Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3633/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE DIAS
Descritores: ALTERAÇÃO DOS FACTO DE ACUSAÇÃO
MOMENTO DA COMUNICAÇÃO
Data do Acordão: 01/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: NÃO SE TOMOU CONHECIMENTO DO RECURSO
Legislação Nacional: ART.º 358.º DO CPP
Sumário:

I – O art. 358.º do CPP integra-se na fase do julgamento e só pode ser determinado quando o juiz do julgamento já se encontra em “pleno exercício das suas funções de julgador” e a alteração resulta como consequência directa das suas funções.
II – Efectuada a comunicação a que alude o art. 358 do CPP, antes de iniciada a produção da prova, o despacho que a contém sofre de irregularidade que afecta a total validade do mesmo, importando a sua inviabilidade.

Decisão Texto Integral:

Recurso nº 3633/03
Processo nº 414/01.9TATMR-A, do 2º Juízo do Tribunal da Comarca de A.
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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferido despacho através do qual era efectuada a comunicação a que alude o art. 358 do CPP.
Inconformados, os arguidos B e C, apresentam recurso (independentes) para esta Relação.
Na motivação do seu recurso, o arguido B apresenta as seguintes conclusões, que delimitam o âmbito do mesmo:
1) Na verdade, a alteração substancial dos factos é aquela que tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (cfr. Maia Gonçalves, in Código Processo Penal, 12° edição 2001, pág. 676).
2) Pelo que estamos perante uma alteração substancial dos factos e não perante uma alteração não substancial dos factos).
3) Mesmo, entendendo-se que aos factos descritos na acusação corresponderia o crime previsto no art. 277° do Código Penal - o que não se aceita - a moldura penal do mesmo seria de pena de prisão até 3 anos ou pena de multa,(cfr. n.º 3 do cit. art. 277 do Código Penal).
4) Isto porque segundo os factos descritos na acusação a conduta dos arguidos foi praticada com negligência.
5) Salvo o devido respeito, o Tribunal deveria ter interpretado a norma do art. 277 do Código Penal como crimes de defeitos de construção, ou seja o que está em causa naquele artigo é a análise de defeitos da construção e as suas consequências e não a segurança para os executantes dessa mesma construção.
6) Pelo que a qualificação jurídica dada aos factos narrados na acusação pelo Ministério Público está correcta.
7) O Tribunal singular é competente.
8) Mesmo aderindo ao entendimento do Tribunal a quo - entendimento esse que discordamos na integra - a moldura penal seria de pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, uma vez que segundo a acusação a conduta dos arguidos foi praticada por negligência (cfr. n.º 3 do art. 277° do Código Penal).
9) A audiência iniciou-se e só depois de se ter iniciado é que o Tribunal a quo emitiu o despacho de que se recorre.
10) O Tribunal a quo não poderia conhecer da sua incompetência depois da audiência ter sido declarada aberta.
11) O despacho recorrido viola os arts. 277°, n.º 1, alíneas a) a d) e n.º 3 do Código Penal, e ainda, o art. 359º e art. 32°, n.º 2, alínea b) ambos do C.P.P., bem como o seu correcto entendimento.
Pelo exposto deve revogar-se o despacho recorrido, e por consequência deve manter-se a qualificação jurídica dos factos bem como da estrutura singular do Tribunal.
Decidindo nesta conformidade será feita: JUSTIÇA!
Na motivação do seu recurso, o arguido C apresenta as seguintes conclusões, que delimitam o âmbito do mesmo:
1 Dos factos que constam da acusação, que indiciam a prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, não se pode retirar a existência de qualquer conduta dolosa do arguido.
2 - Pelo que a alteração da qualificação jurídica dos factos não poderá conduzir à acusação do arguido pelo tipo de crime previsto no artigo 277, nº 1, alínea a) do CP, cuja moldura penal se eleva de 1 a 8 anos de prisão.
3- Quanto muito teríamos o preenchimento do tipo de crime previsto no artigo 277 nº 3 do CP, que pune uma conduta negligente.
4- Está assim violado o artigo 16, nº 2, alínea b) do CPP, já que não se prevê a aplicação ao arguido de uma pena superior a 5 anos, pelo que, o tribunal competente para julgar a causa é o de estrutura singular.
5- O crime previsto e punido no art. 137, nº 2 do CP, consome a aplicação do art. 277, nº 3 do CPO, já que ambas as normas pretendem proteger o mesmo bem jurídico, ou seja, a vida.
6- Existe apenas um concurso aparente entre estas duas normas, não podendo o arguido ser julgado pela prática do crime p. e p. no artigo 277, nº 3 do CP, nem tão pouco pelo nº 1, alínea a) do mesmo artigo.
