Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1377/07.2PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: TITULARES DO DIREITO DE QUEIXA
CRIME DE BURLA
CRIMES DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO E BURLA
CONCURSO
Data do Acordão: 11/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - VARA DE COMPETÊNCIA MISTA (1ª SECÇÃO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 113º, 217º, 256º, 30º E 77º, DO C. PENAL
Sumário: I. Segundo o disposto no art. 113º, nº 1, do Código Penal, “quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, resultando assim da letra da lei que o legislador teve em vista a tutela do portador do bem jurídico.
Nesta medida, no crime de burla, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação será o prejudicado, que não coincidirá necessariamente (muitas vezes não coincidirá) com o enganado, não sendo de excluir a existência de uma pluralidade de lesados, a determinar (nos casos em que a lei os não identifica expressamente) em função do conformação do tipo legal de crime e das circunstâncias concretas do caso.

II. A alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, no corpo do n.º 1, do art.º 256º, do Código Penal, aponta para a punição autónoma do crime de falsificação quando cometido como instrumental de outro crime.
Com efeito, onde anteriormente a lei dispunha apenas e tão-só que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo (…)”, enunciando depois as condutas constitutivas do elemento material do crime, passou a dispor que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (…)”, comprometendo definitivamente o argumento da instrumentalidade como justificativo do concurso aparente, num claro reforço da tutela do bem jurídico tutelado pelo crime de falsificação, dando assim letra de lei àquele que era já o entendimento uniformizado da jurisprudência.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pela 1ª Secção da Vara de Competência Mista de Coimbra, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferido acórdão em que se decidiu nos seguintes termos:
Pelo exposto, e decidindo, acordam os Juízes que constituem este Tribunal Colectivo em:
A) – Julgar procedente, por provada, nos termos referidos, a acusação deduzida contra o arguido, A..., a quem, em consequência:
– Condenam, como autor material reincidente de um crime de furto qualificado, p.º e p.º pelos art.ºs 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e), 75.º e 76.º, do CPen. actual, na pena de 02 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão;
– Condenam, como autor material reincidente de um crime de falsificação agravada de documento, p.º e p.º pelos art.ºs 255.º e 256.º, n.ºs 1, al. d), e 3, 75.º e 76.º, todos do mesmo CPen., na pena de 13 (treze) meses de prisão; e
– Condenam, como autor material reincidente de um crime de burla simples, p.º e p.º pelos art.ºs 217.º, n.º 1, 75.º e 76.º, todos do mesmo CPen., na pena de 10 (dez) meses de prisão.
– Em cúmulo jurídico destas penas, condenam tal arguido na pena unitária de 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de prisão.
B) – Pelos fundamentos atrás explanados, não suspender a execução da pena única aplicada.
C) – Julgar em tudo o mais improcedente a acusação, por não provada, dela absolvendo, nessa parte, o arguido.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
B1. Vem o recorrente condenado, como reincidente, pela prática dos seguintes crimes: crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.°- 1, 204. °-2, alínea e), 75. ° e 76.°, todos do Código Penal, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão; crime de falsificação agravada de documento, p. e p. pelos artigos 255°, 256. °-1, alínea d) e n. ° 3, 75. ° e 76. ° todos do Código Penal, na pena de 13 meses de prisão; crime de burla simples, p. e p. pelos artigos 217.°-1, 75.° e 76.° todos do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão;
B2. Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, foi o recorrente condenado na pena única de 3 anos e 4 meses de prisão.
B3. As razões de dissídio do recorrente prendem-se com a análise e valoração da prova produzida nos autos, com a incorrecta subsunção jurídica dos factos e, por fim, com a determinação das penas que lhe foram aplicadas. Não obstante,
B4. Cabe, primeiramente, referir que o douto acórdão recorrido padece de nulidade insanável porquanto o crime de burla simples, por se tratar de um crime de natureza semi-pública, depende de queixa para que seja instaurado o competente procedimento criminal (artigo 217.°-3, do Código Penal e 48. ° e 49. ° ambos do Código de Processo Penal);
B5. Ora, em obediência ao disposto no artigo 113. o do Código Penal entende o recorrente que o ofendido pela prática deste ilícito é a testemunha C...Pinto porquanto foi ela que sofreu o real e efectivo prejuízo, vendo-se privada da quantia titulada pelos cheques, e, compulsados os autos logo se constata que não apresentou queixa.
B6. Destarte, ao decidir-se pela condenação do recorrente pelo crime de burla resultaram violados os artigos 48.° e 49. ° do Código de Processo Penal e 113.° e 215.°, ambos do Código Penal, padecendo o mesmo de nulidade insanável, que desde já se invoca para os legais e devidos efeitos, pelo que deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva o recorrente da prática do crime de burla simples. Sem prescindir,
B7. Em cumprimento do disposto no art. 412°-3, alínea a) do C.P.P., vem o recorrente enumerar os factos que reputa incorrectamente julgados, por manifesta ausência de prova de prova e erro na apreciação da prova produzida ou não apreciação da prova produzida: 9.° a 21.° dos "A) - Factos provados":9.0 - Em data e hora não concretamente apurada, mas entre as 15 horas de 09 de Junho de 2007 e as 9,30 de 10 de Junho de 2007, o arguido decidiu entrar no armazém da sociedade "XXX..., Lda" , sito na Rua …, a fim de dali retirar dinheiro ou outros valores que encontrasse. 10.0- Em execução de tal propósito, de forma que se desconhece forçou a fechadura da porta que acabou por abrir. 11.º - Já no interior das instalações, remexeu no material existente, forçou a fechadura de uma pasta "tipo executivo", acabando por encontrar e levar consigo, para o exterior, € 50,00 em dinheiro e os cheques nº … do Banco Espírito Santo, cada' um no valor de € 75,00, que haviam sido emitidos e entregues, por C..., à sociedade "XXX..., Lda.", para pagamento de bens e que se encontravam em branco quanto ao tomador. 12.º - O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, querendo fazer seus os € 50,00 bem como os cheques no valor global de € 300,00, sabendo que não lhe pertenciam e qua actuava contra vontade dos donos. 13.º - Entrou no referido armazém forçando a porta respectiva, sem autorização e contra a vontade da dona e dos seus representantes legais. 14.º - Bem sabia o arguido que tal conduta era proibida e criminalmente punida. 15.º - Entre os dias 09 e 11 de Junho, o arguido decidiu apôr o seu nome nos quatro cheques subtraídos, no lugar destinado ao tomador, que não se encontrava preenchido, e depositar tais cheques numa conta em seu nome. 16.0 - Então, em execução de tal propósito, em local e data não totalmente apurada, mas entre 09 de Junho e 11 de Junho de 2007, o arguido, pelo seu próprio punho, apôs nos cheques nº …, no lugar destinado ao tomador (que C... deixara em branco e devia ser preenchido com o nome "XXX..., Lda".) o seu nome (A...). 17.0 - Em 11 de Junho de 2007, munido dos quatro cheques dirigiu-se à Agência da Caixa Geral de Depósitos, da Pedrulha, nesta cidade de Coimbra, e procedeu ao seu depósito na conta da Caixa Geral de Depósitos de que era titular. 18.º - Em tudo actuou o arguido como se de uma regular operação de depósito se tratasse, com o intuito de induzir em erro os funcionários do banco que, assim convencidos, no dia seguinte descontaram o montante de € 300,00 respeitante aos quatro cheques, da conta de C..., creditando-os na conta do arguido. 19.º - O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, com o propósito de obter, como obteve, benefícios injustificados. 20.º - Ao preencher os cheques na parte respeitante ao tomador, sem para tal estar autorizado pela legítima portadora e ao apresentá-los para depósito como se fosse o legítimo detentor, sabia estar a violar a segurança daquele meio de pagamento e a fé pública depositada em tais títulos de crédito e que mediante tal estratagema lograva induzir em erro os funcionários bancários. 21.º- Sabia, ainda, o arguido que desse modo causava prejuízo à dita portadora dos cheques, bem como podia causar prejuízo à titular da conta C... e que aquelas condutas lhe estavam vedadas por lei e eram criminalmente punidas. (. . .)."
B8. O douto acórdão recorrido, reconhecendo que não há prova directa e imediata da autoria dos já referidos ilícitos, nomeadamente, recolha de vestígios lofoscópicos ou exame pericial à assinatura aposta nos cheques, condenou o recorrente, unicamente, com base nas regras da experiência comum e da razoabilidade. Ora,
