Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1769/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. GARCIA CALEJO
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO - DESPEJO POR FALTA DE RESIDÊNCIA PERMANENTE
CAUSA IMPEDITIVA DO DESPEJO
Data do Acordão: 10/14/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUIZOS CÍVEIS DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Área Temática: DIREITO CIVIL, ARRENDAMENTO URBANO, DESPEJO
Legislação Nacional: ART.º 64°, N° 1, AL. C), F) E I) E N.° 2, AL. C), DO R.A.U..
Sumário:
I- A noção de residência permanente está ligada à casa onde se tem organizada a vida familiar e social e a respectiva economia doméstica.
II - Se o inquilino, durante cerca de 3 anos, come e dorme habitualmente em casa de uma sua companheira, des1ocando-se à casa arrendada apenas para cuidar dos seus pássaros, galinhas e patos, há que concluir que durante esse período de tempo deixou de centrar a sua vida doméstica no locado e de aí residir.
III - É causa impeditiva de resolução do contrato de arrendamento a permanência no locado do cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou de outros familiares dele e desde que, neste último caso, com ele convivam há mais de um ano e em ambos os casos desde que também exista um elo ou vínculo de dependência económica entre o arrendatário e eles ou a casa.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- Maria José ... e Edgar ..., residentes na Rua Direita da Escola, Póvoa do Paço, Cacia, Aveiro, propõem contra Joaquim ..., residente na Viela do Carreiro, Póvoa do Paço, Cacia, Aveiro e Delfina ..., residente na Rua de Eixo, 9, Salgueiro, Vagos, a presente acção com processo sumário, pedindo que seja declarado resolvido o contrato de arrendamento celebrado com os AA., seja decretado o despejo imediato do prédio urbano identificado no art. 1º da p.i. por forma a que seja entregue aos AA. completamente devoluta de pessoas e bens, a pagar aos AA. as rendas vencidas desde Dezembro de 1996 até à presente data e as vincendas até ao trânsito em julgado da sentença que decrete o despejo, a pagar aos AA. os juros de mora vencidos à taxa legal e os vincendos até efectivo e integral pagamento, contabilizados sobre as rendas vencidas em dívida e sobre as vincendas.
Fundamentam o seu pedido, em síntese, no facto de os RR., arrendatários da casa que identificam, terem deixado de pagar a renda que convencionaram, sendo também certo que os mesmos deixaram de ter residência permanente no prédio, sendo que cederam ceder a um filho o uso do prédio sem qualquer autorização dos AA., senhorios.
1-2- O R. marido contestou referindo, também em síntese, que mantém no locado a sua residência, que nunca convencionou com os AA. o pagamento de uma renda de 1.000$00 e que nunca cedeu a posição de arrendatário a seu filho.
Termina pedindo a improcedência da acção.
1-3- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, após o que se fixou os factos assentes e a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu ao questionário e se proferiu a sentença.
1-4- Nesta considerou-se improcedente por não provada a acção e, em consequência, absolveu-se os RR. do pedido.
1-5- Não se conformando com esta sentença, dela vieram recorrer os AA., recurso que foi admitido como apelação e com efeito suspensivo.
1-6- Os recorrentes alegaram, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões úteis:
1ª- Aquele que vai uma vez por dia, durante algum tempo tratar das galinhas e dos patos que mantém no locado, dormindo, comendo, recebendo os amigos e a correspondência noutra casa que passou a habitar há três anos, certamente que não reside no locado, pois não se pode resumir o conceito de residência ao local onde se cria patos e galinhas, nem a respectiva actividade de criação dos animais como constitutiva do conceito de residência.
2ª- Fica prejudicado o interesse em averiguar do carácter permanente dessa residência que não existe.
3ª- Não deverá ser por aplicação da excepção do nº 2 do art. 64º do RAU que se deixará de considerar resolvido o contrato de arrendamento com o fundamento em falta de residência permanente, uma vez que o filho dos RR. não permaneceu no locado, como exige a norma, antes se mudou para o locado, passando a viver neste, tempos depois de os RR. terem deixado de habitar permanentemente no locado.
4ª- A cedência da casa por parte do R. marido a seu filho Fernando, é ilícita e ineficaz, pois não foi autorizada nem comunicada aos apelantes, nos termos da al. f) do nº 1 da citada norma e das alíneas g) e f) do art. 1038º do C.C., pelo que confere o direito à resolução do contrato.
