Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
361/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
Data do Acordão: 10/02/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 715.º; 1293.º, A); 1294.º; 1297.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGOS 288.º, E); 494.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. Quem alega um direito tem o ónus da prova dos factos constitutivos do mesmo.
2. Pretendendo ver declarada a constituição de uma servidão de passagem por usucapião, terá o Autor que alegar, além do decurso do tempo os factos integrados de uma posse pública, pacífica e de boa-fé.
3. No tocante ao animus, elemento intencional da posse, o mesmo presume-se, provada a materialidade dos actos possessórios; todavia o Autor não está dispensado de alegar tal facto.
4. É admitida a constituição de uma servidão de passagem por usucapião ainda que de carácter sazonal. Todavia também aqui terão que existir sinais materiais visíveis e indiciadores de tal servidão ainda que compatíveis com a natureza da mesma.
5. Tendo sido eliminada a regulamentação das acções de arbitramento que tinha a sua sede nos artigos 1 053º ss do Código de Processo Civil, a constituição das servidões legais de passagem segue hoje o formalismo previsto no processo comum. Todavia tal não obsta a que o Autor tenha de alegar os factos constitutivos do seu direito, bem como os elementos essenciais para que a acção possa ter êxito, ou sejam as condições da res-pectiva procedência e ainda as necessárias para que a acção possa prosseguir e o Tribunal se possa pronunciar sobre o respectivo mérito.
6. Entre estas últimas conta-se o valor que o Autor entende ser de atribuir ao benefício pretendido em ordem a que o mesmo possa ser objecto de pronúncia por parte dos R. e ulteriormente de avaliação pericial.
7. A falta de tal alegação surge como uma excepção dilatória inominada artigo 494º do Código de Processo Civil, à luz do disposto no do Código de Processo Civil, sendo que a sua falta dá origem à absolvição do Réu da instância - artigo 288º nº 1 alínea e) do mesmo Diploma Legal.
Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Acordam na secção cível do Tribunal de Relação de Coimbra.
A... e mulher B... residentes no lugar de Sarzedela, Ansião, vieram intentar contra C... e mulher D..., residentes no lugar dos Netos, Ansião, acção declarativa de condenação sob a forma sumária pedindo que os RR. sejam condenados a:
- Reconhecer que os AA. são donos e legítimos pos-suidores do prédio identificado no artigo 1º da Petição Inicial.
- Reconhecer que tal prédio se encontra encravado e que sempre, nomeadamente pelos seus anteriores pro-prietários foi reconhecida a servidão de passagem e extensão indicados nesta p.i., ou seja, pelo prédio de
que agora são donos e contíguo pelo lado norte com dos AA. e a favor do prédio destes.
- Reconhecer que a servidão de passagem sempre existiu a pé, de carro e tractores mecânicos, na exten-são de cerca de 135 m, no sentido sul/norte e com a largura de 2,5 m.
- Reconhecer a favor do prédio dos AA. uma servi-dão de passagem no local assinalado no croqui junto, de forma a permitir a passagem de pessoas, carros de bois e tractores mecânicos nos mesmos termos em que sempre se verificou desde tempos imemoriais até há cerca de 3 anos, data em, que os RR. impediram os AA. de dela fazer uso e utilizar o seu prédio.
Alegam, para o efeito, que são donos e legítimos possuidores do prédio rústico composto por “terreno de pinhal, mato e mata de carvalhos, cultura com 17 oli-veiras e vinha, 20 videiras em cordão, sito no lugar de Gamito da freguesia de Ansião, com a área de 2.370m2, a confrontar de norte com Diocleciano Rodrigues, nascente Manuel Nunes, sul com Alfredo Dias Patrício Herdeiros e poente Manuel Peras herdeiros, inscrito na matriz sob o
artigo nº 4267”, por o haverem adquirido por herança dos pais da A.
Quer os pais dos AA. até à data da sua morte, quer após esta, os AA., têm lavrado - arroteado, semeado a terra de milho, batatas, couve, cortando pinheiros, carvalhos, oliveira, colhendo as uvas, retirando lenhas, pagando as respectivas contribuições - o prédio de forma contínua e ininterrupta, há mais de 40 anos, à vista de toda a gente e dos próprios RR, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de que não lesavam direito alheio.