7- Mostrando-se violado o artigo 30, nº 1 do CP.
O que pede e espera desse VENERANDO TRIBUNAL que, assim fará JUSTIÇA!
Responde o Mº Pº aos recursos interpostos eplos arguidos, entendendo não merecer censura a decisão posta em crise.
Nesta Relação, o Ex.mº P.G.A. emite parecer alegando a existência de questão prévia, de cujo conhecimento poderá resultar a nulidade do despacho recorrido e a prejudicialidade subsequente do conhecimento das questões suscitadas nos recursos.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir:
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É do seguinte teor o despacho recorrido, na parte a analisar:
" Compulsada a douta acusação de fls. 242 e subsequente pronúncia de fls. 339, constata-se que os factos aí referidos além de poderem constituir a prática do crime de homicídio por negligência grosseira e as contra ordenações aí referidas, se podem igualmente reconduzir à prática do crime p. e p. no art° 277.º nº 1 alínea a) do Código Penal.
Nota-se assim que a qualificação jurídica, entendida como uma alteração não substancial dos factos, porque os mesmos já constam do despacho de pronúncia, poderá importar a condenação dos arguidos pela prática deste apontado crime, cujo a moldura penal se eleva de 1 a 8 anos de prisão.
Além desta alteração não substancial dos factos que, apesar de ainda não se ter iniciado a audiência, desde já se comunica à defesa nos termos e para os efeitos do disposto no artº 358°, nº 1 do C. P. Penal, também se questiona a competência do Tribunal de estrutura singular.
O referido crime p. e p. no art.º 277°, n° 1 alínea a) do C. Penal tem uma moldura penal que se eleva de 1 a 8 anos de prisão, como já se referiu
Não tendo o Ministério Público feito uso do disposto no artº 16°, n° 3 do C. P. Penal, por força do disposto no art.º 14°, n° 2 alínea b) do mesmo código, compete ao tribunal colectivo julgar o presente processo.
É certo que a acusação foi recebida e aceite a competência do tribunal singular. No entanto, a audiência ainda não teve inicio e o tribunal ainda está em tempo para a apreciar a questão da competência, pois a declaração genérica de que o tribunal é o competente não faz caso julgado quanto à mesma.
Acresce que o artº 32°, n° 2 alínea b ), permite o conhecimento da incompetência do tribunal até ao início da audiência de julgamento (cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 16/5/95, "in" Diário da República I-A de 12/6/95, quanto à questão do caso julgado em sede de legitimidade).-
Pelo exposto:
A) Desde já comunico à defesa a alteração da qualificação jurídica dos factos com vista à apreciação da responsabilidade criminal dos arguidos B e C pela prática do crime p. e p. pelo artº 277°, nº 1 alínea a) do C. penal, nos termos e para os efeitos no artº 358°, n° 1 e n° 3 do C. P. Penal.
B) Declaro este tribunal de estrutura singular incompetente e determino a remessa dos autos à distribuição como processo comum com a intervenção de tribunal colectivo.
Consequentemente, fica sem efeito a audiência de julgamento agendado para hoje, devendo oportunamente ser agendada nova data.
Não é devida taxa de justiça.
Notifique".-
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Conhecendo:
O despacho recorrido insere-se na acta de julgamento onde é declarada aberta a audiência e é feito um requerimento e só é proferido após se pronunciar sobre tal requerimento, sendo que a certa altura do mesmo se refere, “sendo que a audiência ainda não teve início…”.
Haverá apenas contradição aparente, pois que aquele requerimento se insere nos actos introdutórios, não chegando a ser efectuada a exposição introdutória a que se reporta o art. 339 do CPP.
Certo é, que não houve produção de qualquer tipo de prova.
Assim, que o despacho recorrido não é mais que um complemento ou substituição do despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 311 do CPP.
E, tal despacho é dúbio, tendo sido entendido de maneira diferente pelos sujeitos processuais, como se pode constatar nas motivações dos recursos e nas respostas.
Os recorrentes entenderam o despacho no sentido da substituição do crime imputado na pronúncia pelo crime indicado no despacho recorrido. E assim entendeu o Sr. Juiz de Circulo no despacho de fls. 451 a 454 do processo principal.
O Mº Pº entendeu que ao crime imputado na pronúncia acrescia o ora indicado no despacho recorrido.
