Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3563/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. FERREIRA LOPES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA E SUA EXECUÇÃO ESPECIFICA
Data do Acordão: 04/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTº 830º DO C. CIV. ; 3º, Nº 1, AL. A), DO C. REG. PREDIAL
Sumário:

I – Em caso de recusa de cumprimento da obrigação assumida por um dos promitentes contratantes admite a lei a execução específica do contrato-promessa, conforme estatui o artº 830º, nº1, do C. Civ. .
II - A sentença que determina a execução específica prevalece sobre a venda do bem a terceiro depois do registo daquela acção, quer essa alienação se encontre ou não registada .
III – Para a procedência da acção de execução específica de contrato-promessa é indispensável que o requerente prove ter pago a totalidade do preço acordado para a venda . Não estando feita essa prova, a acção não pode proceder .
Decisão Texto Integral:
Apelação nº 3563/03
Aveiro

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

AA e mulher BB, residentes na CC, Aveiro, e DD e mulher EE, residentes na Rua Vasco da Gama, Cacia, Aveiro, demandaram em acção com processo ordinário,
1ºs. GG e mulher HH, residentes na FF, Aveiro, e
2ºs. II e mulher JJ, residentes em Requeixo, Aveiro, com os seguintes fundamentos:
Os AA celebraram com o Réu GG um contrato promessa de compra e venda nos termos do qual este Réu prometeu vender-lhes dois prédios destinados à construção para habitação, inscritos na matriz sob os artigos 642º e 643º sitos na freguesia de Nª Srª de Fátima, Aveiro, prédios estes que têm como donos os Réus II e mulher JJ, facto que os AA desconheciam. Como sinal e princípio de pagamento, os AA entregaram ao Réu GG a quantia de 5.000.000$00. Sucede que o 1º Réu recusa-se a outorgar o contrato definitivo, dizendo que a sua esposa se recusa a vender, o que os AA não aceitam em relação a um dos prédios por o Réu dispor de poderes para a venda, enquanto a promessa relativa ao outro é nula. Em consequência, pedem os AA:
a) A execução específica do contrato, proferindo-se sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, o Réu GG, ou seja, que se declare que o Réu vende aos AA o prédio rústico inscrito na matriz sob o art. 642, pelo preço de 4.000.000$00;
b) A condenação do Réu a distratar qualquer eventual hipoteca que venha a ser registada ou a pagar qualquer penhora que se venha também a verificar, após a entrada da acção em Tribunal;
c) A condenação do 1º Réu a restituir aos AA a diferença do preço do sinal e o preço do prédio nº 642, no valor de 1.000.000$00, mais os juros que se vencerem desde a citação até integral pagamento;
d) Que se considere nula a promessa de venda do prédio inscrito sob o ar. 643º;
e) A condenação dos RR a indemnizar os AA por todos os prejuízos a estes causados pelo atraso da construção, despesas de projecto e danos não patrimoniais que se vier a liquidar em execução de sentença.
Em articulados autónomos, os RR contestaram alegando:
Os Réus II e esposa no sentido da improcedência da acção quanto a eles, pois não intervieram no contrato promessa nem negociaram com os AA. Limitaram-se a negociar com o co-Réu GG, desconhecendo o que se passou entre este e os AA. Pedem ainda a condenação dos AA como litigantes de má fé por terem deduzido contra eles pretensão cuja falta de fundamento não podiam ignorar.
Os Réus GG e esposa HH deduziram a excepção da sua ilegitimidade, com base no facto de a Ré HH não ter intervindo no contrato promessa, e ainda por os prédios em causa não lhes pertencerem mas sim aos 2ºs RR, o que impede a celebração da escritura pública de compra e venda; por impugnação alegaram que os AA sabiam que eles, Réus, não eram donos dos prédios e também que não tinha procuração dos 2ºs RR para negociar a venda dos mesmos. Acrescentam que o contrato promessa é insusceptível de execução específica, que houve simulação quanto ao preço, com o objectivo de defraudar o Estado, o que importa nulidade do contrato, e que da não concretização do negócio não resultaram quaisquer danos para os Autores.
