Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1143/08.8TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
GRAVAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 11/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 685.º-B E ALÍNEA A) DO N.º 1 DO ARTIGO 712.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: Não se tendo procedido à gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento, não é possível colocar em crise o julgamento da matéria de facto que assente na prova testemunhal produzida, pois, nesse caso, não se mostram preenchidos os pressupostos da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, visto que sem tal gravação não se pode conhecer o conteúdo desses depoimentos e sem tal conhecimento não é possível formular qualquer juízo quanto ao que, face a essa prova, o tribunal a quo julgou provado e não provado. E, na ausência de tal gravação, é evidente que o recorrente não cumpre o exigido pelo artigo 685.º-B do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... Ldª instaurou, na comarca de Leiria, a presente acção declarativa, com processo sumário, contra B..., pedindo a condenação deste no pagamento de 16.436,29 €, acrescidos de 6.533,31 € de juros de mora vencidos, à taxa de 9,03% desde 30/9/2003, e vincendos até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que se dedica ao comércio de viaturas e que no âmbito da sua actividade, a pedido do réu, vendeu-lhe, em Agosto de 2003, o veiculo automóvel Mercedes de matrícula ...TQ, pelo preço de 26.436,29 €. O preço deveria ser pago mediante a entrega, pelo réu, da viatura Nissan Terrano de matrícula ...HB, a que foi atribuído o valor de 10.000,00€, sendo a restante parte paga no prazo de 30 dias. Na sequência do acordado, a autora recebeu o Nissan Terrano ...HB e o réu tomou posse do Mercedes ...TQ. No entanto, o réu não pagou os restantes 16.436,29 €.

O réu contestou afirmando, em síntese, que pagou à autora, ainda no ano de 2003, a totalidade do preço do Mercedes ...TQ e que o tinha adquirido para uso pessoal seu e da sua família. Deduziu ainda a excepção de prescrição presuntiva, invocando o disposto no artigo 317.º b) do Código Civil.

Respondeu a autora dizendo que o réu não pode invocar a prescrição e em simultâneo o pagamento, pois, se pagou não prescreveu. Reafirmou que o réu, por conta do preço, apenas entregou o Nissan Terrano ...HB. Mais alegou que o réu dedicava-se, entre outras, à actividade comercial e foi nessas circunstâncias que celebrou o negócio com a autora.

Proferiu-se despacho saneador e dispensou-se a fixação dos factos assentes e da base instrutória.

Realizou-se a audiência de julgamento.

Foi proferida sentença em que se decidiu:

Por todo o exposto julgo improcedente a acção e absolvo o réu do pedido.

Inconformada com tal decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1- A douta sentença não fez uma correcta apreciação dos factos.

2- A douta sentença padece de vício de fundamentação.

3- O depoimento prestado pelas testemunhas, que a A. não põe em causa implicam decisão diversa.

4- O Mmº Juiz a quo fundamentou a sua sentença com base no facto do réu ter provado que o veiculo fora adquirido para seu uso pessoal e da sua família,

5- Como tal considera não ter sido destinado ao comércio do Réu, não se provando que se dedicava à actividade comercial, no âmbito do qual foi adquirido o veículo.

6- A A. não pode concordar com decisão.

7- Não se poderia dar como não provado o facto quesitado sobre o n.º 3 dos factos não provados, na verdade o Réu é e sempre foi comerciante.

8- Tal qualidade de comerciante é atestada pela própria prova do réu que sempre o conheceram como gerente da sociedade E..., Ldª, na oficina da qual o veículo se encontrava estacionado.

9- A testemunha F... declarou que o Réu é sócio gerente da sociedade E..., Ldª, desde 1993;

10- A testemunha, G... declarou ter tido uma sociedade de compra e venda de automóveis com o Réu, de nome H... , Ldª, em 2001-2003 que o Réu tinha e pensa que ainda tem a E..., Ldª,

11- O CSC no seu artigo 13.º que são comerciantes as pessoas que tendo capacidade para praticar actos de comercio, e fazem deste profissão.

