Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
476/04.7TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: PENA COMPÓSITA
PENA DE MULTA
PENAS DE SUBSTITUIÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Data do Acordão: 04/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: DR. JORGE GONÇALVES
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 50.º; 58.º E 70.º DO C.P..
Sumário: I. - O tribunal, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa. Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção
II. – Optando o tribunal, atento o preceituado no artigo 70.º, pela prisão como pena principal, por entender que a multa não satisfaz de forma adequada e suficiente todas as finalidades da punição, poderá, num segundo momento, uma vez fixada a prisão em certa medida, proceder à sua substituição, por tal lhe ser legalmente imposto, se a execução da prisão não for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes (anterior artigo 44.º, agora artigo 43.º), ou porque, face às penas de substituição legalmente previstas, acaba por concluir que uma dessas penas satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
III. - O tribunal não é livre de aplicar ou deixar de aplicar tal pena de substituição ou qualquer outra, pois não detém uma faculdade discricionária; antes, o que está consagrado na lei é um poder/dever ou um poder vinculado, tal como sucede com a suspensão da execução da pena, pelo que, uma vez verificados os respectivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de aplicar a pena de substituição.
Decisão Texto Integral: 10

I – RELATÓRIO
1. Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular registados sob o n.º476/04.7TAPBL, a correr termos no 2.º Juízo de competência especializada criminal de Leiria, o arguido G... foi condenado, pela prática de um crime de desobediência p. e p. no art. 348.º n.º 1, alínea a), do Código Penal e artigo 166.º, n.º 3, do Código da Estrada, na pena de 9 meses de prisão.
2. Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, formulando, na motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1- O presente recurso incide, inequivocamente sobre a escolha da pena, levada a cabo pelo douto tribunal recorrido.
2- Efectivamente, no entender do recorrente, salvaguardando o devido respeito, o douto tribunal recorrido, fundamentou a sua convicção alicerçando, que pelas "regras da experiência comum as pessoas lêem as decisões que lhes dizem respeito", daqui retirando que o requerente “agiu com pleno conhecimento e vontade de não entregar a carta conforme determinado”, “agindo pois com dolo directo.”
3- O douto tribunal a quo generalizou a sua convicção ao caso ora em apreço, não atendeu à especificidade do arguido possuir um baixo grau de instrução, e não colocou a hipótese do arguido não ter compreendido o sentido das palavras escritas. Dado que ler não é compreender, e uma vez que o douto tribunal a quo não se certificou se o arguido tinha compreendido o sentido da decisão, não podemos concluir com tal grau de certeza, o que o douto tribunal logrou alcançar, que o arguido "agiu com pleno conhecimento e vontade de não entregar a carta conforme determinado" .
4- Não se pode dar como provado, como deu o tribunal a quo, que o arguido tinha compreendido o determinado, dado que nunca fora perguntado ao arguido se este tinha ou não tinha compreendido a decisão, nem este respondeu o que quer que seja.
5- Por isso o douto tribunal a quo extraiu a sua conclusão com base na generalidade dos casos apreciados pelo douto tribunal.
6- Mas a convicção do tribunal a quo tem de se restringir ao caso concreto e não como fez à generalidade dos casos que apreciou.
7- Pelo que o tribunal a quo não pode concluir, como concluiu, que o arguido "agiu com pleno conhecimento e vontade de não entregar a carta conforme determinado" agindo pois com dolo directo.
8- Não se nega que não tenha entregue a carta, mas não se sabe se e arguido agiu com negligência, ou com dolo, ou sequer se tinha consciência que tinha de entregar a carta numa data certa.
9- O douto tribunal a quo dá como provada a inserção comunitária do requerente no mundo do trabalho.
10- De facto neste momento o arguido trabalha e é o único sustento de uma família composta pelo requerente e sua mãe, viúva e doente acamada.