Replicaram os AA, mantendo a posição do articulado inicial, e alterando a causa de pedir e o pedido no sentido da condenação dos 2ºs RR a absterem-se de praticarem qualquer acto que importe diminuição patrimonial dos 1ºs RR.
Treplicaram os RR, concluindo todos como nas respectivas contestações.
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No despacho saneador julgou-se válida a instância, declararam-se as partes legítimas, e de seguida condensou-se a matéria de facto, com especificação da já assente e organização da base instrutória.
Realizado o julgamento e decidida sem censura a matéria de facto, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo-se os RR dos pedidos contra eles formulados. O Réu GG foi, no entanto, condenado como litigante de má fé na multa de € 2.000 e no pagamento de uma indemnização aos AA de € 1000,00.
Inconformados com tal decisão, os Autores apelaram, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª - Como se vê da matéria factual assente, entre os AA, ora recorrentes, como promitentes compradores e o Recorrido marido, como promitente vendedor, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda relativo a dois prédios descritos nos autos, no qual foi expressamente acordada a possibilidade de recorrer ao regime da execução específica.
2ª - O pedido deduzido nestes autos pelos AA e relevante para este recurso, é o de que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, declarando-se que ele vende aos AA o prédio rústico sito na localidade de Arrôtas, freguesia de Nª Srª de Fátima, ... inscrito na matriz sob o art. 642º e inscrito na CRP sob o nº 01442/110399.
3ª - A respeito deste pedido, todas as excepções invocadas pelo Réu GG soçobraram perante a prova produzida e em face do direito aplicável.
4ª - Tanto assim que a sentença declara o direito dos AA e o incumprimento culposo do promitente vendedor, decisão a que os recorrentes aderem.
5ª - Todavia, em seguida o Tribunal conheceu oficiosamente de uma pretensa excepção que ninguém invocara – a venda do prédio a terceiro – para decidir pela impossibilidade da execução específica e, logicamente, julgar improcedente o pedido.
Afirma-se na sentença que a execução específica não é possível, in casu, por causa da venda do prédio a terceiro feita em 18.02.2000.
6ª - É esta linha de raciocínio, subjacente à decisão, que suscita a discordância dos recorrentes. Consoante a interpretação que dela se faça, parece aos recorrentes que, nesta parte a decisão ou é nula ou comete erro de julgamento.
7ª - Quanto a isto, primeiramente, para a correcta apreciação de todos os elementos, e pese embora se não impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o Tribunal deve discriminar outros factos, também eles assentes além daqueles que a sentença refere de forma expressa e autónoma. Nomeadamente: a acção de execução específica deu entrada em 10.02.2000; o pertinente registo foi feito a 15.02.2000; a venda a terceiro foi celebrada em 18.02.2000.
8ª - Ou seja: a ordem cronológica dos factos não consente qualquer dúvida: a venda a terceiro é posterior ao registo da acção de execução específica.
9ª - Ora, perante esta factualidade e tendo em conta o direito aplicável, mormente as distinções traçadas no Acórdão nº 4/98 do STJ, os Recorrentes propendem para a hipótese de nulidade da sentença.
De facto, na decisão talvez se tenha cogitado que a venda a terceiro seria anterior ao registo da acção e, só por isso, se terá afirmado a inviabilidade da execução específica, com a consequente improcedência do pedido; caso se tivesse representado a realidade, isto é, que aquela venda é posterior ao registo, a decisão teria sido em conformidade com os fundamentos e, logicamente, o pedido dos AA teria sido julgado procedente.
10ª - Desta perspectiva, a nulidade da sentença resulta da oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art. 668º nº1 alínea c) do CPCivil: todos os fundamentos referidos na sentença apontam para a viabilidade da execução específica e, contraditoriamente, a decisão é a de improcedência do pedido.
11ª - De salientar ainda a este propósito, que o facto de ter sido feita a venda a terceiro em 18.02.2000, constitui prova irrefutável de que o promitente vendedor, o recorrido GG, podia cumprir a promessa, permitindo aos AA a aquisição do prédio em causa. Se tal venda era possível, como foi, então também o é a execução específica pedida em acção anteriormente registada.