Os RR. são donos de um prédio rústico contíguo pelo lado norte com o prédio dos AA e inscrito na matriz rústica respectiva sob o artigo nº 4268.
Sucede que quer os AA. quer os seus antepossuido-res, os pais da A. mulher, para aceder ao seu prédio, têm antes que passar pelo prédio dos RR. e ainda pelo prédio de Lurdes Teodósio, Artur Vinagre, José Vinagre, Isaura Freire, e o dos RR., prédios estes todos contí-guos.
Essa passagem é feita na estrema poente do prédio dos RR, desenhando se no sentido sul /norte numa exten-são de cerca de 135 m com uma largura de 2,50 m até desembocar no prédio dos AA. Sucede que os RR em 2001 obstruíram a passagem dos AA.
Os RR. contestaram excepcionando a sua ilegitimi-dade, alegando que não são donos do prédio rústico ins-crito na matriz sob o art. 4246. O amanho desse prédio pelos RR. vem sendo feito gratuitamente e por mera tolerância da sua legitima proprietária, Maria do Carmo Jesus Mendes Dias, que o recebeu por doação de seus pais.
Sustentam ainda que nunca facultaram a passagem aos AA. para o seu prédio, nem os titulares dos demais prédios. Não existem no local quaisquer vestígios de passagem, mormente trilhos de trânsito de pessoas, ani-mais ou carros.
O acesso ao prédio dos AA. sempre se efectuou per-manentemente de pé e de carro por uma faixa que ini-ciando a nascente no caminho público Gamito – Netos, daí prossegue para sul, numa extensão de 70m, ponto onde bifurca, dando acesso a outros prédios para a esquerda e para o dos AA. à direita, ramificação essa que, num percurso de cerca de 20 metros passa sobre um prédio de João Nunes, que teve como provável antecessor o seu pai Manuel Nunes e corresponderá ao artº 4268 que os AA. identificam como sendo aquele que pretendem ver onerado com a servidão de passagem.
Notificados os AA. vieram requerer a intervenção principal provocada de Maria do Carmo Jesus Mendes Dias.
Alegam ainda que o prédio inscrito na matriz sob o artº 4268 situa se a nascente do prédio dos AA. É sobre o prédio inscrito na matriz 4246 que os AA têm de pas-sar para aceder ao seu prédio.
Argumentam ainda que na linha divisória do prédio dos AA. com o prédio pertença da herança ilíquida aber-ta por óbito de Manuel Nunes, existe um muro em toda a sua extensão que impossibilita o acesso ao prédio dos AA. Por despacho de fls. 71 foi admitida a intervenção principal provocada de Maria do Carmo Jesus Mendes Dias e António Dias.
A fls. 89 os intervenientes vieram contestar, ale-gando que desde há mais de 30 anos que os prédios pro-priedade de Artur Mendes, herdeiros de José Vinagre e Isaura Freire são sucessivamente servientes uns dos outros mas tão só de uma servidão sazonal de pé para sementeiras e colheitas, ocorrendo as primeiras durante o mês de Abril e as segundas entre 15 de Agosto e 30 Setembro de cada ano, no sentido poente – nascente pela extremidade norte de todos os prédios. Porém, o direito de passagem era um direito dos intervenientes, seus antepossuidores e dos donos dos prédios confinantes e vizinhos para poente, nunca progredindo para norte-nascente para além do muro em pedra solta com latada, que, no sentido norte – sul, atravessava o prédio dos intervenientes, muro que entretanto foi demolido pelos seus antepossuidores.
Notificados os AA, impugnam os factos alegados pelos intervenientes.
A fls. 94 foi proferido despacho convidando os Autores a requerer a intervenção dos proprietários dos prédios servientes.
A fls. 100 vieram os AA requerer a intervenção principal provocada de Artur Mendes e Maria Augusta Cerejeiro, Lurdes Teodósio e marido Júlio Pires, Elsa Margarida Mendes Lopes, casada com Paulo Rogério Alves Sousa, Luís Fernando Mendes Lopes e Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de Isaura Freire Caetano, viúva, representada por esta e seu filho Luís Caetano.
Os RR. não deduziram oposição à intervenção.
Por despacho de fls. 118 foi admitida a interven-ção e ordenada a sua citação.