11- O douto tribunal a quo na ponderação da substituição da pena de prisão só equacionou a possibilidade da substituição pela pena de multa e pela suspensão da execução da pena, não tendo equacionado a sua substituição pela Prestação de trabalho a favor da comunidade, art° 58° C.P., conforme acórdão de 21 de Junho de 2007 do S.T.J. citado no acórdão de 23/01/2008 do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.° 346/06.4GTA VR.C 1, o que conduz à nulidade da sentença, nos termos do art. 379.º, n.º1 c) do C.P.Penal.
12- De facto, a Prestação de trabalho a favor da comunidade tem exigências e actualiza práticas de reinserção social singulares, que a simples suspensão de execução da pena ou a pena de multa não consagram.
13- Desde a data dos factos originários da contra-ordenação n.º226391043 (24-5.:2002) e da decisão da mesma (14-7-03) até aos dias de hoje, o arguido vem mantendo uma conduta reveladora do seu efectivo arrependimento e da sua inequívoca capacidade para manter uma conduta lícita e socialmente aceitável, após um passado de condutas menos abonatórias, comprovado pela ausência de qualquer contra-ordenação.
14- A prisão efectiva porá em risco a sobrevivência económica e afectiva desta família, porá em risco o emprego do recorrente, o amparo de sua mãe e a sua inserção social ficarão irremediavelmente perdidos.
15- Dever-se-ia pois ter condenado o arguido em pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, medida que o fará interiorizar os valores que a sociedade defende, sendo que a própria comunidade verá também ela nesta aplicação, a necessária consequência da sua conduta, tutelando-se assim as expectativas sociais de ver a norma aplicada com eficiência.
16- Ao não ter agido assim, não foi feito o exame crítico da situação, tendo levado a uma decisão injusta.
17-Assim por aplicação das normas 40.º, n.º1 e n.º 2, 58.º,70.º,71.º, n.º1 e 2 d) e e) do C.P. impõem-se que ao arguido seja aplicada pena não detentiva, mormente a prestação de trabalho a favor da comunidade.
Nestes termos e nos melhores de direito deve o presente recurso proceder, substituindo-se a pena de prisão pela pena não detentiva de trabalho a favor da comunidade.
3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, concluindo do seguinte modo (transcrição):
1.º - Efectuado o julgamento foi proferida sentença que condenou o arguido G... na pena de nove meses de prisão pela prática, em 20.12.2003, de um crime de desobediência p. e p. no art. 348.º, n.º1, al. a), do C.P. e art. 166.º, n.º3 do C.E.
2.º - Em nosso entender o M. mo Juiz apreciou correctamente a prova produzida em audiência, retirando as conclusões lógicas que a matéria dada como provada impunha, fazendo apelo ao principio consagrado no artigo 127.º do CPP, sem olvidar que a audiência de julgamento obedece também ao princípio da imediação e encontra-se estreitamente ligado ao principio da oralidade.
3.º - De facto, é nosso parecer, tendo em atenção o depoimento prestado em audiência, sendo certo que o Tribunal especifica o que lhe mereceu credibilidade e explana claramente o seu raciocínio, que bem andou o M.mo Juiz ao condenar o arguido, nos termos acima assinalados.
Para tanto, atendeu ao depoimento da testemunha (agente de autoridade), bem como à prova documental, sendo certo que a convicção do julgador nesta primeira instância, em nosso entender, não se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e conhecimentos científicos.
Em nosso entender, não se verificou pois erro da apreciação da prova.
4.º - A pena imposta ao arguido surge-nos como justa e adequada, atenta a facticidade dada como provada, a moldura penal em abstracto fixada para o ilícito em apreço e em face dos critério de determinação da pena em função da culpa do agente e da prevenção de futuros crimes - artigo 71°, n.º1 do C.Penal- e tendo ainda em atenção o preceituado nos artigos 40.º e 70.º deste diploma e o n.º2 do citado artigo 71°.