12ª - Por outro lado, sem contradição com o exposto, os Recorrentes reconhecem que, pelo menos no campo teórico, a sentença admite outra interpretação: a de que se não trata de lapso de raciocínio mas de um certo entendimento do direito aplicável: o de que não é admitida a execução específica sempre que houver venda a terceiro da coisa litigiosa.
13ª - Neste cenário, isto é, se a decisão de improcedência do pedido dos AA resulta de se não admitir a execução específica em virtude de venda feita a terceiro depois de proposta e registada a acção de execução específica, a discordância dos Recorrentes assente em outros motivos. Efectivamente, se foi esta a via seguida pelo Tribunal a quo, então, no modesto parecer dos recorrentes a sentença incorre em erro de julgamento.
14ª - Por este prisma, o principal problema de direito a enfrentar neste recurso traduz-se em apurar se, em face do direito aplicável, é ou não admitida a execução específica nos casos em que, já depois de proposta e registada a acção de execução específica, o promitente vendedor – e Réu na acção de execução específica – transmite a um terceiro o imóvel objecto da promessa.
15ª - Na decisão em análise julgou-se negativamente: em todos estes casos a execução específica fica inviabilizada com a venda a terceiro, mesmo que esta venda seja, como sucede na situação sub judice, posterior ao registo da acção de execução específica.
16ª - Ora, parece aos Recorrentes que, perante a lei aplicável e a jurisprudência reiterada e uniforme, a resposta devia ser, precisamente a oposta: uma vez que à data em que a acção é proposta e registada, o promitente vendedor está em condições de transmitir validamente o direito, a execução específica é viável e procede.
17ª - É a solução imposta, desde logo, por aplicação dos regimes legais do registo.
Por um lado, o registo definitivo da sentença transitada em julgado – que através de execução específica concretize a transmissão do direito de propriedade sobre o prédio litigioso – conserva a prioridade que tinha como provisório e, como é precedido do registo provisório da acção, em termos práticos vem a implicar que a protecção tabular funciona desde o registo da acção de execução específica – cf. designdamente os artigos 3º nº1 alíneas a) e c), 6º nº3, 92º nº1 al. a) todos do Código do Registo Predial.
Por outro lado, actualmente, com as alterações introduzidas pelo DL 533/99 de 11 de Dezembro, o terceiro adquirente da coisa litigiosa não pode obter registo definitivo – art. 92º nº2 alínea b) in fine daquel Código; logo, mesmo que apresente o título a registo, nem sequer beneficia das presunções derivadas do registo – art. 7º do mesmo Código.
18ª - Esta solução resulta igualmente do disposto no art. 271º nº3 do CPCivil.
Feito o competente registo, não é a execução específica que se torna inviável com a posterior venda a terceiro da coisa litigiosa. A eficácia da aquisição do terceiro é que fica dependente da sorte da acção de execução específica.
19ª - A sentença não menciona as normas legais referidas nas duas conclusões que antecedem e a parte impugnada da decisão contraria frontalmente aqueles regimes.
20ª - Acresce que, em rigor, a sentença viola também o que se estabelece no art. 830º pois que este preceito nunca seria aplicado em benefício do promitente comprador.
A acolher-se o entendimento afirmado na sentença, a autoridade do Estado quedaria submissa perante os caprichos do promitente vendedor inadimplente que, a todo o tempo, poderia inviabilizar a execução específica através da venda a terceiro.
A procedência do pedido dos AA, ora recorrentes, corresponde, no caso concreto, a uma exigência basilar do princípio da boa fé.
Os apelados não contra alegaram.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Fundamentação de facto.
São os seguintes os factos considerados provados na 1ª instância:
1. Os AA e o 1º Réu marido celebraram em 23.09.99, um contrato promessa de compra e venda em que o segundo prometeu vender aos 1ºs que prometeram comprar, dois prédios destinados à construção para habitação, inscritos na matriz sob os arts. 642º e 643º, com uma área de 2.000 m2, sitos na freguesia de Nª Srª de Fátima, Aveiro, com as seguintes descrições:
a) Um prédio rústico sito na localidade de Arrôtas, freguesia de N.Sª de Fátima, com área de 0,0980 ha, confrontando do norte com KK, sul com LL, nascente com com caminho e poente com estrada nacional, inscrito sob o art. matricial 642º e descrito na CRP sob o nº 01442/990399;
b) Um prédio rústico sito na localidade de Arrôtas, freguesia de N.Sª de Fátima, com área de 0,0980 ha, confrontando do norte com MM, sul e nascente com caminho e poente com estrada nacional.
