Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JOÃO NOVAIS | ||
Descritores: | ARQUIVAMENTO EM CASO DE DISPENSA DA PENA INIMPUGNABILIDADE INSTRUÇÃO REJEIÇÃO | ||
Data do Acordão: | 03/06/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | CASTELO BRANCO (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 143º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL; 280º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
Sumário: | O art. 280º n.º 3 do C.P.P. não permite a impugnação da decisão de arquivamento em caso de dispensa de pena mediante requerimento de abertura da instrução. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acórdão da 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra Processo n.º 325/22.4GBSRTC1 I - Relatório 1.1. A assistente AA interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Competência Genérica da Sertã, do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, o qual rejeitou o requerimento de abertura de instrução.
1.3. O Ministério Público junto do tribunal a quo, respondeu ao recurso nos seguintes termos: Salvo o devido respeito, cremos não assistir, todavia, qualquer razão à aqui assistente e recorrente, pelo que defendemos a integral confirmação do despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução. Com efeito, resulta inequivocamente do disposto no n.º 3, do artigo 280.º, do Código Penal, cuja epígrafe é “Arquivamento em caso de dispensa da pena”, “3 - A decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação.”, tal como liminarmente explanado no douto despacho ora recorrido, para cuja fundamentação se remete. Acresce não assistir razão à assistente e recorrente, salvo o devido respeito por diferente entendimento, em sede de qualificação jurídica da factualidade objecto dos autos. Em primeiro lugar, quanto à ofensa à integridade física, porquanto a ora assistente se queixou, em suma, de que BB lhe tinha apertado o pescoço, enquanto BB se queixou de que AA lhe tinha mordido a face, sendo ambos irmão e irmã, tal como consta do auto de notícia. Em sede de inquirição, a assistente e recorrente relatou que, na ocasião dos autos, o seu irmão BB a abordou e agrediu, com murros na cabeça, puxões de cabelo e pontapés nas costas e ancas, e, depois de ter caído ao chão, o irmão apertou-lhe o pescoço diversas vezes. Dos relatórios de avaliação do dano corporal em direito penal do INMLCF junto aos autos resulta que ambos sofreram lesões físicas que determinaram, a AA, 9 dias para a cura, e, a BB, 8 dias para a cura, em ambos os casos sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional. Assim se aferindo que ambos os intervenientes sofreram lesões, lesões essas recíprocas e de gravidade equivalente. Todas as demais testemunhas inquiridas apresentaram versões díspares quanto ao episódio em causa nos autos, sendo tanto divergentes entre si, como divergentes do reportado pela própria assistente e recorrente, como com divergentes do teor do auto de notícia, e ainda divergentes dos relatórios médico-legais. Em suma, a factualidade apurada não inclui quaisquer circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, não se subsumindo, salvo melhor opinião, ao crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, todos do Código Penal, mas sim ao crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, do mesmo diploma legal. Pelo que não assiste a este propósito qualquer razão à ora recorrente. Já no que concerne ao imputado – em sede de recurso – crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, n.º 1, e 155º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, há desde logo que atender a que, tal como expresso pela própria assistente e recorrente, a imputação a BB de que este teria, na ocasião objecto dos autos, dito a AA que a matava, resulta do relato efectuado pela testemunha CC. Tal não resulta de qualquer outro elemento probatório, mormente das declarações da própria assistente e recorrente. Uma vez mais, concorrendo para a constatação, efectuada em sede de despacho de encerramento de inquérito, que os relatos apresentados, por testemunhas e denunciados, são todos divergentes entre si e também não se coadunam com o auto de notícia (nem sequer com os relatórios médico-legais), sendo certo que é a própria AA, alegadamente visada pela ameaça de morte, a omitir tal facto. Pelo exposto, salvo o devido respeito por diverso entendimento, temos que bem andou o Tribunal recorrido nesta sede.