A fls. 159 vieram os intervenientes Isaura da Con-ceição Freire Caetano e Luís Miguel Freire Caetano fazer seus os articuladas de contestação dos RR.
A fls. 165 foram os AA. notificados para procede-rem ao aperfeiçoamento da petição inicial, alegando a concreta identificação dos prédios servientes.
Foi elaborado despacho saneador, fixando-se os factos assentes e a base instrutória constante de fls. 89 e ss.
Procedeu-se a julgamento acabando por ser proferi-da sentença que julgou a acção parcialmente procedente por provada e assim condenou os RR. a reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio refe-rido no artigo 1º da matéria assente.
Os RR. e intervenientes foram absolvidos dos res-tantes pedidos formulados pelos AA..
Daí o presente recurso de apelação interposto pelos AA., os quais no termo da sua alegação pediram que se revogue a sentença em crise.
Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) Os AA. adquiriram o direito à passagem pelo prédio que os 1ºs RR. apenas amanham e pelos pertencen-tes aos demais intervenientes pela usucapião.
2) Contrariamente ao fixado na sentença a posse exercida pelos AA. e seus antecessores, há ma/s de 30 anos, possuía os seus dois elementos – “o corpus e o animus" e este foi totalmente provado, porquanto, o "animus” resulta da presunção de que os AA. exerciam, como na realidade exerceram o “corpus”.
3) Igualmente a posse que os AA. e seus antecesso-res alegaram na p.i. possuía as características de pos-se pacífica e pública, porquanto até ao ano de 2001, nunca nenhum dos proprietários servientes deduziu qual-quer oposição à passagem, sendo que esta ocorreu por parte de quem não era proprietário, ou seja dos primei-ros RR. que eram meros utilizadores do prédio servien-te.
4) A servidão de passagem invocada pelos AA. aten-tos os factos considerados provados, destinava-se ape-nas a dois períodos do ano, ou seja, um para a semen-teira e outro para a colheita, razão dos sinais visí-veis e permanentes não serem visíveis à data da reali-zação da audiência.
5) O prédio dos AA. sendo, como na realidade é, um prédio encravado, tem o direito de ver constituída a seu favor o direito à passagem;
6) Verificam-se portanto e provados foram os ele-mentos necessários ao reconhecimento do direito a favor dos AA., do direito de passagem, a favor do seu prédio e em detrimento dos prédios servientes e identificados nas alíneas G), E), 0) F) e C) dos factos assentes.
7) Com a sentença proferida, violou a Mº Juiz a quo o disposto nos artigos 1 251º, 1 258º, 1 261º, 1 262º, 1 287º, 1 297º 1 548º e 1 550º do Código Civil.
Contra-alegaram os apelados pugnando pela confir-mação da sentença em análise.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
*
2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. Está inscrito na matriz predial da fregue-sia de Ansião, concelho de Ansião e sob o artigo 4.267 o prédio rústico composto por terreno de pinhal, mato e mata de carvalhos, cultura com 17 oliveiras, vinha e vinte videiras em cordão, sito no lugar do Gamito, com a área de 2.370 m2, a confrontar do norte com Diocle-ciano Rodrigues, nascente com Manuel Nunes, sul com Alfredo Dias Patrício Herdeiros e Poente com Manuel Peras Herdeiros (al. A) da matéria de facto assente).
2.1.2. Está inscrito na matriz predial da fregue-sia de Ansião, concelho de Ansião, sob o artigo 4268 o prédio rústico composto por pinhal, mato, vinha e terra de cultura com 7 oliveiras e 2 fruteiras, sito no lugar do Gamito da Lameira, com a área de 1.850m2, a confron-tar de Norte com Francisco Rodrigues Cristovão, Nascen-te com caminho, Sul com Alfredo Dias Patrício Herdeiros e Poente com Manuel da Costa Herdeiros (al. B) da maté-ria de facto assente).
2.1.3. Está inscrito na matriz predial da fregue-sia de Ansião, concelho de Ansião, sob o artigo 4246 o prédio rústico composto por terra de cultura com oli-veiras e 10 videiras em cordão e uma fruteira, sito no lugar do Gamito da Lameira, com a área de 1.230 m2, a confrontar de Norte com Jacinto Simões Bento, Nascente com Manuel Costa Herdeiros, Sul com Manuel Peras e outro e Poente com Carlos Freire (al. C) da matéria de facto assente).