2. Os prédios descritos supra e objecto do contrato promessa têm como donos e legítimos proprietários, respectivamente, os Réus e NN.
3. Os AA estão casados no regime de comunhão de adquiridos.
4. O preço estipulado no contrato promessa supra referido foi de esc. 18.000.000$00 e, como sinal e princípio de pagamento, os AA entregaram ao 1º Réu a quantia de 5.000.000$00, ficando o remanescente a pagar no acto da escritura definitiva do contrato.
5. Os 2ºs Réus, proprietários do prédio inscrito na matriz sob o art. 642, por instrumeno notarial de 27.09.99 constituíram o 1º Réu seu procurador, com procuração irrevogável, concedendo-lhe então “os poderes para prometer vender e vender por 4.000 contos, já recebido, o prédio rústico sito em Arrôtas....inscrito na matriz sob o art. 642, para na Conservatória do Registo Predial proceder a quaisquer actos de registo provisórios e definitivos, averbamentos e cancelamentos e prestar declarações complementares.
6. Na mesma procuração acima referida outorgou a mulher do 2º Réu, que disse “presta o necessário consentimento a seu marido para inteira validade destes actos, por se tratar de bem próprio dele.”
7. O 1º Réu, por carta de 12.10.99, enviada ao Autor AA pelo seu mandatário, veio dizer que “...apesar da boa vontade do Sr. GG em concretizar e cumprir o contratado, a esposa nega-se a outorgar a referida venda, o que inviabiliza a concretização do negócio. Perante tal obstáculo, resta ao Sr. GG proceder à devolução ao Sr. AA da importância que recebeu a título do negócio que projectaram – 5.000.000$00 – para o que segue o respectivo cheque nº 9030243826 emitido sobre o B.C.P.”
8. Os AA não aceitaram a declaração de rejeição do negócio pelo 1º Réu e por carta registada de 19.10.99 devolveram o cheque ao mandatário daquele.
9. Os 2ºs RR não tiveram qualquer intervenção no contrato promessa em causa, não negociaram fosse o que fosse com os AA, tendo apenas negociado com o Réu GG a compra e venda do prédio inscrito na matriz rústica sob o art. 642, tendo acordado o preço de esc. 4.000.000$00 já recebido.
10. Não foi celebrada a escritura de venda entre os 2ºs RR e o 1º Réu marido por este último pretender aguardar que a Câmara Municipal de Aveiro se pronunciasse sobre a viabilidade de construção no terreno.
11. Foi em consequência do atrás mencionado que os 2ºs RR outorgaram a procuração ao 1º Réu.
12. A imobiliária “Vila Azul” interveio como intermediária entre os AA e os 1ºs RR, para a celebração do contrato promessa.
13. Os AA desconheciam que o 1º réu não era o proprietário dos prédios que prometeu vender.
14. Com a celebração do contrato promessa foi facultado ao Autor medir o terreno.
15. Os AA mantêm ainda o interesse em concretizar o negócio.
16. Os 2ºs RR sofreram despesas e incómodos com a presente acção.
17. Pelo menos na data da celebração do contrato promessa, os AA sabiam que o 1º Réu era casado e conheciam também o nome da mulher.
Estes os factos provados.
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Fundamentação de direito.
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado, como se sabe, pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº1 do Cód. Processo Civil), passa por saber se o contrato promessa celebrado entre os AA e o 1º Réu, referido em 1), é passível de execução específica.
A sentença recusou tal possibilidade por o prédio prometido vender ter sido vendido a um terceiro após a outorga do contrato promessa.
Os apelantes discordam desta decisão, brandindo com o facto do registo da acção anterior à venda do prédio.
Vejamos.
