Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/04. 7TATNV-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: CAUÇÃO ECONÓMICA
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
Data do Acordão: 11/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 194º E 227º CPP
Sumário: 1. A caução económica não pode ser decretada sem previamente se ouvir o arguido.
2. Tal omissão que constitui a nulidade do art. 120.º -1-d) do CPP.
Decisão Texto Integral: Recurso e processo n.º 106/04. 7TATNV-D.C1
Em conferência na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
1- No 1.º Juizo do Tribunal Judicial de Torres Novas, no processo acima referido foi o arguido J... , por acórdão datado de 18 de Dezembro de 2007, condenado pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo art. 205.°, n.os 1 e 4, aI. b), do Código Penal, e ainda condenado a pagar à demandante a quantia de € 915.500,00, acrescidos de juros à taxa legal, desde 22 de Junho de 2007.
Por despacho de fls 35 sgs , pelo sr juiz do processo foi proferido despacho obrigando o arguido a prestar caução no montante de € 939.677,12., através da constituição de penhor, sobre as quotas que o arguido dispõe nas sociedades indicadas no despacho, sem prejuízo de proceder, querendo, ao depósito nos termos do artigo 623°, nOl, do Código Civil, através da constituição de hipoteca judicial sobre os prédios ali referidos, no montante de € 939.677,12.

2- Inconformado, recorre o arguido, concluindo a sua motivação como segue :
0 douto despacho recorrido é juridicamente inexistente;
A decisão recorrida é nula porque não obedece aos critérios legais exigidos pelo art. 374° n° 2 do C.P.P.;
A decisão recorrida enferma da nulidade prevista no art. 379°, n° 1, al. a) por referência ao n° 2 do art. 374° ambos do C.P.P., nulidade esta que é do conhecimento oficioso , o que decorre do preceituado do n° 2 da primeira das disposições citadas, quando consagra que "as nulidades de sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso";
Do douto despacho recorrido não consta o relatório nem a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, nem uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que servem para formar a convicção do tribunal", pelo que nos termos do art. 374° n° 2 do C.P.P. O despacho recorrido é nulo;
Analisado o despacho recorrido, é patente a ausência e fundamentação da decisão de facto nele contida, inexiste a indicação dos motivos que determinaram que o tribunal a quo desse por provada a parte substancial dos factos que constam da matéria de facto provada; falta manifestamente o exame critico das provas que levaram o tribunal a quo a formar a sua convicção no sentido de dar por provada essa mesma parte dos factos;
A testemunha M..., divorciada, enfermeira parteira aposentada residente na …, disse não conhecer o recorrente e na douta decisão recorrida dá-se como provado que o recorrente referiu com foros de seriedade que não pretendia pagar qualquer quantia à assistente. Declarou esta testemunha que era do seu conhecimento que o recorrente terá vendido, pelo menos, uma casa de que era proprietário na zona de Peniche a uma sociedade da qual também era titular. Sendo que, para além de ser falso, este facto teria de ser feito por prova documental (escritura pública de compra e venda).
Ao recorrente não foi dada oportunidade de exercer o contraditório ou de provar precisamente o contrário do alegado pela recorrida, ou seja a verdade dos factos, uma vez que não pode arrolar testemunhas, juntar documentos que provam que nada deve á sociedade. Quer isto dizer que o tribunal ao quo não ouviu, antes de proferir uma decisão ponderada e sensata, as duas partes (assistente e recorrente). Ouviu apenas os argumentos da assistente. Coarctando a possibilidade do recorrente utilizar meios de prova, como sejam a prova testemunhal e a prova documental o que já não poderá fazer nesta sede;
Sucede que ao determinar a não audição prévia do recorrente e decidir sem a mesma audição, o Tribunal a quo decidiu "contra legem ".. Decidiu o Tribunal a quo sem qualquer fundamento legal, nem invocou para isso nenhuma disposição legal, sendo que só em situação de manifesta impossibilidade devidamente fundamentada do recorrente, o que não é o caso é que o douto Tribunal a quo poderia decidir como o fez, sem ouvir o recorrente; pelo que a douta decisão recorrida por esta via para além de ilegal é nula;
0 recorrente não cometeu o crime de abuso de confiança
Pelo que o douto despacho recorrido enferma de graves imprecisões, contradições e inexactidões;
Assim o douto despacho recorrido viola, entre outras, bem como o seu correcto entendimento as normas contidas nos arts. 194°, n° 3, 374" nos 2 e 3 al. b), 379°, n° 1, al. a) e 2, e 474° n° 2 todos do C.P.P.
Devendo assim o douto despacho recorrido ser revogado por falta de audição prévia do recorrente e por manifesta falta de fundamentação o que conduz de uma forma apodíctica à sua nulidade.