1.4. O arguido BB veio responder ao recurso concluindo: (…) 5. Resulta da disposição do artº 280°, 1, do CPP, que a encerrar a fase de inquérito, ao MP é lícito arquivar o processo, se este respeitar a «crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena». Mor é que se verifiquem os pressupostos daquela dispensa da pena e que seja obtida a concordância do juiz de instrução (necessariamente fiscalizadora da reunião daqueles pressupostos no caso concreto). 6. Proferida uma acusação, ainda assim, o juiz de instrução pode arquivar o processo, enquanto esta decorrer, nas mesmas circunstâncias, desde que seja obtida a concordância do arguido e do MP (nº 2). 7. Em qualquer das hipóteses (nºs 1 e 2) a decisão de arquivamento não é suscetível de impugnação (nº 3). 8. Afigura-se ao legislador penal que ao ser proferida uma decisão de arquivamento em consonância com esses ditames se mostram asseguradas as necessidades de perseguição dos crimes e dos seus agentes e a prossecução da paz pública, dadas, por um lado, as diminutas ilicitude do facto e da culpa do agente (artº 74º, 1, a), do CP) a inexistência ou a reparação do dano ( ai. b )) e a não oposição de razões de prevenção (ai. c)). 9. Não pode a Assistente, nos casos como o presente, requerer a abertura de instrução, até porque, nos termos legais, o regime da dispensa da pena pressupõe a declaração de um estado de culpa do agente (v. o art° 74º1 1, proémio, do CP) que, todavia, não será sancionada com uma reação penal; se a existência da culpa está reconhecida pelo menos em termos indiciários, não se justifica a abertura da fase jurisdicional da instrução que visa, entre o mais, e precisamente, o estabelecimento dessa culpa, com submissão do agente a julgamento (art° 286º, 11 do CPP). 10. A cláusula de inimpugnabilidade prevista pelo nº 3 do art. 280° do CPP não vincula o assistente, ficando em aberto para este sujeito processual a possibilidade de impugnar por via de recurso os despachos de concordância proferidos pelo Juiz de Instrução, nos casos regulados pelo nº 1 do referido artigo. 11. - O requerimento de abertura da instrução não é meio processual legalmente admissível para o assistente reagir contra despacho de concordância de juiz de instrução com a decisão de arquivamento de processo em caso de dispensa da pena.
1.5. O Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer, onde se lê que (…) “Já quanto à questão de saber se o despacho de arquivamento proferido nos termos do n.º 1 do artº 280º do CPP, é ou não suscetível de impugnação mediante interposição de recurso e/ou reclamação hierárquica, a jurisprudência tem decidido em ambos os sentidos. A título de exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora também citado no despacho recorrido, decidiu-se em sentido negativo; já no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-01-2018, proferido no processo n.º 260/14.0GDCBR.C1, disponível no site da dgsi, entre outros, decidiu-se no sentido de ser admissível recurso ou reclamação hierárquica. Não se conhece, todavia, qualquer acórdão que se tenha pronunciado no sentido da admissibilidade de requerimento de instrução. Aliás, a ser admitido requerimento de instrução, apenas o poderia ser na hipótese prevista no n.º 1 do artº 280º do CPP e não já na hipótese prevista no seu n.º 2. O que não seria compreensível. A recorrente, na falta de razões de direito para fundamentar a sua pretensão, fundamenta a pretensa ilegalidade do despacho recorrido - que rejeitou o requerimento de abertura de instrução com base na sua inadmissibilidade legal e, assim, com base em razões de direito - meramente em argumentos que se prendem com a alegada ilegalidade do despacho de arquivamento do processo (matéria esta que, todavia, entende-se, não cabe apreciar no âmbito deste recurso). Se a recorrente entendia, como entende, que o despacho de arquivamento é ilegal, em virtude de, no seu entendimento, não se encontrarem reunidos os pressupostos legalmente exigíveis previstos no artº 280º do CPP, a impugnação desse despacho apenas poderia ter tido lugar por via da interposição de recurso do mesmo, recurso esse admissível, segundo alguma jurisprudência (que se perfilha). Impugnar o despacho de arquivamento proferido ao abrigo do disposto no artº 280º, n.º 1 do CPP e impugnar o despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução com fundamento na sua inadmissibilidade legal, constituem situações totalmente distintas. A coberto de recurso do despacho que rejeite o requerimento de abertura de instrução não pode pretender-se que se aprecie a eventual ilegalidade de despacho de arquivamento do processo proferido ao abrigo do disposto no artº 280º, n.º 1 do CPP. Não é também defensável que, como pretende a recorrente, da pretensa ilegalidade do despacho de arquivamento, decorra, então, sem mais, a ilegalidade do despacho recorrido, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, com a consequente admissão de tal requerimento. Quanto à questão única objeto deste recurso e, como já se consignou, face à jurisprudência que, de forma uniforme e reiterada, tem decidido no sentido de não ser admissível impugnação do despacho de arquivamento proferido nos termos do artº 280, n.º 1 do CPP, mediante requerimento de abertura de instrução, dá-se parecer no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso, afigurando-se adequado a prolação de decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 417º, n.º 6, al. d) do CPP.