5° - Debruçando-nos sobre o caso concreto refere-se que o arguido já sofreu outras condenações. Com efeito, desde 2001, tem sofrido condenações, nomeadamente pela prática de um crime de desobediência e um crime de condução em estado de embriaguez, ocorridos a 23.02.2001 na pena única de 100 dias de multa por sentença transitada a 17.09.2002, um crime de desobediência e um crime de condução em estado de embriaguez ocorridos a 3.11.2001, na pena única de 140 dias de multa por sentença transitada a 4.2.2003, um crime de desobediência praticado a 3.11.2001 na pena de 60 dias de multa por sentença transitada a 14.11.2003 e um crime de condução em estado de embriaguez e um crime de desobediência ocorridos a 22.4.2002, por sentença transitada a 27.4.2004, na pena única de nove meses de prisão, suspensa a sua execução por um ano e sob regime de prova. A estes factores o M mo Juiz atendeu.
6.º - Porém o arguido vem invocar, em resumo, como fundamentos para a substituição da pena de prisão pela pena não detentiva, o facto de estar inserido laboral, familiar e socialmente.
Ora, julgamos que de tais factos não se pode porém concluir desde logo que a suspensão satisfaz as finalidades da pena, na perspectiva dos pressupostos gerais de aplicação das penas de substituição, centrados nas exigências de socialização sendo ainda consentidos pela tutela dos bens jurídicos.
7.º - Na verdade, entendemos que não se pode invocar o falado juízo de prognose necessário à suspensão porque, tendo tido condenações em pena de prisão, cuja execução foi suspensa, o arguido voltou a delinquir, evidenciando pois uma total falta de respeito pelas normas vigentes e em consequência que não foi merecedor daquela, o que determina que a suspensão deve ser afastada pelas exigências de socialização.
8.º - Mais se adianta que, no tocante à substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, atento o postulado no art. 58°, n.º1 do C. Penal, sempre se deverá concluir que, por este meio, não se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Nestes termos, e não obstante a aceitação por parte do arguido, cremos que não deve ser aplicada tal pena de substituição.
9.º - Pelo exposto, entendemos que o Tribunal "a quo" não violou qualquer princípio ou norma jurídica ao proferir a sentença ora recorrida, tendo decidido com respeito aos preceitos legais vigentes.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido da substituição da pena de prisão pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.
5. Efectuado exame preliminar e corridos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Atento o teor das conclusões, identificam-se como questões suscitadas pelo recorrente: a questão do dolo do agente que o tribunal recorrido deu como provado – e que, segundo resulta das conclusões, o recorrente entende não se ter provado; a questão da pretendia substituição da pena de prisão aplicada ao arguido por pena de prestação de trabalho a favor da comunidade – que o tribunal recorrido não ponderou.
Mais adiante delimitaremos, mais concretamente, as questões a conhecer.
2. A sentença recorrida
2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância foram dados como provados o seguintes factos (transcrição):
Da culpabilidade
a) Na sequência da decisão proferida pela D.G.V. em 14-7-2003, no processo de contra-ordenação nº 226391043, foi o arguido notificado para entregar a sua carta de condução no prazo de 20 dias na DGV – Leiria, sob pena de não o fazendo, incorrer em crime de desobediência.
b) O arguido não entregou a carta, tendo agido livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
Da determinação da sanção
c) O arguido foi condenado por crime de desobediência e crime de condução em estado de embriaguez ocorridos a 23-2-2001 na pena única de 100 dias de multa por sentença transitada a 17-9-2002, foi condenado por crime de desobediência e crime de condução em estado de embriaguez ocorridos a 3-11-2001 na pena única de 140 dias de multa por sentença transitada a 24-2-2003, por crime de desobediência praticado a 3-11-2001 na pena de 60 dias de multa por sentença transitada a 14-11-2003, e foi condenado por crime de condução em estado de embriaguez e crime de desobediência ocorridos a 22-4-2002 por sentença transitada a 27-4-2004 na pena única de nove meses de prisão, suspensa a sua execução por um ano e sob regime de prova.
d) O arguido não compareceu em audiência.
e) O arguido é chapeiro, e até 29-10-2004 não entregou a carta de condução.