B9. Pese embora seja manifesto que, aparentemente, o arguido é o único beneficiado com a prática dos crimes em apreço, é perfeitamente plausível, não chocando com as regras da experiência, que possa ter sido um terceiro a cometer o furto e a assinar os cheques.
B10. Ao decidir desta sorte o areópago violou o princípio da presunção de inocência - art. 32°.2 da CRP. Ademais,
B11. Cabia ao Tribunal a quo, com base no pensamento que subjaz à chamada "estrutura acusatória"(artigo 32°.5, primeira parte, da CRP), a descoberta da verdade pois que, como consabido, em processo penal não se pode invocar o "ónus da prova".
B12. Destarte, na procedência do argumentário expendido deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva o recorrente dos crimes pelo qual vem condenado.
B13. No que tange à livre convicção que terá norteado a decisão tomada do douto colectivo recorrido, sempre cabe dizer que a mesma não é sinónimo de arbítrio nem significa um convite a uma desenfreada e insindicável discricionariedade, sendo antes algo informado por um momento crítico e racional, iluminado por critérios lógicos, empíricos e científicos que tornem objectiva a decisão.
B14. Nesta sede, são ainda relevantes os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções, ou seja, as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.oCC)". Ora,
B15. A presunção intervém quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros. Contudo, não poderão ser descuradas as exigências de segurança que o processo penal exige em sede de comprovação dos factos, tendo em conta, nomeadamente, o princípio in dubio pro reo.
B16. Consequentemente, assume grande relevo a inteligibilidade do íter cognoscitivo tomado pelo julgador nesta sede, incluindo o percurso lógico seguido na fundamentação, nomeadamente tendo em vista a sindicância do erro notório na apreciação da prova (artigo 410°, n. ° 2., alínea c) do CPP).
B17. Ora, é exactamente nessa capacidade de se impor externamente que a decisão em causa emerge insuficiente pois que, a bem dizer, nesta sede, a fundamentação ensaiada pelo Tribunal recorrido resume-se à invocação de presunções naturais, estribadas na circunstância de o arguido aparentemente ser o único beneficiado com a prática dos ilícitos pelos quais vem condenado, alheadas de qualquer outra prova.
B18. o certo é que, não havendo qualquer prova da prática dos factos por banda do recorrente, é inaceitável a conclusão formada pelo factos por banda do tribunal recorrido.
B19. Ao socorrer-se de tal jeito das regras gerais da experiência, violou o Tribunal recorrido o disposto nos artigos 349° do Código Civil e 1270 e 374°, n. ° 2 do CPp, inquinando o Acórdão recorrido da nulidade plasmada no artigo 379°, n. ° 1, alínea a) do citado diploma legal. Ad cautelam, caso não se acolham os argumentos expendidos,
B20. Entende o recorrente que mal andou o Tribunal recorrido ao condená-lo pela prática, em concurso real, de um crime de falsificação de documentos e de um crime de burla qualificada, incorrendo em manifesto erro de direito, com os inexoráveis reflexos em sede de determinação da pena. Com efeito,
B21. Sobre esta problemática, o Tribunal recorrido não considera a alteração legislativa operada pela Lei n. ° 59/2007, de 04 de Setembro ao artigo 256° do CP, relativo ao crime de falsificação de documentos. Assim,
B22. Do normativo vigente, nomeadamente, da parte final do seu n. ° 1, extrai-se a clara conclusão que o legislador pretendeu, de forma inequívoca, consagrar a existência de concurso aparente ou consumpção do crime de falsificação de documentos pelo crime de burla, quando aquele seja instrumental deste. Ora,
B23. Nos termos do disposto no artigo 2°, n.º 1 do CP, as penas são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto; por outro lado, o artigo 2°, n. ° 4 da CRP consagra o princípio da retroactividade ln mitius da lei penal, com assento constitucional no artigo 29°, n. ° 4 da CRP, ordenando que seja sempre aplicada aquela que for mais favorável ao arguido.
B24. Do supra exposto, resulta manifesto que a redacção conferida ao artigo 256° pela Lei n. ° 59/2007 é mais favorável, pelo que mal andou o Tribunal recorrido ao não aplicar tal preceito e ao não considerar a prática, em concurso aparente, dos crimes de falsificação de documentos e de burla, resultando assim violados os artigos 2º, nº 1 e 2 e 256º, nº 1 do CP e o artigo 29º, nº 4, da CRP. Ademais e caso soçobre o argumento invocado,
B25. Atenta a factualidade dada como provada nos pontos 9 a 21, emerge perspícuo que, através de uma única resolução criminosa, o recorrente assinou os documentos em apreço nos autos e procedeu ao seu depósito em conta por si titulada, desta feita, apossando-se da quantia neles titulada, causando prejuízo patrimonial ao qual bem sabia não ter direito e prejudicando, nessa medida, a titular dos cheques. Destarte,
B26. A construção intelectual produzida pelo Tribunal a quo não tem, salvo o devido respeito, âncoira em qualquer inciso legal.
B26. Por conseguinte, tendo em consideração os factos dados como provados e supra referidos, deve concluir-se que entre os crimes de burla e de falsificação de documentos praticados pelo recorrente, verifica-se um concurso aparente de normas, pelo facto da falsificação constituir o meio, instrumento necessário para a prática do crime de burla.
B27. O crime de falsificação cometido pelo recorrente consiste num acto preparatório e executório do crime de burla: o recorrente praticou tal crime para que, desta forma, os terceiros em causa - funcionários bancários _ acreditassem na veracidade dos documentos forjados. Tal actividade consubstancia o conceito de astúcia em provocar engano sobre factos, elemento essencial e típico do crime de burla.
B28. Nesta confluência, punir o recorrente, também, pelo crime de falsificação de documentos será puni-lo duplamente pela mesma actuação, violando-se assim o princípio ne bis in idem, com assento constitucional no artigo 29°, n. ° 5 da Constituição da República Portuguesa.
B29. Ao decidir como decidiu, isto é, ao condenar o recorrente em concurso real e efectivo pela prática do crime de falsificação e do crime de burla, violou o tribunal recorrido o disposto nos artigos 30°, 77°, 217°, e 256° do CP.
B30. A interpretação conferida pelo Tribunal a quo às normas contidas nos artigos 30°, 77°, 217°, e 256° do CP., no sentido de entre o crime de burla e de falsificação de documentos existir pluralidade de resolução criminosa, incorrendo o agente e aqui recorrente, na prática de ambos os ilícitos em concurso real, é manifestamente inconstitucional por violadora do disposto no artigo 29°, n. ° 5 da CRP.
B31. Em consequência, deverá o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que condene o recorrente pela prática de um crime de burla qualificada, em concurso aparente com a prática de um crime de falsificação de documentos.
B32. Na procedência do esforço recursivo supra ensaiado, deverão ser extraídas as coro lá rias consequências em sede de determinação da pena.
B33. Nesta confluência, conclui-se que o recorrente deve ser punido pelo concurso aparente dos crimes de burla qualificada e de falsificação, dentro da moldura penal correspondente, no caso dos autos,
Ao crime com a moldura penal mais grave, tomando o outro crime como factor agravante da medida da pena. Ademais,
B34. Considera o recorrente que a pena de prisão efectiva que lhe foi aplicada é manifestamente desproprocional e desnecessária, pois estão verificados os pressupostos de que depende a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão (pena de prisão não superior a cinco anos e juízo de prognose favorável)
B35. Com efeito, e atentando ao seu comportamento no momento da decisão temos que o recorrente tem tido um comportamento adequado, concluiu o 12º ano e dispõe do apoio da irmã. Ademais, a prática dos factos remonta a 2007, data em que o postulante foi detido e, desde então, cumpre pena de prisão efectiva.
B35. Por fim, o Tribunal tem o poder-dever de decretar a suspensão da execução da pena de prisão quando os pressupostos de que a mesma depende se encontram verificados.
B36. Não sobejam, assim, dúvidas que, no caso sub judice, estão verificados todos os pressupostos de que depende a aplicação da suspensão da pena de prisão, nos termos do disposto no artigo 50º do Código Penal.
B37. Quedam-se, assim, violados os artigos 40. o e 50. o e seguintes, todos do Código Penal.
B38. Neste conspecto, deve a sentença recorrida ser modificada e substituída por outra que dê provimento à pretensão do recorrente, id est que aplique a suspensão da execução da pena de prisão em detrimento da prisão efectiva.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, extraídos os corolários dimanados das "conclusões" tecidas, assim se fazendo a acostumada justiça!