5ª- A matéria de facto dada como provada, não pode estribar o Mº Juiz a decisão em que refere que “resultou provado que um filho do R. de nome Fernando, veio habitat com o pai há cerca de dois anos, contados da data da propositura da acção, por não ter possibilidades económicas de arrendar ou de comprar a casa”
6ª- A resposta negativa ao quesito 30º ( que dá como não provado que o filho Fernando viva na dependência do R. ) não permite que se diga na sentença que “o filho passou a viver com o pai, integrando-se, de novo, na família de que provém”.
7ª- Quanto à prática de actos ilícitos no locado, é argumento estritamente formalista considerar que tais actos, violadores de direitos absolutos de personalidade dos senhorios, ou até de terceiros, só constituem o direito à resolução do contrato se forem praticados pelo próprio arrendatário e que para que os actos do filho pudessem ser fundamento de resolução, havia que demonstrar que o arrendatário “é autor moral, instigador de tais factos ou que tem culpa, de alguma forma”.
8ª- O mesmo é dizer que o senhorio é obrigado a suportar o barulho ou qualquer que seja a prática ilícita de mãos atadas, simplesmente porque não é o arrendatário a realizá-las.
9ª- Tal solução seria frontalmente violadora dos mais elementares princípios de boa fé.
10ª- Também não parece razoável exigir que o arrendatário seja autor moral, instigador ou que seja alegada a sua culpa na produção de tais actos, já que ele tem título legítimo para deter o locado e para o defender contra actos que perturbem o exercício dos seus direitos sobre o locado, dispondo para tanto dos meios de defesa facultados ao possuidor ( art. 1037º nº 2 do C.C.).
11ª- Não parece ter acolhimento, face aos factos provados, o argumento do Mº Juiz de que “não parece que os actos sejam suficientemente graves, em si ou pela sua repetição para darem causa ao despejo”, pela simples razão de que o que parece subjacente é a especial sensibilidade do A. marido aos barulhos, atenta a doença de que sofre e não a intolerabilidade ao barulho feito.
12ª- Parece estarem preenchidos os requisitos constantes das als. c), i) e f) do art. 64º do RAU para que possa ser decretada a resolução do contrato de arrendamento.
Termos em que deve ser concedido provimento à apelação, revogando-se a sentença recorrida de modo a que a acção seja julgada procedente por provada, declarando-se resolvido o contrato de arrendamento, decretando-se o despejo do imóvel.
1-7- A parte contrária respondeu a estas alegações sustentando o não provimento do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
2-2- Após as respostas à matéria de facto da base instrutória, ficaram assentes os seguintes factos:
1- Os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio misto sito na Rua Direita da Escola, Póvoa do Poço, Cacia.
2- Está inscrito na Conservatória de Registo Predial de Aveiro a favor dos AA..
3- Há cerca de 50 anos, Sebastião Rodrigues Neto e mulher Rosa Barbosa da Silva cederam aos RR. o uso e fruição de uma dependência do prédio urbano identificado em A), para habitação permanente destes, pela renda mensal de 50$00.
4- A renda, nos termos convencionados, deveria ser depositada anualmente, na conta bancária nº 0123749337550 da C.G.D. aberta em nome de “Casa da Eira”.
5- Os RR. depositaram em tal conta, 600$00 a 3-1-95, 600$00 a 3-1-96, 600$00 a 3-1-97, 600$00 a 3-1-98, 600$00 a 4-1-99, 1.200$00 a 3-1-2000.
6- O signatário da contestação depositou, pelos RR., na conta mencionada, à ordem do 1º Juízo Cível de Aveiro, processo 623/2001, a quantia de 90.000$00.
7- Este depósito é condicional e feito nos termos do art. 1048º do C.C.
8- A R. Delfina encontra-se a viver com uma filha há mais de quatro anos, em virtude de problemas de saúde.
9- O R. durante cerca de três anos e até Setembro de 2002, comia e dormia habitualmente em casa de sua companheira de nome Antónia, mas todos os dias se deslocava à casa arrendada, onde permanecia durante algum tempos e onde cuidava dos seus pássaros e restante criação ( galinhas e patos ).
10- Um dos filhos do R., chamado Fernando, veio habitar para casa dos pais, há cerca de dois anos ( à data da propositura da acção ) por não ter possibilidades económicas de arrendar ou comprar casa devido o seu pouco apego ao trabalho.
11- O referido filho dos RR. regressa frequentemente a casa alcoolizado.
