa).
4. Uma vez que se trata de matéria de direito ou conclusiva, dever-se-ão ter por não escritos os quesitos 5) e 9), da matéria de facto dada como provada.
5. Afigura-se-nos correcta a interpretação da expressão ”…desde que o seu autor esteja devidamente identificado”, prevista no artigo 31º, n.º 4, da Lei n.º 2/99), exigindo que a identificação fosse feita por exemplo através de bilhete de identidade, precaução que não se exige ao homem médio, na posição do arguido, e portanto a consequente responsabilização do arguido enquanto Director do jornal (uma vez que não foi possível identificar o autor do texto), realizada pelo Meritíssimo Juiz a quo, pelo que nenhum reparo nos merece a sentença.
6. O direito constitucionalmente consagrado de informar, tem limites conforme se afere, quer da própria Constituição quer do artigo 3º, da Lei 2/99, sendo que os limites a esse direito fundamental são precisamente outros direitos fundamentais, nomeadamente o direito ao bom-nome, pelo que inexiste a aludida violação do artigo 18º, da Constituição da República Portuguesa.
7. Inexistem as causas de justificação previstas nos artigos 180º, n.º 2, alínea a) e artigo 180º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, mormente porque a imputação não foi para realizar interesses legítimos, não foi provada a sua veracidade, nem ficou provado que, em boa-fé, o arguido a pudesse reputar de verdadeira.
8. Nos autos ficou provada a existência dos elementos cognitivo e volitivo do dolo, tendo ficado provada a existência do elemento subjectivo do tipo, porquanto o arguido actuou de forma a violar o dever de abstenção implicitamente imposto nas normas incriminatórias, levando a cabo a conduta nelas previstas, sabedor da genérica perigosidade imanente (sem que fosse necessária a previsão concreta do perigo), não tendo evitado, como podia e devia, a publicação do texto, pelo que se encontra preenchido o elemento subjectivo do tipo.
9. Nenhuma censura nos merece a douta sentença proferida nos autos, não contendo a mesma qualquer nulidade, mostrando-se bem fundamentada e tendo-se procedido a uma correcta apreciação da prova, excepção aos factos provados elencados sob os números 5) e 9), que se deverão ter por não escritos (não afectando no entanto a decisão, porquanto dos outros factos dados como provados, resulta que a decisão deverá ser idêntica à proferida na sentença ora em crise).
10. Deve assim a mesma ser mantida nos seus precisos termos, à excepção dos factos provados sob os números 5) e 9), que devem ser considerados não escritos.
O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido da improcedência do recurso.
No exame preliminar a que se refere o artigo 417º, do Código de Processo Penal, deixou-se consignado ocorrer causa extintiva da responsabilidade criminal que põe termo ao processo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Antes de entrarmos no conhecimento da questão suscitada no exame preliminar, cumpre apreciar a questão prévia colocada pelo Ministério Público na contra-motivação apresentada, qual seja a da rejeição do recurso por incumprimento do ónus previsto no art.412º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Brevitatis causa dir-se-á.
É patente que a motivação de recurso apresentada pelo arguido obedece aos requisitos constantes do art.412º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Com efeito, não só vêm ali especificadas as normas jurídicas que o recorrente entende haverem sido violadas, mas também o sentido com que aquelas deviam, na sua óptica, ter sido aplicadas.
Deste modo, certo é inexistir motivo para rejeitar o recurso, pelo que de imediato passaremos a conhecer a questão que suscitámos no exame preliminar.
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Passemos pois ao conhecimento da questão que oficiosamente nos propusemos conhecer e que suscitámos no exame preliminar.
É do seguinte teor a decisão proferida sobre a matéria de facto (factos provados):
1. No jornal semanário “BB”, de 12.11.1999, na coluna “Opinião”, sob o título “O Julgamento da Dívida”, saiu publicado o artigo que se encontra junto a fls.5, dos autos, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais ( - É o seguinte o texto integral do artigo em questão:
«Era uma vez uma Câmara Municipal que devia 57 mil contos a uma firma de materiais de construção do ramo da pedra. Como estalou o verniz, a dita câmara recusou-se a pagar a referida dívida. A firma, para fazer valer os seus direitos, levou o caso a tribunal. Terminado o tortuoso processo, a referida câmara vai ter de pagar (ou teve de pagar) os referidos 57 mil contos e mais 28 mil contos de juros. Totalizando assim 85 mil contos.
Além desse caso e das viagens de vários autarcas a Cabo Verde que ninguém sabe para que servem mas que empobrecem o erário municipal, vimos assistindo a uma ruinosa política de desbaratamento das finanças locais em prejuízo de muitas obras que as juntas de freguesia ou as próprias comunidades locais poderiam realizar com esse dinheiro deitado ao vento.