3- Nesta Relação, o Exmo PGA renunciou a pronunciar-se por se tratar de uma “questão cível”

3- Colhidos os vistos legais, cabe apreciar e decidir em conferência

4- O despacho recorrido tem, em resumo e em substância, o seguinte teor : (...) « no caso em apreço resulta que o arguido por acórdão datado de 18 de Dezembro de 2007 foi condenado, além do mais, a pagar à demandante a quantia de € 915.500,00, acrescidos de juros à taxa legal, desde 22 de Junho de 2007, tendo o arguido sido notificado daquela decisão nesse mesmo dia, conforme se alcança do teor da acta de fls. 825.
Dos elementos que determinaram a sua condenação, pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo art. 205.°, n.os 1 e 4, aI. b), do Código Penal, resultam, entre outros factos, que o arguido no âmbito da actividade imobiliária desenvolvida pela aqui assistente "JJV…, Lda.", da qual era sócio-gerente conjuntamente com o seu irmão V..., vendeu, nessa qualidade, várias fracções sem prévia deliberação da sociedade e sem o consentimento do respectivo sócio e também gerente V..., recebendo as correspondentes quantias que lhe foram entregues pelos compradores e não as entregando à respectiva sociedade, fazendo-as suas, integrando-as na sua esfera patrimonial e usando-as em proveito próprio. De igual modo, se constata que o arguido, com o propósito de fazer suas as quantias depositadas na conta da assistente, retirou em 25 de Setembro de 1997 a quantia de 108.722.725$00 transferindo-a, sem que tivesse tido qualquer autorização para o efeito, para a sua conta pessoal, e integrou na sua esfera patrimonial a quantia de 7.000.000$00, fazendo-a sua, que recebeu na sequência da realização de um contrato de compra e venda de um lote de terreno para construção que havia celebrado na qualidade de sócio-gerente da assistente.
Por outro lado, resulta evidenciado nos autos que o arguido se vem dedicando à actividade da construção civil, através da firma "F&V…, Lda.", da qual é sócio, residindo numa casa propriedade de sua mulher.
Já depois de ter sido proferida a condenação supra referida, conforme resulta dos documentos junto a fls. 7 a 21, o arguido, conjuntamente com a sua esposa, mediante escritura pública de compra e venda, outorgada no dia 28 de Dezembro de 2007, no Cartório Notarial sito na Rua de Santa Iria, n.o 32, cave, em Tomar, vendeu à sociedade por quotas "F&V…, Lda." seis prédios rústicos pelo preço global de € 1.408,80, sendo o valor das vendas efectuadas por cada um dos terrenos inferior ao respectivo valor patrimonial tributário.
A estes factos acrescem as declarações das testemunhas, designadamente de I..., a qual revelou ter conhecimento de que o arguido tem vindo a proceder à venda de património imobiliário por valores inferiores ao valor de mercado, tendo o mesmo perante esta lhe reafirmado há cerca de um mês que não pagaria qualquer indemnização à assistente.
Também a testemunha M... confirmou que o arguido no próprio dia em que foi conhecida a decisão condenatória referiu com foros de seriedade que não pretendia pagar qualquer quantia à assistente, declarando ainda ser do seu conhecimento que o arguido terá vendido, pelo menos, uma casa de que era proprietário na zona de Peniche a uma sociedade da qual também é titular.
Por sua vez do depoimento da testemunha L…, o qual se revelou desinteressado e imparcial, resulta que o mesmo teve conhecimento por conversas havidas com clientes seus ligados à construção civil, ocorridas em Janeiro deste ano, que o arguido estaria a vender património imobiliário por valores manifestamente baixos, por forma a evitar que a sociedade de que tinha sido sócio pudesse ser reembolsada da quantia indemnizatória a que havia sido condenado a pagar pelo Tribunal. De igual modo, o mesmo sendo conhecedor da zona referiu que em média o preço por metro quadrado de um prédio rústico fora do centro de Tomar nunca seria inferior à quantia de € 200,000 (duzentos euros) por metro quadrado, pelo que qualquer prédio situado em Torres Novas nunca poderia ter um valor de mercado inferior à quantia € 200,000 (duzentos euros) por metro quadrado.
Por conseguinte, teremos sempre que atender a que o preço de mercado dos prédios rústicos identificados na escritura de compra e venda junto aos autos sob o Documento 1 do requerimento apresentado pela assistente são efectivamente de valor claramente superior ao preço pelo qual foram vendidos pelo arguido à sociedade de que também é sócio.
Assim sendo, atenta a conduta do arguido, o qual além da prática de actos tendentes a descapitalizar a sociedade arguida, da qual era sócio, causando-lhe, deste modo, um prejuízo patrimonial, demonstra que este procurou rapidamente vender bens imóveis dos quais era proprietário por valores manifestamente irrisórios, sendo certo que é consabido que tais bens constituem pela sua natureza uma firme garantia para satisfação dos créditos por parte do credor.
Além do mais, tais vendas foram efectuadas à sociedade "F&V…, Lda.", de que o arguido é sócio, conjuntamente com a filha e a esposa, empresa essa que atenta a actividade comercial desenvolvida (na área da construção civil) mais facilmente possibilita a dissipação e ocultação do seu património imobiliário, frustrando, desse modo, as legitimas expectativas da assistente/demandante em ver satisfeito o seu crédito.