12- Para entrar no locado, tem que utilizar o mesmo pátio da residência dos AA.
13- O filho dos RR. quando regressa a casa alcoolizado, faz barulho, batendo com o portão e falando em voz alta, o que perturba o sono dos AA, em especial do A. marido que sofre de esponduil-artrite anquilosante.
14- AA. e RR. nunca acordaram na alteração da renda de 50$00 para 1.000$00.
15- O que se passou é que o imóvel arrendado aos RR. não tem água canalizada.
16- O que os obrigava a recorrer ao fontanário público.
17- Nos meses de Julho e Agosto o fontanário seca, o que torna a situação dos RR. e de outros habitantes do lugar bastante complicada.
18- AA e RR. acordaram que aqueles forneceriam água aos RR. mediante o pagamento por estes de 1.000$00 mensais.
19- Em Novembro de 1996, na sequência de desentendimento entre o A. marido e os RR., aquele cortou-lhes a água, não mais a voltando a ligar.
20- Os RR. deixaram, em resultado disso, de pagar os 1.000$00, passando a fazer unicamente o pagamento da renda de 50$00, através de depósito na C.G.D., nos termos referidos em D) e E) da matéria assente.
21- O R. marido tem problemas de saúde, necessitando do auxílio de terceiros no que respeita ao tratamento de roupas e confecção de alimentos.
22- Necessita de quem lhe ministre a medicação prescrita pelo médico, pois é analfabeto e tem bastantes limitações físicas.
23- Necessita de se lavar, não tendo já forças para ir buscar água de cântaro à fonte.
24- É o R. quem paga as despesas correntes relativas à casa.-----------
2-2- Como se vê pelas alegações de recurso e suas conclusões, os apelantes discordam da douta sentença recorrida na medida em que esta não declarou a resolução do contrato de arrendamento em causa, por falta de residência permanente dos arrendatários, pela cedência ilícita do locado e por prática de actos ilícitos nele, fundamentos de resolução que os factos provados evidenciam e a que dizem respeito, respectivamente, as als. i), f) e c) do nº 1 do art. 64º do R.A.U..
Comecemos pela causa de resolução relativa à falta de residência permanente dos arrendatários.
Na douta sentença recorrida sobre o assunto referiu-se que face aos factos provados, não se pode dizer que “o réu Joaquim tenha deixado de residir permanentemente no prédio arrendado. Os factos provados atestam o contrário: ali continuou sempre o centro da sua vida; ali é que tem os seus pertences, os seus animais de estimação e domésticos; ali é que ele acode todos os dias. Se ele vai a casa da companheira para comer e dormir, tal só acontece devido às necessidades prementes da sua idade, do seu estado de saúde e das circunstâncias da vida, designadamente ao facto de não ter quem o cuide. Portanto não existe, no caso, falta de residência permanente o R. não se mudou «de armas e bagagens» para outra residência, apenas passa parte do dia e a noite em casa da companheira, mas sempre acudindo à residência própria, que sempre foi a arrendada. Queremos dizer com isto que nunca poderia a casa da companheira considerar-se como a casa de morada do R.. A casa da companheira é a casa dela. A casa de morada do R., o centro dos seus interesses, da sua estabilidade, a sua referência pessoal em termos de habitação sempre foi a arrendada”. Em consequência julgou improcedente o fundamento de resolução do contrato em causa.
Os apelantes discordam em absoluto da posição da sentença. É que, no seu entender, aquele que vai uma vez por dia, durante algum tempo tratar das galinhas e dos patos que mantém no locado, dormindo, comendo, recebendo os amigos e a correspondência noutra casa que passou a habitar há três anos, certamente que não reside no locado, pois não se pode resumir o conceito de residência ao local onde se cria patos e galinhas, nem a respectiva actividade de criação dos animais como constitutiva do conceito de residência. Por isso, face aos factos que se provaram a resolução do contrato, no seu entender, impunha-se.
Vejamos:
Com interesse para a resolução da questão provou-se que a R. Delfina encontra-se a viver com uma filha há mais de quatro anos, em virtude de problemas de saúde. O R. durante cerca de três anos e até Setembro de 2002, comia e dormia habitualmente em casa de sua companheira de nome Antónia, mas todos os dias se deslocava à casa arrendada, onde permanecia durante algum tempos e onde cuidava dos seus pássaros e restante criação ( galinhas e patos ). Um dos filhos do R., chamado Fernando, veio habitar para casa dos pais, há cerca de dois anos ( à data da propositura da acção ) por não ter possibilidades económicas de arrendar ou comprar casa de vido o seu pouco apego ao trabalho.