2.2. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
A convicção do Tribunal, quanto à factualidade dada como provada, adveio:
-da análise do doc. de fls. 12 e 13(decisão da DGV), onde consta expressamente a advertência;
- no teor de fls. 14 (cópia do talão de aviso de recepção com data de 28-10-2003), de onde se conclui que a decisão foi enviada para a morada do arguido, estando notificado e logo ciente;
- na informação de fls. 18, emitida pela DGV, de onde se conclui que o arguido não entregou a carta pelo menos até 29-10-2004.
- nas regras de experiência comum, segundo as quais nos dizem que as pessoas lêem as decisões que lhes dizem respeito, e daí se retira que agiu com pleno conhecimento e vontade de não entregar a carta conforme determinado
Quanto à questão da determinação da sanção, atentei ao c.r.c. de fls. 78 a 81, e ainda ao t.i.r. prestado a 12-1-2008, quanto à actividade profissional. Quanto ao tempo de não entrega, atentei à informação assinalada (fls. 18).
3. Apreciando
1. As conclusões do recurso, que delimitam o seu âmbito, suscitam alguma perplexidade.
De harmonia com o disposto no artigo 412.º, n.º1, do C.P.P., as conclusões, deduzidas por artigos, destinam-se a resumir «as razões do pedido».
Porém, da comparação entre o corpo da motivação e as conclusões que deviam resumir «as razões do pedido», logo verificamos que as conclusões, nos seus artigos 2.º a 8.º, referem-se a matéria que não é minimamente abordada no corpo da motivação.
Do texto da motivação infere-se que o recurso tem como objecto a questão da determinação da pena, mais concretamente, a questão da não substituição da pena de prisão pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Isso mesmo é indicado no n.º1 das conclusões, onde se diz que «o presente recurso incide inequivocamente sobre a escolha da pena levada a cabo pelo douto tribunal recorrido».
Seguem-se sete artigos em que o recorrente refere-se à convicção do tribunal recorrido quanto ao dolo, inferindo-se que pretende sindicar a decisão sobre a matéria de facto, sobre a qual nada disse no texto da motivação.
Temos como certo que o recurso não preenche minimamente os requisitos para ser apreciado como impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
Por outro lado, não é admissível levar às conclusões matéria sobre a qual nada se disse no corpo da motivação.
No entanto, tendo em vista que os vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., são de conhecimento oficioso, não deixaremos de lhes fazer referência, reportando ao conhecimento do vício do erro notório na apreciação da prova a questão que o recorrente suscita a propósito da prova do dolo.
2. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
Existe o vício previsto na alínea a), do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal quando a factualidade dada como provada na sentença não permite, por insuficiência, uma decisão de direito ou seja, quando dos factos provados não possam logicamente ser extraídas as ilações do tribunal recorrido. A insuficiência da matéria de facto determina a incorrecta formação de um juízo, porque a conclusão ultrapassa as respectivas premissas (cfr. Ac. do STJ de 13/05/1998, Proc. nº 98P212, www.dgsi.pt). Dito de outro modo: quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 69).
Existe o vício previsto na alínea b), do n.º 2 do art. 410.º quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, entre a fundamentação probatória da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a decisão (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª ed., 340 e ss.).
Finalmente, ocorre o vício previsto na alínea c), do nº 2 do art. 410º quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Germano Marques da Silva, ob. cit., 341 e ss. e Acs. do STJ de 02/10/1996, Proc. nº 045267, www.dgsi.pt). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
O recorrente não interpôs recurso quanto à decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º3 e 4, do C.P.P.
Assim, importa saber se, face à sentença recorrida, podemos concluir ter a mesma incorrido num vício decisório, designadamente, de erro notório na apreciação da prova.
A resposta é negativa.