O contrato promessa, modalidade de contrato a que se referem os arts. 410º e sgs. do Cód. Civil, é a convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato. O contrato promessa cria a obrigação de contratar, ou mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido ( Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, pag. 308).
Em caso de recusa de incumprimento da obrigação assumida pelo promitente, admite a lei (artigos 442º nº3 e 830º do Cód. Civil), a execução específica do contrato promessa, conforme estatui o nº1 do art. 830º:
Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.
Como ensina Calvão da Silva, Sinal e contrato promessa, 10ª edição, pag. 150, “através dela (da acção de execução específica) pretende o autor obter uma sentença (constitutiva) que produza imediatamente os efeitos da declaração negocial do faltoso, tendo-se por celebrado o contrato prometido”.
Casos há, no entanto, em que não é possível a execução específico do contrato. É o que acontece se o promitente vendedor após o contrato promessa alienar o bem a terceiro. Na verdade, como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil anotado, vol. II, 4ª edição, pag.107, “a sentença que decrete a execução específica não pode, tratando-se de contrato promessa de compra e venda, ser proferida se a coisa pertence a terceiro, já que sendo missão do tribunal substituir-se ao vendedor, em tal caso o próprio vendedor não poderia celebrar o contrato.”
Da mesma forma vem decidindo a jurisprudência, como se pode ver no Ac. do STJ de 29.99.98, CJ AcSTJ, ano VI, tomo 3, pag. 45, que decidiu: “A acção para obtenção de execução específica não pode proceder se a coisa pertence já a terceiro.”
No caso dos autos, o Sr. Juiz seguiu este entendimento e julgou a acção improcedente uma vez que, conforme resulta de fls. 197 e 198 dos autos, o imóvel objecto desta acção de execução específica foi vendido a um terceiro por escritura pública de 18 de Fevereiro de 2000.
Sucede que os AA obtiveram o registo da acção de execução específica em 15 de Fevereiro de 2000, (cf. fls 90), sendo, assim, aquele registo anterior à venda.
Na sentença nada se disse a este propósito, cumprindo-nos verificar se de tal facto decorrem consequências para a pretensão dos AA.
A acção de execução específica que tenha por base a promessa de venda de imóveis está sujeita a registo, por abrangida pela alínea a) do nº1, art. 3º do Cód. Registo Predial.
O registo da acção, que é provisório por natureza, converte-se em definitivo com o registo da sentença ( obrigatório, art. 3º nº1 al. c) do C. R. Predial), e este (o registo definitivo) da sentença conserva a prioridade que tinha como provisório da acção (art. 6º nº 3 do mesmo dipoma). Por isso, como ensina Calvão da Silva, obra citada, pag. 151:
“Para efeitos de aplicação da regra da prioridade do registo estatuída no art. 6º do Cód. Registo Predial, a data que conta é a do registo da acção: o registo da sentença favorável ao promitente-comprador prevalece sobre o registo da aquisição de terceiro ao promitente-vendedor feito depois do registo da acção, ainda que a venda tenha sido anterior.” E acrescenta este ilustre mestre:
“Válida e eficaz inter partes, a venda feita pelo promitente vendedor a terceiro não produz efeitos contra o promitente comprador enquanto não tiver sido registada (art. 5º do Cód. Registo Predial). Mas uma vez registada a acção de execução específica, o registo posterior daquela compra e venda é ineficaz perante o autor.”
No mesmo sentido os Professores Antunes Varela, obra citada, pag. 332: “a prevalência do registo da sentença favorável ao promitente comprador estende-se ao próprio registo da transmissão efectuada pelo promitente-vendedor a terceiro, depois de registada a acção de execução específica,” e Almeida Costa, RLJ ano 131, pag. 244 em anotação ao acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência nº 4/98: “por força dos princípios registais, a sentença que determina a execução específica prevalece sobre uma alienação feita a terceiro, depois do registo da acção, quer essa alienação se encontre ou não registada.”
Aplicando estes princípios ao caso dos autos.
Tendo esta acção sido registada em 15 de Fevereiro de 2000, portanto antes da alienação do bem ao terceiro, por força das regras do registo esta alienação é ineficaz perante o Autor.