Estabelece o art. 64º nº 1 al. i) que “o senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário ... sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia”.
A noção de residência permanente está ligada, como nos parece jurisprudência pacífica, à casa onde o arrendatário tem organizada a sua vida familiar e social e a sua economia doméstica. É a casa, em suma, onde o arrendatário e a família com ele convivente habitualmente dorme, toma as suas refeições e recebe as pessoas das suas relações de amizade ( entre outros Acs. do STJ de 5-3-85, BMJ 345º, 372, Rel. Porto da 12-10-97, BMJ 468º, 463 e Rel. Lisboa 11-3-99, C.J. 1999, Tº II, 8 ). Como refere Aragão Seia ( Arrendamento Urbano, pág. 299 ), “são seus traços constitutivos e indispensáveis a habitualidade, a estabilidade e a circunstância de constituir o centro da organização da vida doméstica”.
Face aos factos dados como provados dúvidas não temos em considerar que a R. mulher não tem no locado a sua residência permanente. Com efeito, estando há mais de quatro anos a viver com uma filha, é evidente que a mesma deixou de ter no locado o centro da sua vida doméstica, nos termos definidos. É certo que se provou que a R. deixou de aí habitar, em virtude de problemas de saúde, ou seja por doença. Não se ignora, igualmente, que não tem aplicação a resolução do contrato pela dita causa em caso do doença do arrendatário ( nº 2 al. a) do art. 64º ). Tem-se entendido, porém, que a doença tem que ser temporária e com possibilidades de cura, precisando de cuidados que só podem ser prestados fora do arrendado ( neste sentido, ente outros, Acs. da Rel.Porto de 24-7-86, C.J. 1986, Tº 4, 223, Rel. de Coimbra de 23-10-90, C.J. 1990, Tº 4, 81 e da Rel. de Lisboa de 7-5-92, BMJ 417, 806. Só nestas circunstâncias a manutenção do arrendamento, sob o ponto de vista social e prático, fará sentido. Transpondo estes princípios para o caso dos autos, dúvidas não temos em afirmar que competia à R. mulher provar que a sua ausência do locado se devia a doença temporária, o que não logrou fazer. Assim, não provando a causa impeditiva de resolução derivada de doença, é evidente que a resolução do contrato pedida em relação à R. mulher, teria que proceder.
E em relação ao R. marido ?
Provou-se, como se viu, que ele durante cerca de três anos e até Setembro de 2002, comia e dormia habitualmente em casa de sua companheira de nome Antónia, mas todos os dias se deslocava à casa arrendada, onde permanecia durante algum tempos e onde cuidava dos seus pássaros e restante criação ( galinhas e patos ).
Temos pois que o R. durante cerca de três anos, comia e dormia habitualmente em casa de sua companheira de nome Antónia.
Somos em crer que estes factos, são demonstrativos de que o R. passou a habitar, com permanência ou continuidade, na casa da companheira. Durante esse período deixou de centrar a sua vida doméstica no locado. Deixou de aí residir. Claro que esta situação ou conjuntura não se alterou pela circunstância de, todos os dias, aí permanecer algum tempo ( desconhecendo-se o que lá, concretamente, fazia ) e aí cuidar dos seus pássaros e restante criação ( galinhas e patos ). Note-se a este propósito que o R. não logrou provar que seja no locado que continua a viver, nele recebendo os seus amigos e a correspondência ( matéria factual indagada no quesito 28º ), ou seja, não demonstrou circunstâncias indiciadoras de que continua a ter a sua residência na casa dos autos.
Sabendo nós que são traços constitutivos e indispensáveis ao conceito de residência permanente, a habitualidade, a estabilidade e a circunstância de a casa ser a sede ou o centro da vida doméstica, ocupações acidentais ( mesmo que diárias ), não têm a virtualidade para inculcar a ideia do uso do arrendado como residência permanente, principalmente quando os actos inerentes à vivência quotidiana, o centro da organização da vida doméstica, se faz noutro local. Igualmente não tem essa virtualidade o facto de, diariamente, cuidar na casa arrendada dos seus pássaros e restante criação ( galinhas e patos ). Pelo contrário, poder-se-á até dizer que o locado apenas lhe servirá para aí ter esses animais, pois os actos de existência ( como comer e dormir ) realiza-os noutro local, concretamente em casa da sua companheira.