II - Fundamentação de Facto
III – Fundamentação de Direito a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995). b) A única questão a apreciar nesta instância de recurso, prende-se em saber se a decisão de arquivamento do processo por parte do Mistério Público, com a concordância do juiz de instrução, proferida nos termos do art 280º n.º 1 do C.P.P., é ou não suscetível de ser impugnada mediante requerimento de abertura de instrução. c) Recorde-se que o Ministério Público junto à 1ª instância, concluindo pela verificação dos pressupostos fixados no art 280º n.º 1 do C.P.P. (designadamente considerando que a situação em causa configurava a possibilidade de dispensa da pena), decidiu-se pelo arquivamento do processo, decisão esta que mereceu a concordância do juiz de instrução, proferindo despacho judicial nesse sentido. A assistente, discordando dessa mesma decisão de arquivamento, veio requerer abertura de instrução, o qual foi rejeitado por despacho judicial, por considerar que esse requerimento de abertura de instrução é legalmente inadmissível. d) O despacho de arquivamento em caso de dispensa da pena, com sede no art 280º n.º 1 e n.º 2 do C.P.P., parte do pressuposto de que, tendo sido recolhidos indícios suficientes da prática de um crime, se constata que são diminutas quer a ilicitude do facto quer a culpa do agente, e que o dano foi reparado, pelo que, não existindo ainda razões de prevenção que a tal obstem, o prosseguimento dos autos redundará numa dispensa da pena prevista no art 74º do Cód. Penal. Apontando os indícios recolhidos para um crime de pequena gravidade (tanto que previsivelmente redundará na referida dispensa da pena), a intervenção das instâncias formais de controlo será sido suficiente para tutelar o bem jurídico violado e para reintegrar o agente na sociedade - João Conde Ferreira, Comentário Judiciário do C.P.P, vol. III, p. 1067 e ss., Ed. Almedina. E assim sendo, a utilização deste mecanismo processual, logrando ainda atingir os fins das penas definidos no art 40º do Cód. Penal, permite com evidente economia processual contribuir para o menor congestionamento dos tribunais, dispensando o sistema de ocupar recursos na apreciação de um crime que é avaliado como de pouca gravidade. Uma mais apurada justiça material a que conduziria a realização do julgamento com a produção da prova no sentido de reconstituir de forma mais precisa os contornos do caso, cede perante os objectivos de política criminal acima enunciados; o princípio da legalidade cede perante o princípio da oportunidade.
e) A especificidade dos fins visados pelo arquivamento em caso de dispensa da pena ainda agora assinalada, terá originado a opção do legislador no sentido de inserir o n.º 3 do art 280º do C.P.P., o qual estabelece que “a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação”. Parte da nossa jurisprudência tem interpretado de forma mais abrangente esta norma, não admitindo, em caso algum, que a decisão de arquivamento do processo possa ser alvo de impugnação, quer mediante intervenção hierárquica (quanto ao despacho do Ministério Público), quer mediante a interposição de recurso (relativamente ao despacho do juiz de instrução) – cfr. o Ac. da Rel. do Porto de 19/6/13, processo n.º processo nº 765/11.4GDVFR.P e Ac. da Rel. de Évora de 25-09-2017, processo n.º 409/17.0T9EVR.E1. Já em outros arestos, tem sido defendida uma interpretação menos literal e menos abrangente do preceito; caso o fundamento da impugnação seja o da violação da lei por falta dos pressupostos legais para dispensa da pena, a impugnação pelo assistente do despacho de arquivamento deve ser admitida; para esta jurisprudência, a proibição de impugnação do n.º 3 do art 280º deve ser entendida no sentido de se dirigir exclusivamente para o juízo de oportunidade de arquivar ou não o processo, mas não da possibilidade de se poder colocar em causa a verificação dos pressupostos legais que permitem esse juízo de oportunidade, quer através de intervenção hierárquica (quanto ao Ministério Público), quer mediante a interposição de recurso (quanto ao despacho do juiz de instrução). – cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 10-1-2018, processo n.º 260/14.0GDCBR.C1, Dec. Presidente da Rel. Coimbra de 16-2-2007, processo n.º 544/04.8GAMLD-C.C1, Ac. da Rel. de Évora de 15-10-2013, processo n.º 77/12.6GGSTC.E1.