2.1.4. Está inscrito na matriz predial da fregue-sia de Ansião, concelho de Ansião, sob o artigo 4248 o prédio rústico composto por terra de cultura com 6 videiras em cordão, sito no lugar do Gamito, com a área de 410 m2, a confrontar de Norte e Nascente com Carlos Freire, Sul com ribeiro e Poente com Francisco Luís Cerejeiro (al. D) da matéria de facto assente).
2.1.5. Está inscrito na matriz predial da fregue-sia de Ansião, concelho de Ansião, sob o artigo 4249 o prédio rústico composto por terra de cultura, sito no lugar do Gamito, com a área de 600 m2, as confrontar de Norte com ribeiro, Nascente com António Luís Vinagre, Sul e Poente com ribeiro (al. E) da matéria de facto assente).
2.1.6. Está inscrito na matriz predial da fregue-sia de Ansião, concelho de Ansião, sob o artigo 4250 o prédio rústico composto por terra de cultura com uma trancha e 2 fruteiras, sito no lugar do Gamito, com área de 1.490 m2, a confrontar de Norte com Jacinto Simões Bento, Nascente e Sul com Manuel Nunes, e Poente com ribeiro (al. F) da matéria de facto assente).
2.1.7. Está inscrito na matriz predial da fregue-sia de Ansião, concelho de Ansião, sob o artigo 4263 o prédio rústico composto por pinhal e mato, terra de cultura com 12 oliveiras, vinha, 9 fruteiras e 50 videiras em cordão, sito no lugar do Gamito, com a área de 2.200 m2, a confrontar de Norte com Carlos Freire Piedade, Nascente com caminho, Sul com Manuel Costa herdeiros e Poente com Carlos Freire Piedade.(al. G) da matéria de facto assente).
2.1.8. Por escritura pública de 31/12/1980, lavra-da no Cartório Notarial de Ansião, de fls. 50 a 51 do livro de notas de escrituras diversas do livro 172 A, Manuel Nunes e mulher Maria de Jesus declararam doar e Maria do Carmo de Jesus Nunes Dias e marido António Dias declararam aceitar a doação entre outros, do pré-dio referido em C) (al. H) da matéria de facto assen-te).
2.1.9. Os AA. e seus antepossuidores, António Men-des Cristóvão e Albertina da Conceição Costa lavraram, semearam a terra de milho, batatas, couve, nele cortan-do pinheiros, carvalhos, oliveiras, colheram uvas, retiraram lenhas do prédio referido em A).(ponto 1º da base instrutória)
2.1.10. Os actos referidos em 9) foram praticados durante mais de 40 anos, à vista de toda a gente, sem violência nem oposição de quem quer que fosse e na con-vicção de não lesar direitos de outrem mas antes na convicção de exercer direito próprio (ponto 2º da base instrutória).
2.1.11. Os AA. e seus antepossuidores para aceder ao prédio referido em A), a par ir do caminho público, utilizam uma faixa de terreno, pela seguinte ordem, sobre o prédio G (na sua extremidade poente) E) D) F) e C) (todos estes na sua extremidade Norte/Nascente) (ponto 3" da base instrutória).
2.1.12. A faixa de terreno referida em 11º) esten-de-se desde o caminho público que acede à localidade de Sarzedela até ao prédio referido em A) (ponto 4º da base instrutória).
2.1.13. O prédio dos Autores não tem ligação directa com o caminho público (ponto 5º da base instru-tória).
2.1.14. A faixa de terreno referida em 11) é uti-lizada a pé e por carros de tracção animal e tractores mecânicos, há mais de 30 anos, no período de 1 de Abril a 30 de Abril (sementeiras) e de 15 de Agosto a 30 de Setembro (colheitas) (ponto 6º da base instrutória).
2.1.15. A faixa de terreno referida em 11) situa-se no sentido sul-norte, numa extensão de 135 m e lar-gura de 2,50 metros (ponto 8 da base instrutória).