Em face do exposto, ordeno a prestação pelo arguido J..., no prazo de vinte dias, de uma caução, através da constituição de penhor, nos termos dos artigos 666.° e seguintes do Código Civil, e 23°, n.o 3 e 228°, nOl, do Código das Sociedades Comercias, sobre as quotas que o arguido dispõe nas sociedades "F&V…, Lda", pessoa colectiva n°…, matriculada na Conservatória do Registo Predial de Torres Novas e "STM…, Lda.", pessoa colectiva n° …, matriculada na Conservatória do Registos Predial de Torres, indicadas nos números 13.° e 14.° do requerimento da assistente, sem prejuízo de proceder, querendo, ao depósito nos termos do artigo 623°, nOl, do Código Civil, através da constituição de hipoteca judicial sobre os prédios descritos no mio 15.0 daquele requerimento, no montante de € 939.677,12 ».
Entretanto, por despacho de fls 31-32 , o mesmo sr juiz determinara a não audição prévia do arguido quanto à requerida prestação de caução, por a mesma poder tornar inútil o efeito pretendido, nos termos do art. 194.º-3 do CodProcPenal .
Uma primeira questão suscitada pelo recorrente, e que a ser procedente prejudica o conhecimento das demais, tem a ver precisamente com o facto de a caução económica decretada nestes autos não ter sido precedida da audição do ora requerente.
Dispõe o art. 227.º do CodProcPenal : « ( Caução económica ) 1 — Havendo fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime, o Ministério Público requer que o arguido preste caução económica. O requerimento indica os termos e modalidades em que deve ser prestada. 2 — Havendo fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização ou de outras obrigações civis derivadas do crime, o lesado pode requerer que o arguido ou o civilmente responsável prestem caução económica, nos termos do número anterior (...) ».
Por seu turno, o art. 194.º do CodProcPenal dispõe, com interesse para o caso, como segue : « 1 — À excepção do termo de identidade e residência, as medidas de coacção e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Ministério Público e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Ministério Público. (...) 3 — A aplicação referida no n.º 1 é precedida de audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial, aplicando -se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º »
Anteriormente, o n.º 2 do mesmo art. 194.º dispunha, com referência às medidas de coacção e de garantia patrimonial : « A aplicação referida no número anterior é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial».
Portanto, após a reforma de 2007 é inquestionável que são mais apertados os limites para o decretar da medida de caução económica ( é este o caso que nos interessa ), não bastando já a mera “inconveniência” da audição do arguido ou visado com a mesma. Só no caso de haver “impossibilidade devidamente fundamentada” é que o juiz pode dispensar o exercício do contraditório, situação aquela que, está bom de se ver, acontecerá em poucos casos. A supressão da locução “inconveniente” e a sua substituição pela locução “ impossibilidade” não pode deixar lugar a dúvidas sobre a intenção do legislador. Se as palavras têm um significado e se o limite da interpretação é a letra, o texto da norma, então aquela alteração só pode querer dizer o que diz.
Esta nova disciplina é bem ilustração de um daqueles casos em que o legislador alterou negligentemente, e até levianamente, as normas processuais penais. Num culto surpreendente pelo absoluto, aquele mesmo absoluto que exclui a flexibilidade e a adaptação às coisas do mundo, o legislador entendeu que imperativamente o arguido não pode deixar de ser ouvido antes de ser declarada a caução económica. E o caso dos autos, como realça o sr. juiz no despacho de fls 31-32, é bem um dos casos em que se deveria desconsiderar o exercício do contraditório, sob pena de a medida requerida se poder tornar inútil. Um pouco como se o policia, perante um flagrante delito, tivesse de dizer ao criminoso para fugir se não queria ir preso. Mas o intérprete-aplicador da lei deve, mesmo perante absurdos legais, ser capaz de manter uma paciência e indiferença próprias do antigo estoicismo, ou, se for adepto de atmosferas mais orientais, de guardar a placitude da sabedoria budista perante os “inconvenientes” movediços e a “impermanência” das coisas de cá de baixo.
Isto para dizer, em suma, que a caução económica não podia ser decretada sem previamente se ouvir o ora recorrente, o que constitui nulidade do art. 120.º -1-d) do CodProcPenal ( neste mesmo sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CodProcPenal Português, 2.ª edição, p. 624 ).
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Decisão
I- Face ao exposto, declara-se a nulidade supra referida, devendo o sr juiz do processo proceder à audição do arguido a fim de eventualmente decretar a caução requerida

II- Sem custas
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Tribunal da Relação de Coimbra, - -


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(Paulo Valério)


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( Frederico Cebola )