12- E como tal, por inerência também os gerentes das sociedade o são, já que utilizam tal qualidade para o exercício da sua actividade e

13- E na nossa lei comercial, os actos de comércio são actos que estejam regulados no CCom e em outras leis, em razão dos interesses do comércio, são qualificados como objectivamente comerciais em função do seu próprio conteúdo e das circunstâncias.

14- E o acto de compra e venda do veiculo em questão não poderá deixar de se qualificar como um acto de comercio, desde logo porque adequado a atribuir a qualidade de comerciante a quem o praticou de forma profissional, já que,

15- Conforme ficou demonstrado o Réu geria uma sociedade de reparação e comércio automóvel, e

16- O referido acto não tem natureza exclusivamente civil

17- E do próprio acto não resulta não estar conexionado com o comércio das partes.

18- O Réu enquanto gerente da sociedade E..., Ldª e que se dedica à reparação e comércio de automóveis, faz de si um comerciante, na medida em que tem poderes para praticar todos os todos os actos necessários ao exercício do comercio ou industria a que a sociedade se dedica.

19- A douta decisão que agora é colocada em crise, não poderia dar como não provado que o Ré fosse um comerciante, ou não se dedicasse à actividade comercial.

20-E como tal, atendendo à qualidade de comerciante, nunca poderia beneficiar do regime prescricional previsto no artigo 317.º b) do CC.

21- O Mmº Juiz a quo, dá como provado o facto de que o Réu provou que o veiculo foi adquirido para seu uso pessoal e de sua família,

22- A expressão “uso pessoal”, é uma expressão conclusiva, sem qualquer substrato factual, que importe a verificação do alegado não acto comercial praticado pelo Réu.

23-Onde nem sequer ficaram demonstrados os factos que integrassem e preenchessem tal conceito.

24-Tendo ficado provado que era frequente a carrinha Mercedes com a matrícula ...TQ, estar no parque da oficina (ficando o stand de venda noutro local) e de ser conduzida pelo Réu.

25- Não se pode concluir pelo uso pessoal do veículo pelo Réu.

26- Ora no caso em apreço são actos de comércio, no âmbito da actividade do Réu, não apenas aqueles que se destinam à aquisição de veículos para revenda, mas também todos aqueles actos que facilitem e permitam o exercício daquela actividade.

27- Ora tendo as testemunhas sido peremptórias ao dizer que o veiculo se encontrava estacionado na oficina da referida sociedade, e atendendo à lógica das regras da experiência, facilmente se concluirá que o mesmo era utilizado pelo Ré no âmbito do exercício da sua actividade.

28- E a prova realizada não foi esclarecedora quanto à natureza da utilização do veículo.

29- É manifestamente contraditória a fundamentação entre a resposta à matéria de facto e a sentença proferida, com a sua fundamentação.

30- O Réu não poderia beneficiar da presunção de pagamento, implícita na prescrição a que alude na sua contestação.

31- E como tal, sempre a acção, cujo julgamento se centrou exclusivamente na verificação ou não da referida excepção, deveria ter sido considerada procedente por provada e o Réu condenado no pedido.

32- A douta sentença viola os seguintes disposições legais: Artigo 2.º e 13.º, 248.º, 252.º, do CCom; artigo 317.º, b) do CC

33- Como consta de douto acórdão proferido pela Relação de Évora, publicado in CJ, 1982, 5.º-273 “ O réu que, além de agricultou, deva ser também considerado como comerciante ou industrial, não beneficia da prescrição presuntiva de curto prazo do art. 317.º, b) do Código Civil, que só ao não comerciante ou ao não industrial respeita.”

34- Termos em que deve a sentença de que se recorre ser revogada por outra que considere a acção procedente por provada e condene o Réu no pedido.

O réu não contra-alegou.

Face às conclusões com que findam as alegação de recurso, as questões a decidir consistem em saber se:

a) no julgamento da matéria de facto há erro quando se considerou não provado o que figura sob 3 dos factos não provados[1] e quando se deu como provado que o réu comprou o veículo Mercedes ...TQ para uso pessoal[2]. Previamente terá que se averiguar se se verificam os pressupostos legais que permitem, em sede de recurso, a reapreciação da matéria de facto;

b) há contradição entre a fundamentação da resposta à matéria de facto e a fundamentação da sentença[3];

c) o réu não pode beneficiar da prescrição presuntiva estabelecida no artigo 317.º b) do Código Civil[4].