2.1.16. A faixa de terreno referida em 11) é uti-lizada pelo menos há mais de 40 anos (ponto 8º da base instrutória).
2.1.17. Em data não concretamente apurada, mas que se situa nos últimos 5 anos, os Réus Arlindo Terceiro e Maria Irene lavraram o terreno e semearam o terreno referido em C). (ponto 9º da base instrutória).
2.1.18. O facto referido em 17) impediu a passagem dos AA pelo prédio referido em C) (ponto 10º da base instrutória).
2.1.19. Os AA. utilizam a faixa de terreno referi-da em 11) para o cultivo do prédio mencionado em A), e para o transporte de lenhas e alfaias (ponto 11" da base instrutória).
2.1.20. Os réus Arlindo Terceiro e mulher Marja Irene Terceiro praticam os actos referidos em 16) no prédio referido em (C)lpor cortesia da proprietária,
Carmo Dias (ponto 12º da base instrutória).
2.1.21. A faixa de terreno que tem início a nas-cente do caminho público Gamito – Netos prossegue para Sul numa extensão de 70 metros (ponto 14º da base ins-trutória).
2.1.22. Decorridos os 70 metros, existe uma bifur-cação que dá acesso a prédios tanto à esquerda da mesma como à direita (ponto 15 da base instrutória).
2.1.23. Após a bifurcação referida em 21), existe uma faixa de terreno de cerca de 20 metros sobre o pré-dio referido em B) (ponto 16 da base instrutória).
+
2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformi-dade e considerando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- A servidão de passagem constituída por usuca-pião. Estão in casu preenchidos os respectivos requisi-tos?
- Há elementos em ordem a declarar constituída uma servidão legal de passagem no caso em análise?
+
2.2.1. A servidão de passagem constituída por usu-capião.

Servidão predial “é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia – artigo 1 543º do Código Civil.
Esta figura jurídica consubstancia um direito real limitado, um ius in re aliena, uma limitação ao direito de propriedade na medida em que se traduz no respectivo fraccionamento traduzindo-se num poder directo e ilimi-tado sobre o prédio onerado. Os prédios dominante e serviente devem pertencer a donos diferentes já que nemine res sua servit. Constituída uma servidão, a mes-ma tem efeito erga omnes, não sendo oponível apenas ao dono do prédio serviente mas a terceiros como arrenda-tários do prédio ou futuros proprietários do mesmo.
1. As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.
2. As servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judi-cial ou por decisão administrativa, conforme os casos º artigo 1 547º do Código Civil.
Os AA. arvoraram como uma das suas causas de pedir precisamente a usucapião. Este instituto vem regulado entre nós nos artigos 1.287º do Código Civil nos seguintes termos: “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo mantida por certo lap-so de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício cor-responde a sua actuação; é o que se chama usucapião”.
Sendo as servidões passíveis de ser constituídas por usucapião, para que a mesma se consume é necessá-rio, que se verifiquem, no que lhes diz respeito, os requisitos a que aludem os artigos 1 293º ss, essen-ciais à sua génese ou influindo no prazo necessário à respectiva formação. É o que se verifica nos casos de existência de título de aquisição, respectivo registo e registo da mera posse - artigos 1 294º e 1 295º; o fac-to de a posse ser violenta ou oculta – artigo 1 297º, aparente ou não – estes últimos casos impeditivos da constituição da servidão.
Revertendo ao caso em análise, mostram-se preen-chidos os requisitos de que depende a aquisição da pro-priedade do prédio dominante pelos AA.; de igual forma se constata que estes últimos e seus antepossuidores, para aceder ao prédio referido em A), a partir do cami-nho público, utilizam uma faixa de terreno, pela seguinte ordem, sobre o prédio G (na sua extremidade poente) E) D) F) e C) (todos estes na sua extremidade Norte/Nascente).
A faixa de terreno supra-referida estende-se desde o caminho público que acede à localidade de Sarzedela até ao prédio referido em A).
A faixa de terreno referida em 11) é utilizada a pé e por carros de tracção animal e tractores mecâni-cos, há mais de 30 anos, no período de 1 de Abril a 30 de Abril (sementeiras) e de 15 de Agosto a 30 de Setem-bro (colheitas). Tal faixa situa-se no sentido sul-norte, numa extensão de 135 m de comprimento e largura de 2,50 metros sendo utilizada pelo menos há mais de 40 anos.