E parece que ambos os entendimentos têm sustentação no despacho recorrido. O mesmo se inicia dizendo que, e reportando-se à pronúncia, ”…os factos referidos além de poderem constituir a prática do crime de homicídio por negligência grosseira e as contra-ordenações aí referidas, se podem igualmente reconduzir à prática do crime p. e p. no art. 277 nº 1 al. a) do Código Penal”, para concluir dizendo “desde já comunico à defesa a alteração da qualificação jurídica dos factos com vista à apreciação da responsabilidade criminal dos arguidos… pela prática do crime p. e p. pelo art. 277 nº 1 al. a) do C. Penal…”.
No Ac. desta Relação, de 8-6-1994, in Col. Jurisp. tomo III, pág. 55 se entendeu que “o juiz pode, logo no início da audiência de julgamento, proferir despacho a alterar a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação e, em consequência, apreciar em concreto a questão da competência do tribunal”. Jurisprudência que não fez carreira, pois que a jurisprudência dominante, como salienta o Ex.mº PGAé de sentido contrário, e por todos, salientamos o Ac. desta Relação de 15-02-1995, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 62, “o juiz não pode, no início da audiência, alterar a qualificação jurídica dada na acusação ou na pronúncia aos factos imputados ao arguido…”, “o despacho que assim decida sofre de irregularidade que acarreta a respectiva invalidade”.
Porém, ainda que pudesse haver essa alteração da qualificação, a mesma nunca poderia resultar em alteração substancial da acusação, cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 210.
E, no caso em apreço entendemos haver alteração substancial. Alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, conforme definição do art. 1 al. f) do CPP.
O disposto no art. 358 nº 3 do CPP, tem de respeitar este princípio enunciado naquela alínea do art. 1.
Se a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia importar imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, essa mesma alteração é substancial.
Como salienta o Ac. desta relação, de 5-01-2000, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 42, a questão não é liquida nem é nova e está directamente ligada ao conceito, equívoco, de acção penal, cujo exercício compete constitucionalmente ao Mº Pº e à estrutura do processo crime, de sistema acusatório ou inquisitório.
Mas aí se conclui que, “qualificar os factos da acusação como constituindo vários crimes quando vinham considerados como um único, é efectuar uma alteração substancial da acusação”.
O art. 358 do CPP integra-se na fase do julgamento e será determinado pelo juiz do julgamento, quando já se encontra em “pleno exercício das suas funções de julgador e essa alteração resulta como consequência directa das suas funções. A sus situação de independente das partes, até então exigida, dá lugar à sua vinculação à verdade emergente do julgamento. E mesmo então, não é livre de julgar de acordo com o que resulta do julgamento já que deve observar o disposto no nº 1, do mesmo artigo. E isto sendo alteração não substancial, porque se o for, então outra solução não resta que dar cumprimento ao art. 359, nº 1” –Ac. de 5-1-2000, citado.
E continuando a citar, “parece-nos, assim, claro que o juiz não pode, no despacho a que se refere o art. 311, sem mais, alterar a qualificação jurídica dos factos. Exige-o a estrutura acusatória do processo e a posição do juiz nesta fase processual. Nesta o juiz deve limitar-se a pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa (art. 311, nº 1) e não a pronunciar-se sobre o próprio mérito do objecto da causa, sendo certo que desta faz parte a qualificação jurídica. A posição sobre ela será A posição como defensor ou como acusador, uma vez que ainda não exerce funções de julgador nem pode antecipar-se a elas”.
O juiz ao proferir o despacho recorrido exerceu um poder que ainda não está em posição de A. “Nesta fase processual o tribunal não é livre na subsunção até porque desconhece ainda se ela está efectivamente errada”. Nos factos da pronúncia podendo existir o elemento objectivo do crime de infracção das regras de construção, falta de todo o elemento subjectivo, nomeadamente em relação ao perigo.
No nº 1 do art. 277 prevê-se a violação intencional das regras de construção, com perigo também intencional.
No nº 2 prevê-se a violação intencional das regras de construção, com perigo causado por negligência.
No nº 3 prevê-se a violação das regras de construção causada por negligência.
Resta-nos concluir que nesta fase se desconhece se a qualificação jurídica dos factos efectuada no despacho de pronúncia está, ou não, errada.
Assim, o despacho recorrido é ilegal, pois que viola as disposições do processo penal, e como não é determinada a sua nulidade, sofre de irregularidade, a qual afecta a total validade do mesmo, importando a sua invalidade.
Esta decisão implica a prejudicialidade da apreciação das questões suscitadas nos recursos, bem como das decisões posteriores consequência do despacho recorrido.
Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação e Secção Criminal em declarar inválido o despacho recorrido, devendo se substituído por outro que designe dia para a audiência de julgamento.
Julga-se prejudicado o conhecimento de todas as questões suscitadas nos recursos interpostos, das quais não se toma conhecimento.
Sem tributação.
Coimbra,