A matéria do dolo não é susceptível de prova directa, resultando a sua demonstração probatória da conjugação a efectuar entre factos objectivos concretos e juízos de inferências, fundados na lógica e nas regras da experiência comum.
E a sentença recorrida, ainda que sumariamente, não deixou de indicar a razão de ser do juízo efectuado, em termos que são inteiramente compreensíveis e aceitáveis, tanto mais que o arguido, à data dos factos, já tinha antecedentes por crime de desobediência.
Da análise da sentença não decorre a verificação do referido vício de erro notório.
3. Analisada a sentença recorrida, proferida em Abril de 2008, quanto à subsunção jurídico-criminal e à determinação da pena, constata-se que o tribunal a quo, entre a pena (principal) de prisão e a pena (principal) de multa, optou por aquela.
A determinação da pena envolve diversos tipos de operações. Na parte que agora nos importa, o julgador, perante um tipo legal que prevê, em alternativa, como penas principais, as penas de prisão ou multa, deve ter em conta o disposto no artigo 70.º do Código Penal que consagra o princípio da preferência pela pena não privativa da liberdade, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Tais finalidades, nos termos do artigo 40.º do mesmo diploma, reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente da sociedade (prevenção especial).
Assim, o tribunal, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa. Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção.
O artigo 70.º opera, precisamente, como regra de escolha da pena principal, nos casos em que se prevê pena de prisão ou multa.
Porém, a escolha da pena principal de prisão em detrimento da multa não significa que desde logo se opte pela execução ou cumprimento da pena privativa da liberdade, pois entretanto haverá que ponderar a aplicação das penas de substituição que apenas são aplicáveis depois de escolhida a pena de prisão e de concretamente determinado, nos termos do artigo 71.º, o seu quantum.
No caso vertente, a escolha da pena principal de prisão em detrimento da multa e a sua fixação em nove meses não mereceu reparo por parte do arguido/recorrente, que centra a sua atenção na circunstância de tal pena de prisão não ter sido substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade.
A sentença recorrida, quanto à não substituição da pena principal de prisão, limitou-se a dizer: «O arguido já foi censurado publicamente com pena de prisão, e tendo sido suspensa a sua execução não cuidou de espontaneamente entregar a carta de condução, embora fora de prazo. Assim, o juízo de prognose é negativo quer no sentido de não cometer mais crimes quer no sentido que a ameaça da execução da pena atingir a protecção do bem jurídico.»
Tanto lhe bastou para afastar a aplicação da pena de multa de substituição e da pena substitutiva de suspensão da execução.
Reconheça-se que se trata de uma fundamentação ligeira e pouco aprofundada, sobretudo se tivermos em conta que os factos datam de 2003 e os antecedentes criminais a factos de 2001 e 2002, tendo sido julgado, nos presentes autos, em Abril de 2008.
Como se disse, da mera escolha da pena principal de prisão, no caso de moldura abstracta que contempla prisão ou multa, não decorre, necessariamente, que a pena privativa da liberdade tenha de ser cumprida.
Pode acontecer que o tribunal, atento o preceituado no artigo 70.º, opte pela prisão como pena principal, por entender que a multa não satisfaz de forma adequada e suficiente todas as finalidades da punição, mas que, num segundo momento, uma vez fixada a prisão em certa medida, deva proceder à sua substituição, por tal lhe ser legalmente imposto se a execução da prisão não for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes (anterior artigo 44.º, agora artigo 43.º), ou porque, face às penas de substituição legalmente previstas, acaba por concluir que uma dessas penas satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 364).
No caso em apreço, a sentença recorrida parece partir do pressuposto de que a opção pela prisão em detrimento da multa afasta a possibilidade de, uma vez fixada a prisão, esta ser substituída por multa ou suspensão da execução.
Por outro lado, ainda que a sentença recorrida tenha entendido, muito sumariamente, que não era de suspender a execução da pena de prisão aplicada, nos termos do art. 50.º, do Código Penal, importa não esquecer que existem outras penas de substituição, em sentido próprio e impróprio, que não são de aplicação discricionária, mas antes obrigatória, desde que verificados os respectivos pressupostos.