Em data não concretamente apurada, mas que se situa nos últimos 5 anos, os Réus Arlindo Terceiro e Maria Irene lavraram o terreno e semearam o terreno referido em C) o que impediu a passagem dos AA. pelo prédio referido em C) (ponto 10º da base instrutória).
Os AA. utilizam essa faixa de terreno para o cul-tivo do prédio mencionado em A), e para o transporte de lenhas e alfaias.
Os Réus Arlindo Terceiro e mulher Marja Irene Ter-ceiro praticam os actos referidos em 16) no prédio referido em(C)por cortesia de Maria do Carmo Dias.
A faixa de terreno que tem início a nascente do caminho público Gamito – Netos prossegue para Sul numa extensão de 70 metros. Decorridos os 70 metros, exis-te uma bifurcação que dá acesso a prédios tanto à esquerda da mesma como à direita. Após a bifurcação referida em 21), existe uma faixa de terreno de cerca de 20 metros sobre o prédio referido em B).
Não se coloca in casu o problema do decurso do tempo, aqui mais que suficiente para que a usucapião se consumasse, apesar de estarmos perante uma posse não titulada, presumindo-se de má-fé, o que prolongaria o prazo da aquisição para vinte anos – artsº 1 260º nº 2 e 1 296º do Código Civil. Verifica-se todavia não terem sido alegadas as características do carácter pacífico e público da posse, essenciais à consumação da prescrição aquisitiva. Este constituiu e com razão, um dos pontos de apoio da sentença em crise, na medida em que julgou a acção improcedente. Na verdade quem alega um direito tem o ónus da prova dos factos constitutivos do mesmo e no caso vertente a publicidade é um deles, já que a posse oculta, enquanto não cessar, não é susceptível de conduzir à usucapião – artigo 1 297º do Código Civil. O mesmo se poderá dizer da aparência da servidão cujo ónus da respectiva alegação e prova cabia aos AA. e estes não o cumpriram minimamente. Com efeito desconhe-cemos em absoluto qual a configuração do caminho bem como o respectivo e eventual revestimento, nomeadamente se o mesmo tem marcas de ter sido calcado desde há mais de 20 anos, tudo de molde a satisfazer os requisitos do artigo 1 293º alínea a) do Código Civil.
De igual modo não fazem os AA. nenhuma referência ao animus da posse, elemento subjectivo conatural à sua existência. É bem certo que nos termos do disposto no artigo 1 252º presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto; todavia tal não o isenta de alegar que exerce tal poder com o animus correspondente ao direito a que se arroga ; apenas está dispensado de o provar caso detenha o poder de facto (elemento material). Assim sendo, também por aqui a acção não poderia obter êxito.
Argumentam ainda os AA. que a servidão, cujo reco-nhecimento pedem, destinar-se-ia apenas a uso em deter-minadas épocas do ano; daí a falta de menção dos res-pectivos sinais. Mas também aqui lhes falece razão. Na verdade, o facto de alegadamente estarmos perante uma servidão sazonal não isenta o Autor de alegar e provar os elementos correspondentes a essa faceta peculiar; é que muito embora aqueles sinais possam variar no seu aspecto, terão sempre que existir, de molde a que se revelem visíveis e permanentes. Essa visibilidade terá que resultar de tais sinais em si mesmos, devendo ser perceptíveis à vista de uma pessoa normal. O que pode-rão é ser sinais compatíveis com a sazonabilidade da servidão . Será o caso de algo (v.g. uma arrecadação) que indicie algum uso em determinadas épocas do ano em ordem a desfazer equivocidades.
Como se pode verificar da análise do caso verten-te, tais exigências não estão minimamente cumpridas no caso vertente, razão pela qual improcedem as considera-ções dos AA. sob este item.
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2.2.2. Há elementos em ordem a declarar constituí-da uma servidão legal de passagem no caso em análise?

Os AA. alegavam ainda que o seu prédio é encravado e tal circunstância permite que seja decretada pelo tribunal a constituição de uma servidão de passagem por sentença. É isto no fundo o que os mesmos pretendem mau grado o pedido que formulam devesse ter sido mais claro e explícito.