O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se também pela negação de provimento ao recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
**
- Falta de condição de procedibilidade para procedimento criminal pelo crime de burla simples, por inexistência de queixa da ofendida;
- Erro de julgamento da matéria de facto, por ausência de prova ou erro na apreciação da prova produzida;(livre convicção ; uso de presunções)
- Concurso aparente entre os crimes de burla e de falsificação de documentos;
- Unidade de resolução criminosa;
- Violação do princípio ne bis in idem;
- Medida da pena;
- Suspensão da execução da pena de prisão;
**
* * *

II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos: 1.º – Em … de Junho de 2007, pelas 10 horas, pessoa de identidade não apurada decidiu entrar na residência de D... e F..., sita na …, nesta cidade de Coimbra, a fim de dali retirar e fazer seus objectos de valor que encontrasse.
2.º – Em execução do planeado, servindo-se de dispositivo colocado para facilitar a vida dos residentes quando se encontravam em casa, abriu a porta da cozinha que apenas se encontrava fechada ao trinco.
3.º - Por ali entrou na cozinha e dali para a sala, onde encontrou uma carteira em pele que continha € 50,00, dois anéis em ouro, no valor de € 120,00 e um telefone fixo, da marca "Nokia", no valor de € 49,90.
4.º – Retirou, então, na carteira, € 50,00 que guardou. Pegou depois nos dois anéis e no telefone fixo e trouxe-os consigo para fora da residência.
5.º – Já no exterior, foi visto por F... que passava a ferro num anexo da habitação e ainda foi no encalce desse indivíduo, que logo correu pela rua acima, abandonando o local.
6.º – Nesse mesmo dia 07 de Junho, à tarde, antes das 18,30 horas, pessoa de identidade não apurada, com igual propósito, decidiu entrar na residência de D... e F..., na qual existiam peças em ouro, electrodomésticos, telemóveis, dinheiro e outros bens que podia levar consigo, de valor superior a € 500,00.
7.º – Em execução do planeado, por forma que se desconhece, forçou as fechaduras do portão e de duas portas de acesso à casa e partiu o vidro de uma janela.
8.º – Depois, entrou na residência, passou para a rouparia onde remexeu a roupa e acabou por dali se ausentar sem nada levar.
9.º – Em data e hora não concretamente apurada, mas entre as 15 horas de 09 de Junho de 2007 e as 9,30 horas de 10 de Junho de 2007, o arguido decidiu entrar no Armazém da sociedade "XXX..., Lda.", sito na Rua …, em Eiras, a fim de dali retirar dinheiro ou outros valores que encontrasse.
10.º – Em execução de tal propósito, de forma que se desconhece forçou a fechadura da porta que acabou por abrir.
11.º – Já no interior das instalações, remexeu no material existente, forçou a fechadura de uma pasta "tipo executivo", acabando por encontrar e levar consigo, para o exterior, € 50,00 em dinheiro e os cheques n.º …, do Banco Espírito Santo, cada um no valor de € 75,00, que haviam sido emitidos e entregues, por C..., à sociedade "XXX..., Lda.", para pagamento de bens e que se encontravam em branco quanto ao tomador.
12.º – O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, querendo fazer seus os € 50,00, bem como os cheques no valor global de € 300,00, sabendo que não lhe pertenciam e que actuava contra vontade dos donos.
13.º – Entrou no referido armazém, forçando a porta respectiva, sem autorização e contra a vontade da dona e dos seus representantes legais.
14.º – Bem sabia o arguido que tal conduta era proibida e criminalmente punida.
15.º – Entre os dias 09 e 11 de Junho de 2007, o arguido decidiu apôr o seu nome nos quatro cheques subtraídos, no lugar destinado ao tomador, que não se encontrava preenchido, e depositar tais cheques numa conta em seu nome.
16.º – Então, em execução de tal propósito, em local e data não totalmente apurada, mas entre 09 e 11 de Junho de 2007, o arguido, pelo seu próprio punho, apôs nos cheques n.º …, no lugar destinado ao tomador (que C... deixara em branco e devia ser preenchida com o nome de "XXX..., Lda.") o seu nome (A...).
17.º – Em 11 de Junho de 2007, munido dos quatro cheques dirigiu-se à Agência da Caixa Geral de Depósitos, da Pedrulha, nesta cidade de Coimbra, e procedeu ao seu depósito na conta da Caixa Geral de Depósitos de que era titular.
18.º – Em tudo actuou o arguido como se de uma regular operação de depósito se tratasse, com o intuito de induzir em erro os funcionários do banco que, assim convencidos, no dia seguinte descontaram o montante de € 300,00 respeitante aos quatro cheques, da conta de C..., creditando-os na conta do arguido.
19.º – O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, com o propósito de obter, como obteve, benefícios injustificados.
20.º – Ao preencher os cheques na parte respeitante ao tomador, sem para tal estar autorizado pela legítima portadora, e ao apresentá-los para depósito como se fosse o legítimo detentor, sabia estar a violar a segurança daquele meio de pagamento e a fé pública depositada em tais títulos de crédito e que mediante tal estratagema lograva induzir em erro os funcionários bancários.
21.º – Sabia, ainda, o arguido que desse modo causava prejuízo à dita portadora dos cheques, bem como podia causar prejuízo à titular da conta C... e que aquelas condutas lhe estavam vedadas por lei e eram criminalmente punidas.
22.º – Em 16 de Junho de 2007, pouco antes da uma hora, pessoa de identidade não apurada decidiu entrar na residência de G..., sita na …., na freguesia de Eiras, Coimbra, a fim de fazer seus alguns objectos que compunham o seu recheio (computador portátil, electrodomésticos, relógios, artigos em ouro), com valor global superior a € 5 000,00.
23.º – Em execução de tal propósito, cerca da 01 hora, dirigiu-se para junto do lote 7, onde trepou para a varanda do rés-do-chão direito.
24.º – Preparava-se para aceder ao interior da varanda, estando já ali empoleirado, e dali para o interior da habitação, quando foi avistado por três transeuntes, o que o fez saltar da varanda para o chão.
25. – Algum tempo depois, o arguido foi interceptado pela P.S.P. na zona. Trazia então consigo luvas e uma navalha com comprimento total de 24,07 cm e lâmina, de dois gumes, com 11,02 cm (melhor descrita e examinada no auto de fls. 65, que aqui se dá por reproduzido).
26.º – Como resulta do seu certificado de registo criminal, o arguido foi, por acórdão datado de 18 de Dezembro de 2002, transitado em julgado (em 02/01/2003), proferido nos autos de Processo Comum Colectivo n.º 226/02.2JACBR, da 2.ª Secção desta Vara Mista de Coimbra, condenado, pela prática, em 27 de Maio de 2002, de um crime de violação, previsto e punido pelo art.º 172.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 20 meses de prisão, que cumpriu, em prisão efectiva, de 27 de Maio de 2002 a 24 de Julho de 2003.
27.º – Essa condenação, porém, não o inibiu de praticar os factos supra aludidos em III- e IV-, não o fazendo sentir-se suficientemente advertido contra o crime.
28.º – O arguido, segundo o seu CRC, sofreu ainda as seguintes condenações:
- no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 1379/07.9PCCBR, da 1.ª Secção da Vara Mista de Coimbra, por ter praticado, em 07/06/2007, um crime de violação, p.º e p.º pelo art.º 164.º, n.º 1, do CPen., e um crime de roubo, p.º e p.º pelo art.º 210.º, n.º 1, do mesmo Cód., foi condenado, por decisão de 14/03/2008, transitada em 03/04/2008, na pena (unitária) de prisão de oito anos;
- no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 1124/06.6PBFIG, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, por ter praticado, em 11/05/2006, um crime de furto, p.º e p.º pelos art.ºs 203.º, n.º 1, 204.º, n.ºs 1, al. f), e 4, ambos do CPen., um crime consumado de coacção sexual, p.º e p.º pelo art.º 163.º, n.º 1, do CPen., um crime tentado de coacção sexual, p.º e p.º pelos art.ºs 163.º, n.º 1, 22.º e 23.º, do mesmo CPen., foi condenado, por decisão de 02/06/2008, transitada em 23/06/2008, na pena (em cúmulo) de prisão efectiva de quatro anos, vindo posteriormente a ser efectuado novo cúmulo jurídico de penas, englobando os crimes e penas do aludido PCC n.º 1379/07.9PCCBR, da 1.ª Secção da Vara Mista de Coimbra, sendo-lhe então aplicada a pena unitária de 10 (dez) anos de prisão.
29. – O arguido cumpre pena no EP do Linhó.
30.º – É solteiro e tem 26 anos de idade.
31.º – Ao tempo dos factos tinha 23 anos de idade.
32.º – Nasceu no seio de família numerosa, de modesta condição sócio-económico (fratria de dez irmãos mais uma irmã uterina).
33.º – Tendo o seu pai abandonado a família, a sua mãe sentiu-se incapaz de assumir os cuidados de todos os filhos menores, pelo que foram institucionalizados quatro dos irmãos de arguido na Comunidade Juvenil …, em Coimbra.
34.º – O ambiente familiar era disfuncional, com ausência de regras, com incidência de promiscuidade e abusos sexuais sobre algumas das irmãs do arguido, por parte de amigos de lazer e de festas da mãe, que, por isso, frequentavam a habitação da família.
35.º – Os menores acabaram por assumir comportamentos de vadiagem, mendicidade, inalação de solventes (cola) e absentismo escolar, após o que vieram alguns deles a ser institucionalizados, à excepção do arguido.
36.º – Contudo, também este veio a dar entrada na aludida comunidade juvenil, aos onze anos de idade, onde foi considerado um aluno exemplar até ao ano de 2001, altura em que uma das suas irmãs foi vítima de homicídio no interior daquela instituição, o que marcou psicologicamente o arguido, após o que o seu comportamento sofreu alteração, com instabilidade emocional e ideias de suicídio, altura em que cometeu a aludida violação na dita instituição, por força do qual foi preso aos dezasseis anos de idade.
37. – Quando regressou à liberdade, foi viver com o agregado de sua mãe, após o que cumpriu serviço militar obrigatório e voluntário, até que voltou a ser preso (pena unitária de dez anos de prisão, que se encontra a cumprir).
37.º – Em reclusão, efectuou desintoxicação terapêutica, por consumos aditivos, no EP de Lamego, onde logrou concluir o 12.º ano de escolaridade.
38.º – Transferido, a solicitação sua, para o EP do Linhó, onde se encontra há cerca de dois anos, pediu entretanto transferência para o EP da Carregueira.
39.º – Tem beneficiado do apoio de uma irmã, que o visita, e inscreveu-se no ensino superior, sendo o seu comportamento prisional adequado.
40.º – Não ocorreu reparação aos lesados mencionados.

Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
Não resultaram provados quaisquer outros factos, dentre os descritos na peça acusatória, que tenham interesse para a decisão da causa e que estejam em contradição com os supra elencados.
Assim, não ficou provado que foi o arguido quem praticou os factos descritos nos pontos I-, II- e V- da acusação, designadamente tendo entrado, ou procurado entrar, nos locais ali descritos, bem como subtraído, ou procurado subtrair, dali quaisquer bens.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
O Tribunal baseou a sua convicção, quanto aos factos provados e não provados, no conjunto das provas produzidas em audiência de julgamento, analisadas de forma crítica e conjugada, e bem assim de harmonia com as regras da lógica e da experiência comum.
Foram elementos essenciais de prova:
na ausência de declarações do arguido quanto aos factos (este reservou-se ao silêncio nessa matéria),
a) – Prova testemunhal:
os depoimentos das testemunhas inquiridas (objecto de gravação):
- D..., desempregado, de 61 anos de idade, e F..., de 58 anos de idade, companheira da testemunha anteriormente mencionada, vivendo ambos na residência aludida supra em I- e II-, que depuseram quanto aos bens subtraídos e respectivo valor, mas não lograram depor, de forma segura e peremptória, quanto à identidade de quem procedeu a tal subtracção ou entrou na sua dita residência, não logrando sustentar, assim, de forma convincente – fora de dúvidas razoáveis – ter sido o aqui arguido;
- H..., de 65 anos de idade, gerente comercial (sócia gerente da sociedade “XXX..., Ld.ª”, que depôs, assim esclarecendo, quanto aos sinais que encontrou de ter sido forçada a abertura de uma porta (que encontrou aberta) das ditas instalações daquela sociedade, detectando ainda os objectos remexidos e uma pasta de executivo danificada (objecto de abertura forçada, pois que havia sido fechada à chave), tendo notado a falta de 50,00 euros em dinheiro, bem como, posteriormente, de quatro cheques ao portador, entregues por uma cliente, a aludida C..., no valor de 75,00 euros cada, assinados por aquela, sem data, cheques esses que vieram a ser, todos eles, apresentados a pagamento, razão pela qual lhe telefonou a dita …, alertando-a, já que ficara convencionado entre ambas que tais cheques só posteriormente seriam apresentados a pagamento, altura em que a testemunha detectou, então, a falta de tais cheques, cheques esses em que, após a sua subtracção, foi aposto o nome do arguido como sendo o respectivo beneficiário, vindo os respectivos montantes a entrar na conta do mesmo aqui arguido;
- C..., reformada, de 43 anos de idade, pessoa que esclareceu que, por força de uma dívida que contraíra, entregou os aludidos cheques à testemunha por último referida, em pagamento de tal dívida, mas com o acordo de não serem apresentados a pagamento antes de datas convencionadas, sendo que os cheques vieram, porém, antes do tempo acordado, a serem levantados em conjunto, motivo pelo qual alertou aquela testemunha, que então deu conta do desaparecimento desses cheques;
- J..., agente da PSP, em exercício de funções em Coimbra, que recebeu chamada telefónica alertando para um assalto, tendo-se deslocado, por isso, para o local, vindo a interceptar na zona o arguido, ao qual foi apreendida a mencionada navalha, tal como um par de luvas e um telemóvel, assim confirmando o teor de fls. 49 e 50 dos autos, com que foi confrontado;
- G..., enfermeira, de 38 anos de idade, que relatou ter sido alertada para a situação de alguém ter procurado entrar em sua casa, tendo sido visto a trepar para a sua habitação por vizinhos, esclarecendo, porém, a testemunha nada ter presenciado quanto a tal intentada intrusão e, bem assim, esclarecendo quanto a bens e valores que tinha em sua casa;
- K…, investigador, de 36 anos de idade, que relatou ter visto um vulto a empoleirar-se numa varanda (a da testemunha por último mencionada), após o que desceu lentamente para se abrigar, tendo a testemunha alertado a Polícia, sem que, todavia, tenha logrado identificar ou reconhecer a pessoa em causa;
Testemunhas estas que, tendo deposto de forma serena mas peremptória, com razão de ciência devidamente controlada e a necessária isenção, lograram convencer o Tribunal quanto à verificação da factualidade descrita supra no elenco de factos provados;
b) – Prova documental e pericial:
- Teor do certificado do registo criminal do arguido junto (fls. 187 e segs.);
- Documentos/certidões judiciais juntos a fls. 86 a 95, 219 a 226 e 227;
- Documento (informação do EP) de fls. 228 a 233 dos autos;
- Fotogramas de fls. 36;
- Cópias dos cheques de fls. 45, 119 a 121;
- Auto de apreensão de fls. 50;
- Autos de exame de fls. 65 e 71;
- Extracto bancário de fls. 110 e 111;
- Teor do relatório social de fls. 195 a 200.
Do conjunto das provas produzidas, e supra elencadas, resultou a convicção do Tribunal Colectivo de que foi o arguido quem levou à prática os factos descritos supra nos n.ºs 9.º- a 14.º- e 15.º- a 21.-, fazendo-o pelo modo também supra descrito.
Com efeito, se não foi presenciada a subtracção de bens ocorrida no interior das instalações da sociedade “XXX..., Ld.ª”, nem testemunhado quem especificamente procedeu ao preenchimento dos cheques, que se encontravam naquelas instalações e dali foram retirados contra a vontade de quem os detinha e de quem os havia emitido, seguro é que tais cheques, uma vez preenchidos, após a sua subtracção, com aposição do nome do arguido como respectivo beneficiário, foram depositados na conta bancária do arguido, como se retira dos documentos juntos a fls. 45, 119 a 121, 110 e 111.
Ora, assim sendo, afigura-se ao Tribunal Colectivo, operando à luz dos dados da razoabilidade, da lógica e da experiência comum, dever concluir-se que foi o próprio arguido, nisso interessado, pois que em seu manifesto benefício, e não outrem, quem se apoderou e utilizou, sempre em seu proveito, dos aludidos cheques, por forma a obter, como logrou obter, os fundos, em conta bancária de que era titular, correspondentes aos quantitativo inscrito em tais cheques.
Assim, embora sem prova directa e imediata da dita autoria da subtracção de bens/cheques nas instalações da mencionada sociedade (“XXX..., Ld.ª”), bem como de quem concretamente completou o preenchimento de tais cheques, certo é que – na óptica deste Tribunal Colectivo – dos elementos apurados, ponderados à luz do interesse e benefícios de um tal procedimento, e das regras da lógica e da experiência comum, era o arguido, e não outrem, quem tinha o interesse, consumada a subtracção, assim obtidos os cheques, no seu preenchimento integral, por forma a aparentar a autêntica emissão de cheques a seu favor, tudo com vista à pessoal obtenção dos montantes titulados por tais cheques, como o arguido logrou de facto obter, mediante o depósito de todos esses cheques, invariavelmente, em conta bancária de que era titular, apoderando-se, por essa forma dos montantes em causa, em prejuízo da portadora dos cheques ou da respectiva emitente, que o arguido sabia nada lhe deverem.
Assim, foi o arguido quem beneficiou de tais cheques, porém – não lhe sendo eles devidos, nem os montantes que neles foram inscritos – fazendo-o contra a vontade quer da titular da conta sacada quer de quem os detinha com autorização daquela titular.
Daí a conclusão deste Tribunal Colectivo de ter sido o arguido, e não outrem, quem procedeu à subtracção dos cheques, ao seu preenchimento nos espaços em branco e à sua apresentação à entidade bancária para depósito na sua conta na Caixa Geral de Depósitos, como logrou conseguir, com o decorrente proveito pessoal, à custa do património de outrem.
No que concerne ao não acolhimento pelo arguido da advertência para não voltar a delinquir constituída pela anterior condenação, assentou a convicção na circunstância de o arguido não ter mudado de vida ante tal anterior condenação, antes continuando na sendo do crime, como se retira, aliás, do teor do seu CRC, termos em que concluiu o Tribunal por não se ter deixado ele moldar/influenciar suficientemente por tal anterior censura penal.
Já quanto à demais factualidade imputada (pontos 1., 2. e 5. da acusação), não se logrou produzir prova idónea a permitir concluir ter sido o arguido o autor da respectiva factualidade, pois que por ele não reconhecida, nem reconhecido ele, por sua vez, ao menos de forma inequívoca e convincente, pelas testemunhas inquiridas, as quais ou não presenciaram os factos ou, se os lograram descortinar, não conseguiram visualizar o seu autor em condições de poderem reconhecer de forma segura e precisa se o foi ou aqui arguido ou outrem.
Donde que nesta parte, na dúvida insuperável, produzidas todas as provas, sobre a autoria desses factos, sempre houvesse de operar o princípio in dubio pro reo, levando a dar-se como não provados os factos que, neste particular, imputados ao arguido, o poderiam responsabilizar penalmente.
Por isso, na dúvida, o juízo probatório negativo (de não provado) nesta específica matéria factica.
Por sua vez, as diversas condenações sofridas pelo arguido resultam do CRC junto e da aludida certidão judicial.
Que o arguido se encontrava em liberdade ao tempo dos factos decorre das informações constantes dos documentos de fls. 219 a 233, concluindo-se pela existência de lapso no que consta do documento junto a fls. 207, na parte referente ao início de reclusão do arguido ali mencionado (início não em 09/06/2007 mas em 18/06/2007).
Já as condições pessoais familiares e percurso de vida decorrem do relatório social junto.