Não se ignora, por outro lado, que por contingências de vida pessoal, familiar e profissional, o arrendatário possa ou se veja forçado a ter mais de que uma residência permanente, em diferente locais e aptas a servirem de forma paritária a instalação da sua vida doméstica, com carácter de estabilidade, de forma habitual e duradoura. Mas isso sucederá, normalmente, em localidades diferentes. Nesses casos poderemos estar numa situação de residências alternadas, que aliás, a própria lei civil admite ( art. 82º nº 1 do C.Civil ). Mas o essencial é que a vida doméstica, com o carácter de estabilidade e de forma habitual e duradoura, se desenvolva nesses locais, circunstâncias que, patentemente, se não indiciaram no presente caso. No locado, como se viu, o R. apenas permanece acidentalmente ( desconhecendo-se o que lá faz ), utilizando-o para a criação de animais.
Parece-nos excessivo considerar-se, como se faz na douta sentença recorrida, que o R. marido continuou a manter o centro da sua vida no locado. É que, como já se viu, os factos provados já acima evidenciados, não permitem retirar essa conclusão. Igualmente nos parece impróprio considerar, como igualmente se faz no mesmo aresto, que é no locado que o R. tem os seus pertences. Para além dos animais referenciados, desconhece-se se o R. tem aí qualquer outro bem. Também nos parece impróprio o entendimento da sentença recorrida segundo o qual, se o R. vai a casa da companheira para comer e dormir, tal só acontece devido às necessidades prementes da sua idade, do seu estado de saúde e das circunstâncias da vida, visto que tal não consta dos factos provados, nem é possível induzir esse circunstancionlismo desses factos.
Somos pois em crer que o fundamento a que nos vimos referindo se concretizou no caso dos autos.
É certo que se provou também que o R. marido tem problemas de saúde, necessitando do auxílio de terceiros no que respeita ao tratamento de roupas e confecção de alimentos. Necessita de quem lhe ministre a medicação prescrita pelo médico, pois é analfabeto e tem bastantes limitações físicas. Necessita de se lavar, não tendo já forças para ir buscar água de cântaro à fonte.
Estas circunstâncias poderiam levar a considerar a causa impeditiva desta causa de resolução do contrato de arrendamento a que já acima nos referimos, isto é, a doença do arrendatário.
Para além do que já acima dissemos a respeito de a doença ter que ser temporária e com possibilidades de cura e de o arrendatário precisar de cuidados que só possam ser prestados fora do arrendado ( circunstâncias que os factos provados não demonstram ), o A. não prova que a saída do locado se deu em virtude da doença, isto é, não provou ( nem sequer foi invocou - vide contestação -) a causa específica de impedimento da causa de resolução em análise, a sua doença ( temporária ), impeditiva da sua permanência no locado. A posição processual do R. marido foi antes a de que continua a habitar na casa, onde recebe os seus amigos, a correspondência, apesar de precisar de terceiros para o auxiliar na sua existência ( vide mesmo articulado ).
É ainda impeditivo desta causa de resolução do contrato de arrendamento se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste último caso, com ele convivessem há mais de um ano (nº 2 al. c) do mencionado art. 64º ).
No caso vertente provou-se que um dos filhos do R., chamado Fernando, veio habitar para casa dos pais, há cerca de dois anos ( à data da propositura da acção ).
Tendo-se provado que há cerca de três anos o R. passou a residir em casa de sua companheira ( onde comia e dormia ), é evidente que, se o filho passou a habitar no locado há cerca de dois anos, existiu um lapso de tempo ( de cerca de um ano ) que na casa não habitou qualquer familiar do inquilino, designadamente o seu filho Fernando. Logo, a causa impeditiva a que nos referimos não pode actuar, já que no momento em que o R. aí deixou de habitar, não ficou lá qualquer parente em linha recta do arrendatário.