II

1.º


Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1. A Autora dedica-se ao comércio de viaturas, tendo para o efeito um stand, sito em ..., ..., ...;

2. No âmbito da sua actividade, correspondendo à solicitação do Réu, a Autora vendeu-lhe em Agosto de 2003 um veículo automóvel marca Mercedes, usado, modelo 220 CDI, matrícula ...TQ;

3. O veículo antes referido foi adquirido para uso pessoal do Réu e da sua família;

4. O preço da venda foi de 26.436,29, conforme factura junta a fls.5;

5. Por conta do preço seria feita a entrega, como retoma, da viatura Nissan Terrano, matrícula ...HB, a que atribuíram o valor de 10.000,00€;

6. O Réu, em simultâneo, recebeu a viatura com matrícula ...TQ, que passou a possuir, por si ou por terceiros, como se fosse coisa sua, sem qualquer reserva da Autora;

7. A Réu intentou contra C..., com domicílio em ..., ..., ..., e D..., Ldª, com domicílio em ..., ..., Acção de Processo Sumário n.º 1600/04.5TBLRA do 3.º Juízo Cível de Leiria, onde foi proferida a sentença transitada em julgado a 3/12/2007, conforme certidão de fls. 58. e segs., cujo teor se dá aqui por reproduzido.


2.º

A autora começa por atacar a decisão recorrida ao nível do julgamento da matéria de facto, pois entende que o depoimento prestado pelas testemunhas (…) implicam decisão diversa[5]. Em defesa do seu entendimento cita os depoimentos das testemunhas F... e G..., dos quais considera que havia que retirar conclusões diversas das extraídas pela Meritíssima Juíza. Sustenta que, face à prova produzida, a decisão que agora é colocada em crise, não poderia dar como não provado que o Ré fosse um comerciante, ou não se dedicasse à actividade comercial[6], bem como não podia concluir pelo uso pessoal do veículo pelo Réu[7].

O artigo 712.º n.º 1 do Código de Processo Civil dispõe que:

1 - A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

No caso dos autos não se procedeu à gravação[8] dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento, pelo que é evidente que se não mostram preenchidos os pressupostos da alínea a) deste n.º 1, visto que sem tal gravação não se pode conhecer o conteúdo desses depoimentos, nomeadamente os das testemunhas referidas pela autora F... e G..., e sem tal conhecimento não é possível formular qualquer juízo quanto ao que, face à prova testemunhal e à demais prova produzida, se deve ter por provado e por não provado. Acresce que para se impugnar a decisão sobre a matéria de facto é ainda necessário observar o exigido pelo artigo 685.º-B do Código de Processo Civil, o que, na ausência daquela gravação, é de todo impossível. Por outro lado, é também pacífico que a situação em apreço não preenche a previsão das alíneas b) e c) do citado n.º 1 do artigo 712.º, visto que, na tese da autora, é nos depoimentos prestados pelas testemunhas que radica o fundamento para, nos pontos em crise, se decidir de forma diversa.

Então, resta concluir que não se mostram verificados os pressupostos processuais necessários para que o tribunal da Relação possa reapreciar a matéria de facto[9], o mesmo é dizer que não se pode alterar a decisão do tribunal a quo quanto aos factos provados e não provados.

De qualquer forma, parece oportuno lembrar que a autora defende que se devia ter dado como provado que o réu é comerciante, em virtude dele ser gerente da sociedade E..., Ldª[10], acrescentando aquela que, tendo presente o disposto no artigo 13.º do Código Comercial[11], por inerência também os gerentes das sociedades[12] são comerciantes.

Sucede que não se encontra alegado que o réu é gerente da sociedade E... Ldª, pelo que não era possível dar tal facto como provado, visto que, por força do princípio do dispositivo[13], o juiz encontra-se vinculado ao quadro processual desenhado pelas partes, só podendo, designadamente levar em conta os factos alegados e provados pelas partes[14]. Mas, mesmo que esse facto tivesse sido alegado, ele só se podia provar por documento[15], pelo que a prova testemunhal é insuficiente para tal efeito. E, mesmo que se tivesse provado que o réu é gerente da sociedade E... Ldª, contrariamente ao sustentado pela autora, não se podia daí concluir que ele é comerciante, pois os gerentes das sociedades comerciais prestam serviços a estas, agindo em nome delas, o que significa que os actos de comércio que materialmente praticam são imputáveis às sociedades que representam, as quais são, elas sim, comerciantes. Não esquecer ainda que comerciante é um conceito de direito[16] e não um facto.