* * *

Apreciemos então as questões suscitadas pelo recorrente seguindo, na medida do possível, a ordem por que foram suscitadas.
Num primeiro momento invoca o recorrente a falta de uma condição de procedibilidade para procedimento criminal pelo crime de burla simples, por inexistência de queixa da ofendida, sustentando que transpondo para o caso dos autos o conceito de “ofendido” vertido no art. 113º do Código Penal, essa qualidade, no crime de burla, cabe à testemunha C...Pinto, por o prejuízo real e efectivo ter ocorrido no seu património, por ter sido privada da quantia titulada pelos cheques a que se reporta a matéria de facto, sem que no entanto alguma vez tenha apresentado queixa.
Segundo o disposto no art. 113º, nº 1, do Código Penal, “quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, resultando assim da letra da lei que o legislador teve em vista a tutela do portador do bem jurídico. Nesta medida, no crime de burla, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação será o prejudicado, que não coincidirá necessariamente (muitas vezes não coincidirá) com o enganado, não sendo de excluir a existência de uma pluralidade de lesados, a determinar (nos casos em que a lei os não identifica expressamente) em função do conformação do tipo legal de crime e das circunstâncias concretas do caso.
Com relevo para a apreciação desta questão resulta do provado o seguinte:
- O arguido apropriou-se dos cheques nºs n.º …, do Banco Espírito Santo, cada um no valor de € 75,00;
- Esses cheques tinham sido emitidos e entregues, por C..., à sociedade "XXX..., Lda.", para pagamento de bens e encontravam-se em branco quanto ao tomador;
- O arguido decidiu apôr o seu nome nos quatro cheques, no lugar destinado ao tomador, que não se encontrava preenchido, e depositar tais cheques numa conta em seu nome;
- Em execução desse propósito, pelo seu próprio punho, apôs naqueles cheques, no lugar destinado ao tomador (que C... deixara em branco e devia ser preenchida com o nome de "XXX..., Lda.") o seu nome (A...).
- Em 11 de Junho de 2007 procedeu ao respectivo depósito na conta da Caixa Geral de Depósitos de que era titular.
- Actuou como se de uma regular operação de depósito se tratasse, com o intuito de induzir em erro os funcionários do banco que, assim convencidos, no dia seguinte descontaram o montante de € 300,00 respeitante aos quatro cheques, da conta de C..., creditando-os na conta do arguido.
- Agiu de forma livre, consciente e deliberada, com o propósito de obter, como obteve, benefícios injustificados.
- Ao preencher os cheques na parte respeitante ao tomador, sem para tal estar autorizado pela legítima portadora, e ao apresentá-los para depósito como se fosse o legítimo detentor, sabia estar a violar a segurança daquele meio de pagamento e a fé pública depositada em tais títulos de crédito e que mediante tal estratagema lograva induzir em erro os funcionários bancários.
- Sabia ainda que causava prejuízo à portadora dos cheques, bem como podia causar prejuízo à titular da conta, C....
Perante este quadro factual, é manifesto não assistir razão ao recorrente. Na verdade, sendo o cheque um meio de pagamento à vista e tendo a titular da conta sacada, C..., procedido à entrega de cheques a “XXX..., Lda.” para pagamento de bens, com a entrega daqueles cheques e verificação da respectiva provisão, cumpriu a sua obrigação de pagamento, sendo-lhe indiferente a sorte que aqueles cheques tiveram depois de entregues à firma tomadora, não podendo ser responsabilizada pelo levantamento abusivo por terceiros da quantia titulada nos cheques, nem lhe sendo exigível que repita o pagamento. Ou seja, a verdadeira lesada foi, efectivamente, a tomadora dos cheques, que deles foi desapossada contra sua vontade pelo arguido, vendo-se privada dos montantes titulados pelos cheques. A lesada “XXX..., Lda.” apresentou queixa tempestivamente e tinha legitimidade par ao fazer por ser a titular dos interesses tutelados pela incriminação, pelo que está verificada a condição de procedibilidade cuja falta foi invocada pelo recorrente.