Mas mesmo que assim não fosse, como lapidarmente refere Aragão Seia “mas não basta que no arrendado permaneçam esses familiares ou alguns deles. Necessário se torna, ainda, a existência de um elo ou vínculo de dependência económica entre o arrendatário e eles ou a casa. Havendo desintegração do agregado familiar não existe causa impeditiva do direito de resolução do contrato de arrendamento, mesmo que na casa fiquem familiares constituindo um novo agregado familiar, pois o agregado familiar contemplado nesta alínea é o do arrendatário e não o constituído por familiares que dele de desagregaram. Dir-se-á, por último, que a ausência do arrendatário tem que ser sempre temporária, mantendo-se somente em suspenso o regresso ao lar ( in mesma obra, pág. 309 ). E compreende-se que assim seja. O objectivo o legislador ao determinar esta causa impeditiva da resolução do contrato, foi evitar a quebra de dependência económica ou desintegração de uma família. Se essa desagregação já existe, não há que aplicar a medida destinada a evitá-la. Vem isto a propósito de não se ter provado uma factualidade denunciadora de uma dependência económica do filho em relação ao R.. Com efeito apenas se provou que o filho foi habitar a casa do pai por não ter possibilidades económicas de comprar ou arrendar casa e que é o R. quem paga as despesas correntes relativas à casa, circunstâncias, a nosso ver, não suficientes para demonstrarem o vínculo de dependência económica entre o filho e o R. arrendatário. Nada se provou, por exemplo, em relação à subordinação do filho ao pai, em matéria ( essencial ) de alimentação. Isto é, pelo facto de o filho ter ficado a habitar na casa, não significa, a nosso ver, que se tenha integrado plenamente no agregado familiar do arrendatário.
Tudo isto serve para dizer que não há que fazer uso da excepção do art. 64º nº 2 al. c) em análise.
Significa isto e em síntese que não se poderá deixar de considerar resolvido o contrato de arrendamento com o fundamento de falta de residência permanente dos arrendatários.
Só mais uma notas para responder às contra-alegações do apelado. Assim, diremos que não se pode retirar do documento indicado, a prova que pretende, isto é, que o R. marido reside no local aí indicado. Trata-se de um documento que atesta a carência económica do R., mas que não se debruça sobre o ponto controvertido do local da residência dele. A força probatória do documento será plena, tão só, quanto aos factos praticados pela autoridade, assim como em relação àqueles que são atestados com base nas percepções da entidade documentadora ( art. 371º nº 1 do C.Civil ), o que patentemente não ocorre em relação ao local da residência do R. como se verifica pelo teor do documento.
No que toca à falta de condições de habitabilidade que o R. inquilino terá deixado de ter, em virtude de o A. marido ter cortado a água aos RR. ( e por isso existir por parte do inquilino a exceptio non adimpleti contratus ), diremos que, como se provou, o imóvel arrendado aos RR. não tem água canalizada ( versão do próprio R.-vide contestação- ), daí que não era permitido ao R., pelo dito motivo, ausentar-se da casa e passar a habitar noutra. De resto, essa motivação para a ausência, só agora, em sede recurso, foi trazida aos autos. Nos articulados, o fornecimento e o corte de água serviu apenas para o R. sustentar que a renda se deveria manter nos 50$00 mensais (hoje 0,25 Euros ). O pagamento dos 1.000$00 mensais seria para o A. marido fornecer a água aos RR. ( art. 7º da contestação ) e não como retribuição pelo uso da casa. Por isso, a excepção do não cumprimento do contrato foi invocada para a extinção da obrigação de pagar a água ( art. 10º da contestação ). Daí que não se não entenda a posição agora assumida pelos RR. no recurso.
Quanto à referência ao ano a que alude a al. i) do art. 64º nº 1 em observação, diremos que nos parece jurisprudência absolutamente pacífica, que tal menção diz respeito apenas à primeira parte da disposição ( conservar o arrendatário o prédio desabitado por mais de um ano ) e não já à segunda ( não ter o arrendatário nele a residência permanente ) sendo que é esta que está em causa no presente caso. Basta pois que se prove que o arrendatário não tem no locado a sua residência permanente, para logo actuar, independentemente de qualquer lapso temporal, a causa de resolução em causa.
O recurso será pois provido e acção deverá ser julgado procedente.
Por evidente inutilidade, não se conhecerão dos outros fundamentos do recurso.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, dá-se provimento ao recurso, revogando-se (parcialmente ) a sentença recorrida, declarando-se resolvido o contrato de arrendamento celebrado com os AA., decretando-se o despejo imediato do prédio urbano identificado no art. 1º da p.i., devendo os RR fazerem a sua entrega aos AA. completamente devoluto de pessoas e bens.
Por não ter sido objecto de recurso, mantém-se a douta sentença recorrida, no tocante às rendas, concedendo-se aos RR. o direito de levantar a quantia condicionalmente depositada ( fls. 70 ).
Custas na acção por ambas as partes, na proporção de 1/3 para os AA. e de 2/3 para os RR. e, na apelação, pelos apelados.