Nos termos do n.º 1 do artigo 58.º, do Código Penal, «se ao agente dever ser aplicada pena de prisão em medida não superior a 1 ano, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade, sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
O tribunal não é livre de aplicar ou deixar de aplicar tal pena de substituição ou qualquer outra, pois não detém uma faculdade discricionária; antes, o que está consagrado na lei é um poder/dever ou um poder vinculado, tal como sucede com a suspensão da execução da pena, pelo que, uma vez verificados os respectivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de aplicar a pena de substituição.
Sendo certo que a sentença recorrida considerou expressamente, ainda que de forma muito sumária, pela razões acima indicadas, que não havia que proceder à substituição da pena aplicada por pena de suspensão da execução da prisão, a verdade é que não ponderou, de todo, a possibilidade de substituição da pena aplicada por trabalho a favor da comunidade, nem se pode presumir que o tenha feito.
Em situação similar à dos presentes autos, já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 21 de Junho de 2007, entendendo: «E não se pode dizer que, se não estavam reunidos os pressupostos para a suspensão da execução da pena, também não estavam reunidos os pressupostos para a sua substituição nos termos do art. 58.º do CP. O trabalho a favor da comunidade não tem a mesma natureza (salvo a de ser também uma pena de substituição), nem as mesmas exigências, nem obedece às mesmas práticas de reinserção social, que a suspensão da execução da pena. Por isso, nada garante que, não podendo as exigências de punição ser satisfeitas com a suspensão da execução da pena, não o possam ser com a prestação de trabalho a favor da comunidade.» (P. 07P2059, disponível em www.dgsi.pt).
Está assim imposto ao juiz o dever de indagar e justificar não só o afastamento da suspensão da execução da pena de prisão, mas também da prestação de trabalho a favor da comunidade.
E também nada se ponderou quanto à possibilidade de aplicação do regime do artigo 45.º do Código Penal (muito menos dos artigos 44.º e 46.º, que dependem do consentimento do condenado), relativo à prisão por dias livres, muito embora já estivessem em vigor, ao tempo da prolação da sentença recorrida, as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
A nosso ver, nas situações em que a sentença recorrida, pelos fundamentos apresentados, globalmente considerados, revela claramente que o julgador fez uma ponderação dos factores de determinação da pena e considerou necessário o cumprimento efectivo e contínuo da pena de prisão, afastando a aplicação de qualquer pena de substituição ou de qualquer forma de cumprimento não contínuo da própria prisão, ainda que sem fazer menção expressa à substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade ou por formas de execução descontínuas, não estaremos perante uma omissão de pronúncia.
Por outras palavras: existem casos em que, apesar da falta da menção expressa a uma ou outra pena, a fundamentação apresentada revela uma ponderação que, sem margem para dúvida, afastou a aplicação de qualquer pena de substituição. Nesses casos, à falta de menção expressa não corresponde omissão de pronúncia.
Porém, a fundamentação apresentada na sentença recorrida, não permite, minimamente, chegar a tal conclusão.
Seguindo o entendimento do S.T.J., conclui-se que a sentença incorre na nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, alínea c), do C.P. Penal.
Impõe-se, deste modo, declarar parcialmente nula a sentença recorrida, por omissão de pronúncia (artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do C.P.P.), isto é, por não se ter pronunciado sobre a questão da possibilidade de substituição da pena de prisão aplicada ao arguido dentro de toda a amplitude de penas de substituição previstas na lei.
III – Dispositivo
Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em anular parcialmente a sentença recorrida, nos termos acima expostos, devendo o tribunal "a quo" suprir a referida nulidade, pronunciando-se sobre a questão da possibilidade de substituição da pena de prisão aplicada ao arguido dentro de toda a amplitude de penas de substituição previstas na lei, se necessário com produção suplementar de prova, decidindo a final em conformidade.