3.º

Afirma a autora que as testemunhas foram peremptórias ao dizer que o veiculo (comprado à autora) encontrava-se estacionado na oficina da referida sociedade (de que o ré é alegadamente gerente), e atendendo à lógica das regras da experiência, facilmente se concluirá que o mesmo era utilizado pelo Ré no âmbito do exercício da sua actividade. Pelo que, é manifestamente contraditória a fundamentação entre a resposta à matéria de facto e a sentença proferida, com a sua fundamentação.[17]

Salvo melhor juízo, o que a autora está aqui a questionar, sob as vestes de uma alegada contradição entre a fundamentação da decisão da matéria de facto e a da sentença é, novamente, o juízo formulado pela Meritíssima Juíza quanto à matéria de facto que considerou provada e não provada, juízo esse que, como já se viu, não pode ser reapreciado neste recurso.

Na sentença, tendo por pano de fundo o disposto no artigo 317.º b) do Código Civil, são extraídas as consequências resultantes de no julgamento da matéria de facto não se ter dado como assente qualquer facto que permita qualificar a actividade do réu como de comerciante. Não se vê, assim, que ocorra a apontada contradição.


4.º

Sustenta ainda a autora que o réu não pode beneficiar da prescrição presuntiva estabelecida no artigo 317.º b) do Código Civil[18], isto por que entende que se produziu prova no sentido de que este tem a qualidade de comerciante.

Como já se disse, a prova produzida não pode ser reapreciada, pelo que é à luz dos factos provados que se terá que averiguar se o réu é comerciante e, no caso de ser, se isso o impede de beneficiar daquela prescrição.

O citado artigo 317.º b) estabelece que:

Prescrevem no prazo de dois anos:

b) Os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor;

Por sua vez, o artigo 13.º do Código Comercial dispõe que:

São comerciantes:

1.º As pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão;

2.º As sociedades comerciais.

Ora, examinados os factos provados nada se encontra neles que permita sustentar a conclusão de que o réu é comerciante. E, não sendo ele comerciante, não existe o obstáculo que, segundo a autora, o impedia de beneficiar da prescrição presuntiva que invocou na sua contestação. Não sendo verdadeiro o pressuposto em que se funda a conclusão da autora, naturalmente que improcede a pretensão que nele assentava.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela autora.


António Beça Pereira (Relator)
Manuela Fialho
Távora Vítor


[1] Cfr. conclusões 1.ª a 19.ª.
[2] Cfr. conclusões 21.ª a 28.ª.
[3] Cfr. conclusão 29.ª.
[4] Cfr. conclusões 20.ª e 30.ª.
[5] Cfr. conclusão 3.ª.
[6] Cfr. conclusão 19.ª.
[7] Cfr. conclusão 25.ª.
[8] Nem as partes a requereram, nem a Meritíssima Juíza a ordenou oficiosamente.
[9] Neste sentido veja-se Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, pág. 620 a 622.
[10] Cfr. conclusão 8.ª. Fica-se sem perceber se com o que se diz na conclusão 10.ª se pretende afirmar que o réu também é gerente da H... Ldª .
[11] A autora mencionou por lapso o Código das Sociedades Comerciais, quando é evidente que se queria referir ao Código Comercial.
[12] Cfr. conclusão 12.ª.
[13] Cfr. artigo 264.º do Código de Processo Civil.
[14] Ana Prata, Dicionário Jurídico, Vol. I, 5.ª Edição, pág. 1111.
[15] Cfr. artigo 3.º n.º 1 m) do Código do Registo Comercial.
[16] Cfr. nomeadamente os artigos artigo 2.º e 13.º do Código Comercial.
[17] Cfr. folhas 128 e 129 e conclusões 27.ª a 29.ª.
[18] Cfr. conclusões 20.ª e 30.ª.