Gerir uma câmara não é o mesmo que gerir um clube desportivo onde cai quem quer. Gerir uma câmara é lidar com os dinheiros de todos nós que todos pagamos dos nossos impostos. Ou seja, dinheiro do Povo. E o caso agora julgado em tribunal vem mostrar a total falta de diálogo, a ligeireza e a arrogância com que se lida com certas situações as quais, negociadas em devido tempo, não trariam os ruinosos resultados que já são públicos. E os eleitores, aqueles que colocam esses políticos no poleiro, não se esquecerão quando, daqui a dois anos, lhes aparecerem alguns indivíduos a dar apertos de mão ou palmadinhas nas costas a troco não se sabe de quê.
Este assunto vem colocar a nu a qualidade técnica de certo jurista avençado que “aconselhou” a câmara a não pagar porque as dívidas já “estavam prescritas há mais de dois anos”. Felizmente que o tribunal cortou a direito e julgou contra os conselhos do conselheiro tornando improcedente uma coisa que estava à vista de qualquer cego ou analfabeto. Ou seja, a lei ainda não protege os caloteiros… E também é tempo de se saber quem é o responsável por esta situação ou a quem atribuir responsabilidades. Porque é o nosso dinheiro que está em causa. O dinheiro do Povo…
Têm a palavra a Assembleia Municipal, órgão fiscalizador, as Juntas de Freguesia que se lamentam de falta de dinheiro ou os próprios eleitores que exigem obras. Quanto aos restantes credores do município que se cuidem…».
);
2. A seguir ao texto aparece mencionado o nome de “EE”;
3. O articulista, no texto em apreço, mostra-se crítico relativamente à Câmara Municipal m nomeadamente à sua gestão no que tange a uma alegada dívida de 57 mil contos à uma firma de materiais de construção civil;
4. O articulista também escreveu no texto o seguinte: “…este assunto vem colocar a nu a qualidade técnica de certo jurista avençado que “aconselhou” a Câmara a não pagar porque as dívidas já estavam prescritas há mais de dois anos”;
5. O articulista ao referir-se ao Avençado da Câmara, no contexto em que o fez e como o fez, nenhum outro fim teve que não o de prejudicar o bom-nome deste, enquanto advogado;
6. É do domínio da classe política do concelho, dos funcionários do município, de muitos empresários e de muitos outros cidadãos que, o assistente CC, é o avençado a que o articulista se refere no seu artigo;
7. Sendo que o assistente é o único advogado avençado do Município de Torres Novas;
8. O assistente é advogado em Torres Novas há mais de 20 anos e avençado do município há mais de 17 anos;
9. O articulista ao referir-se à qualidade técnica do assistente no contexto em que o fez, quis ofendê-lo no seu bom-nome profissional, e ofendeu-o mesmo;
10. Pretensamente subscrito por um tal “EE”, desconhece-se a verdadeira identidade do autor do respectivo texto ou de quem o mandou publicar;
11. Foi publicado o artigo sem que no jornal em causa fosse exigida a identificação do autor do respectivo texto ou de quem o mandou publicar;
12. O texto foi feito chegar à redacção do jornal em causa num escrito dactilografado mencionando como procedência: “EE, Rua Conselheiro Real, Zibreira, 2350 Torres Novas”;
13. Não se identificou qualquer cidadão com tais sinais;
14. “BB” é um jornal semanário, tem uma tiragem de milhares de exemplares para o concelho de Torres Novas, sendo o semanário regional mais lido neste concelho;
15. O seu Director, à data da publicação, era o arguido AA;
16. O texto do artigo em causa, uma vez na redacção do jornal “BB”, foi pelo arguido AA aproveitado para figurar na coluna “Opinião” da semana.