Prossegue o recorrente invocando erro de julgamento da matéria de facto, por ausência de prova ou erro na apreciação da prova produzida, questionando o processo de formação da convicção do julgador por recurso a presunções no que concerne aos factos dados como provados sob os n.ºs 9 a 21, relativos à apropriação dos cheques já referidos, respectivo preenchimento e depósito na conta bancária do arguido. Insurge-se o recorrente contra o facto de o tribunal ter fundamentado a sua convicção na circunstância de os cheques terem sido depositados na conta titulada pelo recorrente quando, tal como se concluiu deste jeito, se poderia ter reconhecido que o autor do furto e preenchimento dos cheques com o nome do tomador fosse um terceiro, sustentando que deverá prevalecer a dúvida, sob pena de violação do princípio da presunção da inocência.
Vejamos se lhe assiste razão:
É ponto assente que a matéria de facto, enquanto resultado da prova – entendida esta como modo de demonstração de factos jurídico-penalmente relevantes – jamais poderá ser fruto do mero arbítrio, antes devendo assentar na legítima valoração, à luz das regras da experiência e da livre convicção do julgador, da prova produzida em audiência, em pleno respeito pelo princípio da legalidade da prova consagrado no art. 125º do Código de Processo Penal, subsistindo integralmente o dever da acusação de demonstrar todos os elementos constitutivos do crime.
Esta afirmação não colide, no entanto, com a validade da prova obtida através de presunção judicial. Não oferece dúvida que são admissíveis em processo penal as provas que não sejam proibidas por lei (cfr. o já citado art. 125º do CPP), aí incluídas as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil), sem que daí resulte prejuízo para o princípio da livre apreciação da prova. Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados (a presunção apenas mediatamente radica nos meios de prova produzidos em audiência). De resto, este é um mecanismo recorrente na formação da convicção. Basta pensar na prova da intenção criminosa. A intenção, enquanto elemento volitivo do dolo (enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime), na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado. Desde que as máximas da experiência (a chamada “experiência comum”, assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postas em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas. Ou seja:
- Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);
- Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria – desconhecida – de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);
- Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede).

Posto isto, impõe-se a formulação da pergunta que dá o mote à parcela do recurso agora em análise:
Os factos directamente provados nos autos permitem retirar todas as ilações que a primeira instância firmou por recurso a presunção judicial?
A resposta, à luz dos princípios que enunciámos, não carece de rebuscada fundamentação. A prova directa produzida em audiência (registe-se que se considera também produzida em audiência a prova documental constante dos autos) permite ter por assentes os seguintes factos:
1º - Os cheques que acima se identificaram foram entregues à ofendida com o espaço destinado à identificação do beneficiário em branco;
2º - Nesse espaço foi aposto o nome do arguido e ora recorrente, A...;
3º - Os cheques foram depositados em conta bancária titulada pelo arguido.
Aqui chegados, há que relembrar que o julgamento não procura atingir uma certeza absoluta e irrefutável, uma verdade plena e inabalável. Tal como a dúvida relevante em processo penal não é a dúvida absoluta, a pressupor para a sua dissipação o grau de exigência de S. Tomé - ver para crer - antes se afirmando como dúvida metódica e racional, fundada na razoabilidade das situações da vida e na impossibilidade de concluir com segurança pela verificação de um determinado facto, também a certeza judiciária não é uma certeza contra todas as possibilidades, mas uma certeza lógica e racional, fundada num equilibrado sentido da vida e da normalidade das situações.
Perante os três postulados que se acima se destacaram, resultantes da prova directa produzida em audiência, oferece-se como intocável a constatação do bem fundado da matéria de facto presumida pelo tribunal a quo e vertida nos factos nºs 15º a 21º. Com efeito, não é de supor que alguém tenha preenchido os cheques furtados apondo-lhes o nome do arguido no espaço destinado ao beneficiário e que por capricho os tenha depositado na conta daquele à revelia do seu conhecimento. Sendo possível em abstracto, não é verosímil nem é razoável admiti-lo. O que é razoável, o que nos diz a experiência comum assente na normalidade das situações da vida e que é possível garantir com a certeza exigível para uma condenação penal é que se os cheques furtados foram preenchidos com o nome do arguido no espaço reservado ao beneficiário e foram depositados na sua conta bancária sem que se vislumbre qualquer intervenção de terceiro, essa concretização, levada a cabo no seu exclusivo interesse, foi por si executada. Negá-lo, equivale a negar a própria força da evidência, rejeitando as regras da experiência comum. E assim sendo, por força da presunção judicial que necessariamente se impõe retirar da demais matéria de facto provada, há que concluir e ter como provado o que o tribunal a quo considerou como assente sob os nºs 15º a 21º. O que está aqui em causa é uma presunção judicial firmada em factos provados e em que se verifica a relação directa e segura entre os factos demonstrados que servem de base à presunção e os factos que por presunção se atingem, sem que intercorra qualquer premissa indemonstrada no estabelecimento dessa relação. Verifica-se simultaneamente que a presunção conduz a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma, sem que intercorram quaisquer circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que questionem esta conclusão. Por fim, não colhe o argumento da violação do princípio in dubio pro reo, que in casu é desmentido pela força da evidência, obstando também ao tratamento de favor que decorreria do in dubio…. Como se refere no Ac. do STJ de 08/11/2007 - Disponível em http://www.dgsi.jstj, doc. nº SJ200711080031645, “…«a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal». Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade (repete-se: «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firme certeza do julgador»). Palavras que pela sua pertinência e adequação ao caso se reproduzem sem outros comentários que não sejam os que permitem evidenciar a justeza dos factos presumidos.

