Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2653/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: CHEQUE
RELAÇÕES MEDIATAS
Data do Acordão: 11/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO CÍVEL - TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 22º DA LEI UNIFORME SOBRE CHEQUES .
Sumário: I – O artº 22º da LU s/Cheques sanciona a inoponibilidade ao portador mediato do cheque das excepções que eventualmente se estabeleçam entre o sacador e o portador originário do cheque .
Decisão Texto Integral: 1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - RELATÓRIO
I.1- A... veio deduzir embargos à execução contra si movida por B... e C..., aduzindo, em síntese, que não existe qualquer relação obrigacional entre si e os exequentes/embargados ou com D..., e que foi este quem abusivamente preencheu os cheques em questão, os quais nem eram para ser apresentados a pagamento.
Recebidos os embargos, contestaram os exequentes, sustentando em resumo, que os cheques lhes foram entregues por D... por via de endosso para pagamento de uma dívida que o endossante tinha para com os embargados resultante de um contrato de mútuo; que nos termos do disposto no art.22º da L.U.C. o embargante não pode opor aos portadores (embargados) as relações pessoais com o sacador, ou com portadores anteriores.
Findos os articulados, e após realização de audiência preliminar, o tribunal recorrido conheceu no saneador do fundo da causa, julgando os embargos improcedentes.
I.2- Deste saneador-sentença apelou o executado/embargante, concluindo assim as suas alegações recursivas:
1ª- Com a não produção de prova testemunhal, proferindo o tribunal recorrido decisão de mérito apenas com os elementos existentes nos articulados, foi impedido ao recorrente provar as excepções oponíveis ao portador de acordo com o art.22º, in fine, da L.U.C.;
2ª- Decidiu-se de mérito quando existiam dúvidas sobre os factos, sendo estes insuficientes para a decisão;
3ª- Por isso foi mal interpretado e aplicado o citado art.22º, assim como dado uso incorrecto ao disposto na al.b), in fine, do nº1 do art. 508º-A/C.P.C.;
4ª- Não se entende a fundamentação do tribunal quando se refere que “o embargado concedeu à primeira executada um empréstimo no montante correspondente ao valor da letra”, já que não existe qualquer letra dada à execução e o aqui recorrente é o único executado;
5ª- De toda a matéria carreada para os autos é bem claro não existir nenhum empréstimo ou sequer qualquer relação subjacente à emissão dos cheques entre embargante e embargado;
6ª- Por isso é nula a sentença por contradição entre os factos e a fundamentação;
7ª- Deve ordenar-se o prosseguimento dos autos para efeito dos arts.510º/2 e 511º, C.P.C..
I.3- Contra-alegando, defendem os embargados a improcedência do recurso e a manutenção integral da sentença.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
A sentença sob recurso assentou na seguinte factualidade:
1- A execução ordinária nº2312.03.2 tem como título executivo dois cheques na importância de 5.000,00 euros cada, com data de vencimento de 2002.11.30 e 2002.12.30, sacados sobre conta pertença do executado e por ele assinados;
2- No verso dos cheques encontra-se uma assinatura do nome Américo Ferreira Oliveira;
3- O embargado concedeu à primeira executada um empréstimo no montante correspondente ao valor da letra;
4- Apresentados a pagamento foram devolvidos com os motivos de furto e extravio.
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II.2 - de direito
Perante este leque factual, entendeu a 1ª instância que o embargante não alegou factos concretos que levem a concluir que os embargados ao adquirirem os cheques procederam conscientemente em detrimento do devedor, acrescentando-se que lhe cabia o ónus da prova de que o portador dos cheques os tenha adquirido de má fé ou cometeu falta grave.
Com esta argumentação ditou-se a improcedência dos embargos.
Não vemos razão para censurar o assim decidido, sendo que a fundamentação fáctica carece de um reparo e correcção.
Na verdade, a factualidade inserta no ponto 3 (item II.1) não tem correspondência com o que foi alegado e certamente só por manifesto lapso foi referida nesses termos. É que, lendo o requerimento executivo e a petição de embargos, fácil é de concluir que os embargados são os exequentes Garciano Loureiro e mulher Maria Alice Loureiro, e executado o embargante aqui recorrente, Alexandre Neves Rodrigues, que assinou os cheques dados à execução. Dizem aqueles que os cheques destinavam-se ao pagamento de uma dívida que D... tinha para com eles, resultante de um empréstimo.
Por outro lado, e contrariamente ao que consta desse ponto, o montante do empréstimo não corresponde ao valor dos cheques (incorrectamente escreveu-se “da letra”). Como vem alegado pelos embargados, os cheques foram entregues pelo referido Américo para pagar a restante quantia em dívida.
O recorrente não questiona esse negócio, limitando-se a esclarecer que nenhuma relação obrigacional existe ou existia entre si e os exequentes ou com o dito Américo, que, diz, aqueles referem como tendo com eles uma dívida proveniente de mútuo. Aliás até admite essa dívida na alegação fáctica feita na parte final do art.7º da petição.
Por conseguinte, espelhando a realidade fáctica resultante dos articulados, o facto material que dever ser descrito no dito ponto 3 será então este: os cheques destinavam-se ao pagamento de uma dívida que D... tinha para com os exequentes/embargados.