f) Mas já merece larga concordância na nossa jurisprudência, a interpretação do art 280º n.º 3 do C.P.P. no sentido de que o mesmo não permite a impugnação da decisão de arquivamento em caso de dispensa de pena mediante requerimento de abertura da instrução, não sendo conhecidas decisões em contrário. Isto porque, sendo certo que em termos gerais a lei (na parte que agora importa) atribui a possibilidade de o assistente solicitar a confirmação judicial da decisão de arquivar o inquérito (art 286º n.º 1 do C.P.P.), no caso, a determinação do Ministério Público no sentido de arquivar o inquérito já mereceu comprovação judicial mediante a prolação do despacho de concordância emitido pelo juiz de instrução a que faz alusão o art 280º n.º 1 do C.P.P. E é essa intercalação do despacho judicial de concordância relativamente à decisão de arquivamento, que afasta a possibilidade de se requerer a abertura de instrução, a qual visa - como ainda agora referimos - a decisão do Ministério Público no sentido de arquivar o processo. Note-se que, quando o Ministério Público recorre ao mecanismo previsto no n.º 1 do art 280º do C.P.P. e logra obter a concordância por parte do juiz de instrução quanto a esse mesmo arquivamento, acaba por ver a sua decisão judicialmente comprovada. E assim sendo, não faria sentido que fosse possível pedir nova comprovação judicial ao mesmo juiz de instrução criminal, mediante o requerimento de abertura de instrução o qual tem precisamente esse fito. Como se pode ler no Ac. da Rel. de Lisboa 22-6-2016, processo n.º 819/14.5PDAMD-A.L1-3, “admitir a instrução nos casos em que houve concordância do juiz de instrução seria admitir que pudesse requerer-se ao mesmo juiz de instrução (ou a outro juiz de instrução, mas ainda da mesma primeira instância e não em sede de recurso) a apreciação ou controlo da sua própria conduta, o que impediria que se alcançasse a própria finalidade do acto (como aconteceria se os recursos fossem apreciados pelo mesmo tribunal que proferiu a decisão recorrida).”
g) Em suma: É possível admitir (com o faz parte da nossa jurisprudência) a reclamação hierárquica ou a interposição de recurso por parte do assistente relativamente a decisões que determinem o arquivamento do processo em caso de dispensa da pena (desde que não tenham por objecto o juízo de oportunidade sobre a mesma, mas apenas os pressupostos legais dessa decisão). Mas já não se aceita que seja admissível o requerimento de abertura de instrução que pretenda reagir contra uma decisão de arquivamento determinada pelo Ministério Público, a qual mereceu a concordância do juiz de instrução, como ocorre no caso - neste sentido - cfr. ainda o Ac. da Rel. do Porto 14.12.2005, processo n.º 0544322, o Ac. da Rel. de Coimbra de 21.01.2015, processo n.º 316/13.6GAPMS-A.C1, ou o Ac. da Rel. de Évora de 27.03.2012, processo n.º 3/10.7GCRDD.E1. E por isso se concorda com o despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução proferido pelo tribunal a quo * IV- Dispositivo Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente o recurso interposto por AA. Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC´s.
Coimbra, 6 de Março de 2024
João Novais
Alexandra Guiné
Alcina Ribeiro |