E de modo idêntico se passam as coisas no que concerne aos factos assentes sob os nºs 9º a 14º. É verdade que o arguido não prestou declarações e que ninguém o viu apropriar-se dos cheques. A prova directa permite apenas verificar que o furto dos cheques teve lugar durante um fim-de-semana, entre as 15 horas do dia 9 de Junho de 2007 e as 9h30m do dia 10 de Junho de 2007 e que esses cheques foram depositados pelo arguido na conta de que era titular na Caixa Geral de Depósitos logo na segunda-feira imediatamente seguinte, no dia 11 de Junho de 2007. Como apareceram esses cheques em poder do arguido? Claro que o arguido não era obrigado a prestar declarações em audiência e portanto também não estava obrigado a explicar a proveniência daqueles cheques; silêncio que poderá favorecer o arguido, mas que normalmente envolverá também um risco naqueles casos que comportem explicação plausível mas não facilmente alcançável pelo tribunal. No caso dos autos, se alguma explicação existia para o facto de os cheques furtados terem ido imediatamente parar às mãos do arguido, sem ser aquela que o tribunal a quo teve como provada – terem sido furtados pelo próprio arguido – o tribunal recorrido não a alcançou nem este tribunal de recurso a consegue vislumbrar. De resto, não estava o tribunal recorrido obrigado a considerar quaisquer hipóteses que não encontrassem na prova produzida qualquer vestígio de possibilidade, ainda que remota, em oposição ao que se oferecia como evidencia em função do que se teve como provado. Remetemos de novo para o Ac. do STJ de 08/11/2007, de que acima transcrevemos um dos trechos mais impressivos, para concluir que também relativamente aos factos integradores do crime de furto não vemos que o tribunal recorrido pudesse ter concluído por outra forma, pese embora as limitações da prova produzida em audiência.

Prossegue o recorrente, alegando que deveria ter sido considerada a verificação de concurso aparente entre os crimes de burla e de falsificação de documentos, que o tribunal recorrido puniu em concurso material.
Vimos sustentando, mesmo à luz da mais recente alteração legal, que os casos como o que se coloca nos presentes autos devem ser punidos em concurso efectivo, como de resto o vem afirmando quase uniformemente a jurisprudência dos tribunais superiores.
A regra do concurso de crimes, consagrada no art. 30º, nº 1, do Código Penal, é a de que o número de crimes se determina “ (…) pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Se é certo que esta disposição legal não consagra expressamente as categorias do concurso real e do concurso aparente, constitui, no entanto, entendimento pacífico que dela resulta que a distinção entre unidade e pluralidade de crimes há-de assentar num critério racional ou teleológico, reportado ao fim ou objectivo visado pelas normas que tipificam os crimes em concurso. Desde há muito que se vem reconhecendo a existência de situações que, fruto de um específico condicionalismo da acção, impõem um tratamento uniformizado da violação plúrima do mesmo ou de diversos bens jurídicos, com punição conjunta por um só crime, em regra, o crime dominante. Contudo, a problemática envolvida nesta questão está longe de ser simples, ao ponto de Eduardo Correia, referindo-se-lhe, ter afirmado que “se a distinção entre unidade e pluralidade de delitos parece, à primeira vista, fácil e clara, logo a um mais íntimo contacto revela ter um tão vasto objecto e ligar-se a um tão largo número de questões, que se transforma num dos mais torturantes problemas de toda a ciência do direito criminal” - in “A Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Reimpressão, 1983, pág. 13..
É comummente aceite a existência de concurso aparente quando uma só conduta ou acção do agente preenche uma pluralidade de infracções penais, sejam elas do mesmo tipo (concurso homogéneo) ou de tipos diversos (concurso heterogéneo). O concurso aparente verificar-se-á, em princípio, nas situações de consumpção.
A doutrina vem distinguindo entre consumpção por especialidade e consumpção por subsidiariedade. A primeira, verifica-se quando entre duas normas intercede uma relação de especialização, decorrente da circunstância de uma dessas normas conter todos os elementos da outra, acrescendo-lhe ainda um elemento adicional, reservando o respectivo funcionamento para situações específicas em que esse elemento complementar se verifica. É, nomeadamente, o caso da relação que intercede entre o tipo geral de crime e o correspondente tipo agravado, qualificado ou privilegiado. A segunda, tem lugar quando um tipo legal de crime deva funcionar apenas a título subsidiário, quando não existir outro tipo legal abstractamente aplicável que comine pena mais grave (é, verdadeiramente, uma relação de sobreposição).
De um modo mais abrangente, poderá afirmar-se que o concurso aparente ocorre quando a conduta do agente apenas formalmente preenche vários tipos de crime, na medida em que é totalmente abrangida por um dos tipos violados, devendo ser excluída a aplicação dos demais. Em contraponto, no concurso efectivo, as diversas normas aplicáveis oferecem-se como concorrentes na sua aplicação concreta, por não interceder qualquer circunstância que obste à aplicação de todas elas.
A complexidade da questão posta não se basta, no entanto, com os enunciados formais apontados, pelo que em último caso será sempre através do critério teleológico a que nos referimos inicialmente e por recurso ao bem jurídico efectivamente tutelado por cada uma das normas em presença, que se aferirá a relação de concurso.
O vector em que porventura a determinação da natureza do concurso envolve maiores dificuldades é o do cometimento sequencial de crimes, em que um ou mais delitos são cometidos tendo como finalidade permitir a concretização de um outro ilícito, aquele que verdadeiramente traduz o desígnio último do agente e a cuja obtenção foi ou foram preordenados os demais. Assim, quando um determinado crime seja praticado não como finalidade em si mesma pretendida, mas como meio para permitir a concretização de um outro crime, o crime fim, discute-se se o agente deverá ser punido apenas por este último crime ou, pelo menos, apenas pelo mais grave dos dois, já que o crime fim poderá não ser o mais grave dos dois ilícitos.
Contudo, o critério da instrumentalidade do crime meio não resolve em definitivo o problema da natureza do concurso. Não tem a virtualidade de abranger todas as situações em que há que equacionar a verificação do concurso meramente aparente, nem a jurisprudência o vem admitindo com uma amplitude total, já que por razões facilmente intuíveis, se levado ao extremo, poderia conduzir a situações verdadeiramente aberrantes, o que nos remete para a consideração inicial de que a verificação do concurso aparente há-de assentar, ainda aqui, num critério teleológico, reportado ao fim ou objectivo visado pelas normas que tipificam os crimes em concurso, que se socorra de todos os elementos que possam racionalmente justificar uma ou outra das soluções em confronto.

Revertendo agora ao caso concreto, estamos em presença de factos que tipificam um crime de falsificação agravada de documento, p. e p. pelos arts 255º e 256.º, n.º 1, al. d) e n.º 3, 75º e 76º e um crime de burla simples, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 75º e 76º, todos do Código Penal.
Não será, seguramente, por recurso exclusivo ao critério do bem jurídico tutelado por cada uma das normas em confronto que se poderá determinar um concurso aparente. São normas com previsões totalmente distintas, não ocorrendo sobreposição no preenchimento dos elementos do tipo legal de crime que cada uma delas consagra. Entre elas não se verifica qualquer relação de subsidiariedade ou de especialidade.
Restaria o critério da preordenação do crime de falsificação de documento ao cometimento do crime de burla. Mas essa constatação sempre seria insuficiente para se concluir pela verificação do concurso ideal. O critério do bem jurídico tutelado pelas normas violadas permite afastar a relação de consumpção, como sucederá sempre que o agente vai praticando vários ilícitos numa sucessão de etapas com vista à obtenção de um resultado criminoso não contemplado nas acções já realizadas. Numa tal situação, o concurso aparente só deverá ser equacionado no caso da indispensabilidade dos crimes instrumentais para o cometimento do crime fim. Sem a verificação dessa indispensabilidade instrumental, os crimes que antecedem o crime fundamentalmente visado pelo agente conservam a sua autonomia, devendo ser punidos no âmbito do concurso real de infracções. Mas mesmo que verificada essa indispensabilidade, ainda assim não poderá ser arredado o argumento de ordem teleológica subjacente ao espírito da norma, de tal ordem que quando se oferecer como evidente que o legislador quis a autónoma punição do crime meio, não poderá o argumento da instrumentalidade justificar o concurso aparente. E tal é, aliás, o caso em presença, já que a alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, no corpo do nº 1 do art. 256º do Código Penal, aponta para a punição autónoma do crime de falsificação quando cometido como instrumental de outro crime. Com efeito, onde anteriormente a lei dispunha apenas e tão-só que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo (…)”, enunciando depois as condutas constitutivas do elemento material do crime, passou a dispor que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (…)”(sublinhado nosso), comprometendo definitivamente o argumento da instrumentalidade como justificativo do concurso aparente, num claro reforço da tutela do bem jurídico tutelado pelo crime de falsificação, dando assim letra de lei àquele que era já o entendimento uniformizado da jurisprudência.