Todavia, este facto é irrelevante para a decisão de mérito dos embargos. O embargante não foi parte no dito negócio e entre ele e os embargados nenhuma relação obrigacional existiu subjacente aos cheques em causa. Nisto as partes estão de acordo.
É inquestionável que os recorridos são portadores de dois cheques assinados pelo recorrente sem indicação do beneficiário (portanto, cheques ao portador) sobre a conta de que é titular no banco sacado, cheques esses que aos embargados foram entregues pelo Américo Oliveira por via de endosso.
Tal como a letra, o cheque é também uma ordem de pagamento. Porém, o sacado é necessariamente um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador. Com esta especificidade, o cheque é encarado como um documento destinado à circulação. A sua autonomia é claramente estabelecida nos arts. 10º, 21º e 22º da L.U.C. (como os demais a citar sem referência expressa).
Sendo naturalmente um título à ordem, é transmissível por via de endosso (art.14º §1º).
Endossar um cheque significa transferir para outrem a sua propriedade, com todas as garantias que a asseguram (art.17º).
No caso, os endossos são considerados como endossos em branco, por não estarem designados os beneficiários e constar no seu verso a simples assinatura do endossante (art.16º). E assim, os cheques endossados em branco converteram-se em verdadeiros cheques ao portador.
Pelo art.19º, é portador legítimo, além do originário portador, todo o detentor do cheque que justifique o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo se o título for em branco.
Como vimos, o portador dos dois cheques, Américo Oliveira, endossou-os aos embargados, que desse modo se tornaram legítimos portadores dos mesmos.
O pagamento dos cheques foi recusado com a declaração de furto e extravio. Logo, não podendo os portadores satisfazerem-se através do banco sacado, o seu direito de acção tanto podia ser dirigido contra o endossante como contra o aqui recorrente, sacador dos cheques (art.40º). A garantia mínima do cheque é dada pela assinatura do sacador (art.12º).
Dispõe o art.22º que «As pessoas accionadas em virtude de um cheque não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador ao adquirir o cheque tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor».
Este artigo sanciona a inoponibilidade ao portador mediato das excepções que eventualmente se estabelecem entre os signatários do cheque. O cheque está no domínio das relações mediatas, quando na posse duma pessoa estranha ás convenções extracartulares.
Na situação em análise, os cheques em causa, no que respeita ao embargante e aos embargados, situam-se no campo das relações mediatas. Conforme antes se salientou, subjacentemente à emissão dos cheques não existiam quaisquer negócios entre sacador e os actuais portadores.
Os embargados estão, pois, na situação de portadores mediatos e nesse plano o embargante não pode opor a eles as excepções fundadas sobre as relações pessoais dele com o originário portador, depois endossante.
Ora, o que o recorrente veio afirmar como suporte da sua pretensão, foi que, com permissão sua, os cheques com a sua assinatura mas sem qualquer outra menção, foram levados pelo Américo Oliveira para este os entregar ao exequente por uns dias, até ter o montante pecuniário suficiente para pagar a dívida com os exequentes. Mais afirmou que os cheques deveriam ser restituídos, e que por isso não eram para ser preenchidos e muito menos para servir como meio de pagamento. Tendo-o sido, acrescenta, o dito Américo teve uma atitude abusiva o que levou a que ele, executado, desse ordens ao banco sacado para não pagar.
Facilmente se constata perante esta argumentação, que o apelante veio invocar as excepções fundadas sobre as relações pessoais dele, sacador, com o anterior portador, mas que não podem ser opostas aos actuais portadores que, pelo endosso, ficaram investidos de todos os direitos cambiários incorporados nos cheques. Sê-lo-iam se a aquisição dos cheques pelos portadores mediatos fosse feita com intenção de prejudicar o devedor accionado ou vontade de lhe causar prejuízo – art.22. Ora, a tal respeito nenhum facto trouxe o apelante aos autos.
Afirma, é certo, que os exequentes tinham o dever de saber os factos referidos através do Américo. Quer o apelante dizer que os exequentes deviam conhecer o que fora acordado entre o sacador e o endossante. Isso, porém, ainda que viesse a provar-se não seria o suficiente para se ter por verificado o circunstancialismo do art.22º. Seria, pelo contrário, se os apelados, conhecendo aqueles factos, ao adquirirem os cheques pelo endosso tenham procedido conscientemente em detrimento do devedor, como estipula esse preceito.
Certo é que o apelante não podia ignorar que apondo a sua assinatura nos cheques, ficava obrigado aos respectivos pagamentos quanto a terceiros de boa fé (art.12º), ainda que nenhum negócio existisse entre ele e os portadores legítimos.
Como assim, porque os autos carecem de factos capazes de caracterizar a actuação dos apelados como portadores de má fé para os efeitos do art.22º, afigura-se desnecessário o prosseguimento do processo para produção de prova da factualidade alegada.
Bem andou, pois, a 1ª instância em julgar os embargos improcedentes no despacho saneador, importando, assim, confirmar o saneador-sentença, o qual não enferma de nenhuma nas nulidades contempladas no art.668º/C.P.C., mormente daquela que o apelante lhe aponta.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão apelada com a correcção fáctica acima operada.
Custas pelo apelante.
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COIMBRA,