17. O arguido na qualidade de director do jornal “BB”, tomou conhecimento do artigo, admitiu como possível que o texto referido em 4) pudesse ofender a honra e consideração do assistente enquanto advogado e, ainda assim, não impediu a sua publicação e permitiu a mesma, conformando-se com tal fim;
18. Agiu deliberada, livre e conscientemente;
19. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei;
20. Na altura dos factos, a circunstância de a Câmara Municipal de Torres Novas ter perdido uma acção judicial em que foi condenada a pagar ao montante de 28 mil contos a título de juros, constituiu um tema “quente” e de bastante discussão pública local;
21. No jornal “FF” de 04/11/1999, num artigo com o título “Galinha ganga causa e recebe mais de 80 mil contos” e o subtítulo “Câmara foi condenada a pagar os juros por inteiro” pode ler-se:
“…por aconselhamento do jurista da Câmara tentámos negociar os juros e daí termos interposto recurso…”;
“…outros do argumentos, apresentado pelo advogado da Câmara, dizia respeito à prescrição das facturas…”;
“…fundamentos que não foram considerados válidos…”;
“…e este procedimento da autarquia, através do seu advogado, foi considerado por Rui Galinha como indiciador de má-fé: entre particulares esta prática é frequente, mas o Estado é uma pessoa de bem, pelo que não pode invocar este tipo de razões;
“…os juros que a Câmara pagou a Rui Galinha ascendem a cerca de 28 mil contos”;
22. No jornal “GG”, a capa da edição de 04 de Novembro de 1999 dá destaque a esta notícia, referindo “Câmara condenada em Tribunal “ e subtítulo em destaque “só em juros são 28 mil contos”, podendo-se ainda ler:
“…o Tribunal não aceitou esse argumento. Aliás, esta defesa gerou mesmo alguma polémica provocada em reuniões da Câmara por vereadores da oposição que entendiam não ser admissível a alegação da prescrição da dívida, uma vez que sempre a mesma havia sido assumida todos os anos pela própria Câmara”; Também na Assembleia Municipal (…) trouxe o assunto à baila para contestar o argumento da prescrição…”;
Depois da decisão do tribunal de Torres Novas que condenou a autarquia a pagar toda a dívida e respectivos juros, esta ainda recorreu…”;
Contudo, o Tribunal da Relação de Lisboa recusou os argumentos do devedor e confirmou a sentença do tribunal de primeira instância, pelo que a Câmara tem mesmo que pagar toda a dívida, sendo que só de juros, pelo tempo decorrido, são 28 mil contos”;
23. O arguido é director do jornal “BB”, desde Novembro de 1997, nunca tendo exercido qualquer outra actividade jornalística;
24. Todos os artigos destinados a publicação eram colocados na pasta do director, ora arguido, o qual seleccionava os que seriam efectivamente publicados;
25. O arguido é professor de profissão, auferindo o vencimento de € 1900;
26. Enquanto director do jornal “BB” aufere uma retribuição de € 440;
27. Vive com a sua mulher, funcionária pública, que aufere o vencimento de € 750, e 4 filhos, um deles menor de idade;
28. Possui 3 viaturas automóveis – um de marca Renault 9, com 15 anos de idade; outro de marca Ford Fiesta, com 6 anos de idade; e um outro de marca Opel, com 6 anos de idade;
29. É considerado na comunidade como pessoa séria, honesta e trabalhadora;
30. Tem como habilitações literárias as licenciaturas em Filosofia e Teologia;
31. Não tem antecedentes criminais registados;
32. Em consequência da publicação do artigo, o demandante sentiu-se profundamente incomodado com a forma e conteúdo como foi posta em causa a sua qualidade profissional, tendo sofrido grande desgosto;
33. A publicação do artigo provocou na altura algum descrédito profissional ao demandante;
34. O jornal “BB” é propriedade da DD, sendo por ela editado
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Do exame do escrito objecto do processo resulta claramente que o mesmo é uma peça jornalística na qual o seu autor aborda questão de interesse público local, atinente ao não pagamento de uma dívida da Câmara Municipal para com uma empresa de materiais de construção, encontrando-se subjacente a todo o artigo a intenção de denunciar a gestão e a política seguidas pela autarquia em matéria económico-financeira, política que o articulista adjectiva de ruinosa, sendo que, concomitantemente, se critica o comportamento do advogado avençado da autarquia relativamente à orientação seguida relativamente ao contencioso decorrente da dívida referida, pondo em causa a competência técnica do mesmo, através da utilização da expressão “este assunto vem colocar a nu a qualidade técnica de certo jurista avençado que aconselhou a câmara a não pagar porque as dívidas já estavam prescritas há mais de dois anos”, expressão que de acordo com a sentença recorrida integra o elemento material do crime de difamação.
Certo é que ao contrário do decidido em 1ª instância, entendemos que o escrito a que vimos de aludir é inócuo relativamente à honra e à consideração do assistente CC, posto que deve julgado atípico.
Vejamos.
Em qualquer Estado de direito democrático é constitucionalmente garantido a todo o cidadão o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento por qualquer meio, bem como o direito de informar sem impedimentos nem discriminações, direitos que se traduzem na liberdade de criação, discussão e crítica ( - A liberdade de expressão, de informação, da imprensa e demais meios de comunicação social encontra-se consagrada nos artigos 37º e 38º, da Constituição da República Portuguesa.).