Significa isto a procedência do recurso dos AA?
Entendemos que não pelas razões seguintes.
No contrato promessa em causa, o 1º Réu marido prometeu vender ao Autor dois prédios, os inscritos na matriz sob os artigos 642º e 643º, de que se arrogou dono, pelo preço global de 18.000.000$00 (claúsula 2ª);
Não se precisou o preço por cada um deles, tendo-se, no entanto, consignado (cláusula 3ª) que o valor a escriturar será de 4.000.000$00 pelo prédio do art. 642º e o do art. 643º o do valor da avaliação a realizar pela respectiva Repartição de Finanças e nunca inferior a 4.500.000$00 (sic);
Mais se consignou que o promitente vendedor recebeu dos promitentes compradores, como sinal e princípio de pagamento, a quantia de 5.000.000$00 e a restante quantia em dívida, no montante de 13.000.000$00, seria liquidada no acto da escritura (claúsulas 4ª e 5ª).
Só em 27.09.99 os proprietários do prédio, os 2ºs RR, outorgaram procuração ao 1º Réu para vender o prédio inscrito na matriz sob o art. 642.
De tudo isto impõe-se concluir:
No contrato promessa o 1º Réu prometeu vender, como dono, um imóvel de que nunca chegou a ser proprietário (na escritura de venda do bem ao terceiro figuram como vendedores os 2ºs RR, representados pelo 1º Réu).
É certo não existir qualquer óbice à promessa de venda de coisa alheia. Ponto é que na altura da escritura o promitente vendedor seja o dono da coisa.
No caso dos autos, a proceder a execução específica, estaria o tribunal a substituir-se ao contraente faltoso, o 1º Réu, alegadamente dono, qualidade que, todavia, nunca teve.
Por outro lado.
Os valores que deveriam constar da escritura seriam valores fictícios destinados a iludir o fisco, como resulta evidente das cláusulas 2ª e 3ª do contrato.
Qualquer que tenha sido o preço efectivamente acordado entre AA e RR para a venda de cada um dos imóveis, os AA liquidaram apenas uma parte do preço, ou seja 5.000.000$00.
Ora, o art. 830º nº 5 do Cód. Civil, estipula que, “no caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção de não cumprimento, a acção improcede se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal.”
Por força deste preceito, é entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência que “se o promitente comprador, requerendo a execução específica, não depositou o preço ainda não pago, a decisão tem de ser no sentido da improcedência, pois não é possível proferir sentença de procedência condicionada à realização do depósito” (cf. Calvão da Silva, obra citada, pag. 155, o Ac. do STJ de 02.12.1992, BMJ 422/335 e os Acórdãos da Relação de Lisboa de 07.11.91, CJ ano XVI, tomo 1, pag. 121 e de 16.05.2002, CJ ano XXVII, tomo 3, pag.72).
A razão para tal, ensina Galvão Teles, Direito das Obrigações, 5ª edição, pag. 98, assenta no seguinte:
“Tendo em consideração o facto de a execução específica investir logo as partes nos direitos próprios do contrato definitivo, houve o legislador por bem mandar fazer o depósito da contraprestação ainda na pendência do processo em 1ª instância.”
Ora, como os AA não demonstraram ter pago, ou depositado, a integralidade do preço acordado para a compra do imóvel inscrito na matriz sob o art. 642, não pode ser proferida sentença de execução específica.
Contra este entendimento não vale o que consta do nº 9 dos factos provados. É que daí apenas resulta o teor de um acordo entre os 1ºs e 2ºs RR, não podendo significar que o preço que deveria ser pago pelos AA pelo imóvel fosse de 4.000.000$00.
Do exposto pode concluir-se:
A sentença que determina a execução específica prevalece sobre a venda do bem a terceiro, depois do registo da acção, quer essa alienação se encontre ou não registada;
À procedência da acção de execução específica de contrato promessa é indispensável que o requerente prove ter pago a totalidade do preço acordado para a venda; não estando feita essa prova a acção não pode proceder.
Decisão.
Em face do exposto, e com os fundamentos supra referidos, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Coimbra, 04.04.20