Numa outra vertente, invoca o recorrente a existência de uma só resolução criminosa.
Esta questão, subsidiariamente suscitada, reconduz-se à questão de saber se, mau grado a verificação de uma pluralidade de condutas naturalísticas desenvolvidas pelo agente, estas podem e devem ser considerados como fruto de uma só intenção estruturada ou se, pelo contrário, traduzem uma renovação da intenção e vontade de agir.
Temos dito em anteriores decisões, e reafirmamo-lo uma vez mais, que a questão da unidade ou pluralidade de resoluções criminosas transporta consigo toda a subjectividade decorrente da circunstância de ser fenómeno do foro psicológico, a resolver por recurso à consideração global dos factos objectivamente demonstrados, pressupondo a análise da materialidade do crime, da acção ou omissão tal como esta é percepcionada pelo comum dos cidadãos. Trata-se, não obstante, de um juízo que não pode prescindir da consideração de factores como a personalidade do delinquente, a sua vivência, ou o seu grau de cultura, sob pena de não passar de uma mera abstracção sem um mínimo de correspondência na realidade analisada.
Ora, excluída já a opção do concurso aparente, nos termos que deixámos consignados, a multiplicidade de factos criminalmente relevantes permite equacionar três hipóteses:
- Crime único, decorrente de uma só resolução criminosa;
- Realização plúrima (concurso real de crimes);
- Crime continuado.
A primeira das vertentes assinaladas – um só crime decorrente de um só desígnio criminoso – nem sempre se afirma com a simplicidade que parece sugerir, como se evidencia particularmente se se considerarem os delitos de execução continuada, perspectiva que no entanto não importa desenvolver, por se situar totalmente à margem da questão que agora nos ocupa. O que importa reter é que, nas palavras de Figueiredo Dias, tal como “… a unidade de resolução é em absoluto compatível com a pluralidade de sentidos autónomos de ilícito dentro do comportamento global, mesmo que não exista descontinuidade temporal entre os diversos actos praticados. E isto é assim, trate-se de bens jurídicos lesados eminentemente pessoais (…) ou não (v. g., a propriedade, o património, o meio ambiente, a ordem e a tranquilidade públicas) - in “Direito Penal - Parte Geral”, tomo I, 2ª Ed. pag. 1008., também “…a pluralidade de resoluções é ainda compatível com a unidade de sentido de ilícito do comportamento total” - idem, pág. 1006., constatação que resulta do critério perfilhado pelo mesmo autor relativamente à determinação da unidade ou pluralidade de crimes, assente na “unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes” - idem, pag. 989..
No concurso de crimes, tal como no crime único, o critério da sua determinação é o do art. 30º, nº 1, do Código Penal: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente. E no caso vertente, inexistindo coincidência das condutas naturalísticas que preenchem os tipos em confronto, o critério da norma citada, se não houvesse outros factores a considerar, apontaria desde já para a pluralidade de ilícitos. Seguindo uma vez mais as palavras de Figueiredo Dias, “… da pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global é legítimo concluir, prima facie, que aquele comportamento revela uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude que, segundo o mandamento da esgotante apreciação contido na proibição jurídico-constitucional de dupla valoração, devem ser integralmente valorados para efeito de punição. A esta luz – e só a ela – fica justificada a aplicação do disposto no art. 77º-2 e o sistema aí contido de soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes para efeito de determinação do limite máximo da pena (conjunta) do concurso de crimes” - idem, pág. 1006..
Por fim, o crime continuado determina-se pelo critério consagrado no nº 2 do art. 30º, estatuindo que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Excluída esta última hipótese sem necessidade de detalhada explicação, no caso vertente a unidade da resolução criminosa só poderia sustentar-se numa conduta de tal modo linear e consequente, que quase no limiar da inconsciência relativamente à multiplicidade de sentidos criminosos das acções concretamente desenvolvidas, permitisse afirmar, por referência à personalidade do arguido, ou à sua falta de sentido crítico, ou mesmo a invulgares limitações de natureza intelectual, a tremenda injustiça resultante da consideração da pluralidade de resoluções criminosas. Manifestamente, não é esse o caso, não se vislumbrando quaisquer circunstâncias que permitam desmentir a multiplicidade de sentidos criminosos decorrentes da violação plúrima de normas jurídicas tutelando bens jurídicos diversos, em concurso heterogéneo. Não ocorre, pois, pelas razões apontadas, violação do princípio “ne bis in idem”.
Consequentemente, fica também prejudicada a necessidade de reapreciação da pena à luz de uma punição determinada exclusivamente dentro da moldura penal prevista para o crime mais grave, funcionando o outro crime como agravante, nos termos pretendidos pelo recorrente. De resto, as penas encontradas – as parcelares, como a pena única – são proporcionais à culpa do arguido e foram correctamente delimitadas de acordo com as exigências de prevenção, não merecendo censura.

Por fim, pretende o recorrente a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi imposta, alegando estarem verificados todos os pressupostos de que depende a suspensão.
A formulação do juízo que preside à opção pela suspensão da execução da pena implica a indagação dos elementos que no caso consentem a conclusão de que a simples censura e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Para a formulação desse juízo há que atender, nos termos da lei (art. 50º, nº 1, do Código Penal), à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
Não será certamente a personalidade do agente, tal como ficou espelhada na sua actuação, que permitirá o juízo de adequação suposto pela suspensão da execução da pena. A multiplicidade e diversidade dos factos cometidos, a par dos traços de personalidade espelhados no provado relativamente às suas circunstâncias pessoais permite afirmar que o arguido é portador duma personalidade mal formada e socialmente desconforme. Da sua situação pessoal nada se retira com utilidade para o juízo de prognose positiva que se procura. A sua conduta anterior ao crime, com reflexo evidente nas suas anteriores condenações penais, não só não depõe a seu favor como, bem pelo contrário, permite reforçar o juízo de censura à personalidade de que o arguido é portador, já que apesar da sua juventude, conta com um significativo cadastro criminal. Também das circunstâncias dos crimes de que nestes autos se conhece não resulta absolutamente nada que o possa favorecer na perspectiva de uma suspensão da execução da pena.
Ou seja, a suspensão da execução da pena revelar-se-ia a todos os títulos desadequada para lograr as finalidades da punição, tanto mais que as anteriores condenações mostraram já a resistência do arguido à assimilação de um comportamento socialmente conformado com as regras de vivência em sociedade. Ao nível da protecção dos bens jurídicos violados, como na vertente da reintegração social, seria geradora de uma ideia de excessiva benevolência do sistema judicial, totalmente desajustada em função do condicionalismo do caso concreto e que a comunidade jurídica não assimilaria como eficaz, transmitindo simultaneamente ao arguido a ideia errada de que a sua actuação, apesar da gravidade de que se revestiu e das consequências dela resultantes, seria, ainda assim, tolerável, por não implicar quaisquer consequências que lhe fossem penosas ou desagradáveis, mau grado os seus anteriores comportamentos criminalmente relevantes, pelo que poderia até ser repetida.
Em conclusão, é manifesto não estarem verificados os pressupostos da suspensão da execução da pena, nada nos autos consentindo o juízo de prognose favorável em que aquela necessariamente deverá assentar, pelo que bem andou o tribunal recorrido ao não suspender a pena de prisão imposta ao arguido.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Por ter decaído integralmente no recurso interposto, condena-se o recorrente em 4 UC de taxa de justiça.

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Coimbra, ____________
(texto processado e revisto pelo relator)




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(Jorge Miranda Jacob)




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(Maria Pilar de Oliveira)