Esta última forma de tradução do direito de expressão e de informação, designadamente quando assume a natureza de crítica objectiva formulada através da imprensa ou de outro meio de comunicação social, tende a provocar situações de conflito potencial com bens jurídicos como a honra, situações em que de acordo com a doutrina mais recente e actualizada, a relevância jurídico-penal está à partida excluída por razões de atipicidade.
Com efeito, Costa Andrade ( - Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 232/245.), fazendo apelo à doutrina alemã e à jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, defende que se devem considerar atípicos os juízos de apreciação e valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores, criadores protagonistas, posto que não atinjam a honra pessoal do cientista, artista ou desportista, etc., nem atinjam a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica ( - Como refere em nota de rodapé (página 223), citando A. D. Weber, este na sua obra Über Injurien und Schmähschriften publicada em finais do século XVIII, consignou: “os juízos francos sobre as criações do espírito ou da arte, sobre as particularidades físicas ou sobre os conhecimentos e as capacidades de outrem, pelo simples facto de o atingirem, suscitando nele um sentimento de desagrado e limitando a sua esfera de influência sobre terceiros, e serem, por isso, prejudiciais, não podem de modo algum ser considerados como injúrias”.).
Mais defende e entende que a atipicidade da crítica objectiva pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os actos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do Ministério Público, as decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo e o Parlamento ( - Em defesa deste entendimento indica decisão do Tribunal Constitucional Federal, de 5 de Março de 1992, na qual se concluiu que o direito dos cidadãos a criticar os actos dos poderes públicos sem medo de sanções pertence ao núcleo irredutível do direito fundamental de expressão do pensamento.).
Por outro lado, entende que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem-fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não se exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.
Defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto ( - A título exemplificativo alude ao crítico que estigmatiza uma acusação como “persecutória”, o qual a seu ver pode igualmente assumir que o seu agente, isto é, o magistrado do Ministério Público teve, naquele processo, uma conduta “persecutória”.).
No entanto, esclarece que a atipicidade já não poderá sustentar-se para os juízos que atingem a honra pessoal e a consideração pessoal, perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou a obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva, nem para os juízos de facto feitos no contexto duma valoração crítica objectiva, a menos que pressuposta a prova da verdade ( - ibidem, 238/239.), o que significa que só se deverão ter por atípicos os juízos de facto ofensivos em que a verdade do facto ou factos em que os mesmos assentam é evidente ou notória ou se mostra já demonstrada.
Mais esclarece que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos de valor exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignado expressivamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.
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Feitas estas breves considerações com as quais genericamente concordamos ( - Neste mesmo sentido já se pronunciou esta Relação, pelo menos, nos acórdãos de 98.04.23 e 03.09.24, proferidos nos recursos penais n.ºs 187/98 e 698/03.), fácil é de concluir que o escrito que subjaz aos presentes autos é atípico.
Com efeito, o mesmo mais não traduz, relativamente à pessoa do assistente, que uma crítica objectiva, formulada mediante a utilização de um juízo de valor, através do qual o seu autor opinou sobre o comportamento profissional daquele enquanto advogado da Câmara Municipal, juízo que, muito embora negativo, já que põe em causa o trabalho de advogado do assistente e a sua competência técnica, não atinge ou agride este pessoalmente, não constitui calúnia, nem se pode dizer tenha sido motivado exclusivamente pelo propósito de rebaixar ou de humilhar.
Aliás, há que reconhecer que o escrito em causa, atenta a sua natureza de artigo crítico e o seu específico conteúdo, inequivocamente de interesse público e legítimo ( - Interesse público é não só o que diz respeito a todos, à colectividade, mas também o que diz respeito a uma parte significativa da sociedade, designadamente a uma região ou a uma cidade, sendo legítimo todo o interesse que se conforme com a ordem jurídica – Cf. Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal (1996), 68/69.), características que o colocam na categoria de acto informativo integrante daquele núcleo de actividade em que a comunicação social exerce a sua função pública, ( - Entende-se que a comunicação social exerce a sua função pública quando o acto informativo aborda questões em matéria social, política, económica e cultural, tendo em vista o esclarecimento ou a formação da opinião pública.) encontra-se elaborado e redigido com moderação e contenção, a significar que, independentemente da aceitação e adopção da orientação defendida por Costa Andrade, sempre se deveria ter por justificado o facto, de acordo com as regras gerais do artigo 31º, do Código Penal, concretamente a constante da alínea b), do seu número 2.
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Termos em que se acorda revogar a decisão recorrida, ordenando-se o arquivamento dos autos.
Sem tributação.
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