A sentença apelada não se pronunciou sobre este pedido, já que encarou a lide exclusivamente sob o pon-to de vista da constituição de servidão de passagem por usucapião. No entanto, estando formulado, há que nos pronunciarmos sobre o mesmo, de harmonia com o que estatui o artigo 715º do Código de Processo Civil .
A questão que nos é colocada consiste em saber se é possível in casu a constituição de uma servidão legal de passagem. Não havendo acordo entre os interessados, as servidões legais, poderão para além de prescrição ou destinação de pai de família constituir-se por senten-ça. Neste último caso é o aresto que representa o títu-lo da servidão, determinando-se através do mesmo o res-pectivo conteúdo e modalidades .
Nos termos do preceituado no artigo 1550º nº 1 do Código Civil “1. Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dis-pêndio, tem a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizi-nhos.
2. De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio”.
Esta matéria que vinha regulada sob o ponto de vista do direito adjectivo nas acções de arbitramento – artigos 1 053º ss do Código de Processo Civil, deixou de ser alvo de tramitação especial. Significa isto que actualmente este tipo de acções segue a forma comum. No entanto não é este facto que dispensa o Autor de alegar os factos pertinentes à procedência do direito (subs-tantivo) a que se arroga, bem como os elementos essen-ciais para que a acção possa ter êxito, ou sejam as condições da respectiva procedência e ainda as necessá-rias para que a acção possa prosseguir e o Tribunal se possa pronunciar sobre o respectivo mérito. Ora sendo a constituição de uma servidão legal passível de indemni-zação ao onerado – artigo 1 554º do Código Civil – aos Autores caberia ter alegado na Petição Inicial qual o valor que atribuíam ao benefício pretendido em ordem a que o mesmo pudesse ter sido objecto de pronúncia por parte dos RR. e ulteriormente de avaliação pericial. A falta de tal alegação surge a nosso ver como uma excep-ção dilatória inominada -, à luz do disposto no corpo do artigo 494º do Código de Processo Civil, sendo que a sua falta dá origem à absolvição do Réu da instância - artigo 288º nº 1 alínea e) do mesmo Diploma Legal.

Poderá assim concluir-se:

1) Quem alega um direito tem o ónus da prova dos factos constitutivos do mesmo.
2) Pretendendo ver declarada a constituição de uma servidão de passagem por usucapião, terá o Autor que alegar, além do decurso do tempo os factos integrados de uma posse pública, pacífica e de boa-fé.
3) No tocante ao animus, elemento intencional da posse, o mesmo presume-se, provada a materialidade dos actos possessórios; todavia o Autor não está dispensado de alegar tal facto.
4) É admitida a constituição de uma servidão de passagem por usucapião ainda que de carácter sazonal. Todavia também aqui terão que existir sinais materiais visíveis e indiciadores de tal servidão ainda que com-patíveis com a natureza da mesma.
5) Tendo sido eliminada a regulamentação das acções de arbitramento que tinha a sua sede nos artigos 1 053º ss do Código de Processo Civil, a constituição das servidões legais de passagem segue hoje o formalis-mo previsto no processo comum. Todavia tal não obsta a que o Autor tenha de alegar os factos constitutivos do seu direito, bem como os elementos essenciais para que a acção possa ter êxito, ou sejam as condições da res-pectiva procedência e ainda as necessárias para que a acção possa prosseguir e o Tribunal se possa pronunciar sobre o respectivo mérito.
6) Entre estas últimas conta-se o valor que o Autor entende ser de atribuir ao benefício pretendido em ordem a que o mesmo possa ser objecto de pronúncia por parte dos R. e ulteriormente de avaliação pericial.
7) A falta de tal alegação surge como uma excepção dilatória inominada artigo 494º do Código de Processo Civil, à luz do disposto no do Código de Processo Civil, sendo que a sua falta dá origem à absolvição do Réu da instância - artigo 288º nº 1 alínea e) do mesmo Diploma Legal.
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3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se:
a) Em julgar a apelação improcedente, confirmando-se assim a sentença apelada no que toca ao pedido de declaração de constituição de servidão de passagem por usucapião.
b) Em absolver os Réus da instância no que concer-ne ao pedido de constituição de servidão legal de pas-sagem.
Custas pelos Apelantes.