Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3686/06.9TBVIS
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: TRANSACÇÃO
PODERES DAS PARTES
INTERESSE PÚBLICO
Data do Acordão: 11/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1249; 1376.º; 1377.º E 1379.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A transacção perfila-se como uma das formas possíveis de extinção da instância a par da confissão e desistência procurando uma solução de compromisso voltada para uma hipótese em que as partes põem fim ao seu diferendo moldando os seus interesses através de um consenso obtido por meio de concessões e cedências mútuas.
2. Dentro deste condicionalismo é relativamente ampla a margem de manobra de composição de interesses, permitindo a transacção judicial quer o alargamento objectivo, quer o alargamento subjectivo do pleito. Tanto assim é que se tem entendido que é lícito às partes em litígio porem fim a todas as acções entre si pendentes mediante transacção global lavrada por termo num dos processos.
3. Verificados certos requisitos mínimos de validade, a transacção poderá operar como que uma substituição da obrigação primitiva por outra de contornos não coincidentes e até mais alargados;
4. Desde que a transacção não enferme de nulidade – e é desde logo o que dispõe o artigo 1 249º do Código Civil - não pode o juiz recusar-se a homologá-la com fundamento em que as respectivas cláusulas extravasam o objecto da causa.
5. Contudo a vontade das partes não basta sempre para superar sem mais na transacção certos óbices de natureza legal; é o que se passa com alguns impedimentos dessa índole, que surgem quando se pretende pôr termo à indivisão, de natureza administrativa e urbanística, óbices de cariz público que se impõem na esfera jurídica privada em ordem a garantir o correcto planeamento do território e a boa disciplina na construção civil.
6. Nos casos a que se reportam os artigos 1 376º e 1 377º do Código Civil não é possível através de transacção considerar decorrido o prazo de usucapião já que tal abriria a porta para uma situação de fraude à Lei colocando as autoridades administrativas perante um facto consumado ao arrepio das normas de direito que regulam o fraccionamento dos prédios.
7. Diferente seria o caso se estivéssemos já pe­rante a declaração de aquisição como facto consumado do direito de propriedade por usucapião de parcelas distintas, mesmo que em violação do dito emparcelamento mas após julgamento formal, atendendo à natureza sanativa daquele instituto.
8. O prazo de caducidade para a anulação dos actos de fraccionamento referidos nos artigos 1 376º e 1 377º do Código Civil e previsto no artigo 1 379º nº 3 do mesmo Diploma Legal só começaria in casu a correr a partir do momento em que houvesse uma homologação da transacção, já que só a partir desse momento a ilegalidade ingressaria relevantemente na ordem jurídica e poderia ser objecto de anulação, marcando a data da homologação o início do prazo para tanto.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

     A.....e B.....vieram propor a presente acção sumária contra C.....e ..D... pedindo que, pela procedência da mesma, sejam os Réus condenados a ver declarado e reconhecer-se que o primitivo prédio se dividiu em 2 novos prédios autónomos entre si, com as configurações e confrontações referidas na p.i. e que seja ordenada a participação junto do serviço de Finanças dos 2 novos prédios autónomos entre si, nos termos elencados; seja ordenado aos Réus que reconheçam e respeitem a existência dos dois prédios autónomos entre si, devendo abster-se de, por qualquer modo, acto ou palavras, interferirem na propriedade dos Autores.

     Para tal alegam que os pais da Autora eram proprietários de metade de uma terra de semeadura, composta por videiras e macieiras, sita às Cavadas, freguesia de Cavernães, a confrontar do norte com o caminho, a nascente com a estrada, a sul com …. e a poente com …., com a área total de 1 160 metros quadrados, inscrita na matriz predial rústica com o artº 1990, sendo a outra metade de tal prédio pertença dos Réus.

     Mais alegam que em 1980 os pais da Autora e vizinhos dividiram verbalmente o terreno em duas partes, cada uma com a área de 580 m2, ficando os pais da Autora com a metade do terreno que passou a confrontar a norte com os Réus, a sul com ….., a poente com o rio e a nascente com a estrada e os Réus com a metade do prédio que passou a confrontar a norte com o caminho, a sul com …. e ……, a poente com …… e a nascente com a estrada.

     Após a divisão os Réus e os pais da Autora passaram a comportar-se como proprietários das metades atribuídas a cada um embora não formalizassem a divisão, que posteriormente àquele ano, os pais da Autora acertaram verbalmente um alinhamento de estremas com um vizinho, ficando a sua parcela com a área global de 845 metros quadrados.

     Em 1981, os pais da Autora doaram-lhe verbalmente esse terreno, tendo os Autores iniciado nele a construção da sua habitação que ficou terminada em 1983, ano em que os Autores comunicaram tal facto às Finanças, surgindo assim o artigo matricial 820º.

     Alegam também que em 1991, no inventário por óbito de E....., foi adjudicada à Autora a metade do prédio rústico inscrito na matriz com o art. 1990º, a qual já vinham possuindo desde 1983.

     Os Réus contestaram, invocando desde logo a ineptidão da petição inicial, a ilegalidade do segundo pedido formulado, por cair fora da competência jurisdicional do Tribunal, e alegando que o seu prédio tem a área de 880 metros quadrados.

     Em reconvenção, pediram que seja declarado que o prédio mãe descrito no artº 1º da p.i. deu origem por usucapião a dois prédios distintos e autónomos, identificados nos artsº 5º e 6º da p.i., que os Réus adquiriram por usucapião o prédio descrito no art. 6º da p.i. e 7º da contestação.

     Depois do registo da acção e da reconvenção, foi lavrado, a pedido de requerentes e requeridos, o termo de transacção de fls. 77-79, no qual consignaram o acordo alcançado entre as partes e declararam pretender pôr fim ao litígio em discussão nos presentes autos.

     Acordaram, no essencial, em reconhecer a existência do “prédio-mãe” identificado na cláusula 1º, sendo ele o inscrito na matriz rústica da freguesia de Cavernães, concelho de Viseu, de natureza rústica, composto por terra de semeadura, com videiras, com a área na matriz de 1160 metros quadrados e na realidade de 1725 metros quadrados, reconhecendo ainda que em 1980 os Autores e os Réus, na qualidade de comproprietários de tal prédio, procederam à divisão do mesmo em dois, tendo para o efeito procedido ao cravamento de marcos em pedra nas suas estremas e tendo assim criado dois prédios distintos e autónomos física e economicamente, sendo eles os prédios identificados na cláusula 2, um deles, pertença dos Autores, com a área de 845 metros quadrados e o outro, pertença dos Réus, com a área de 880 metros quadrados.

     Mais declararam que AA. e RR. já se encontram na posse dos seus prédios resultantes da mencionada divisão há mais de 20, 25 anos ininterruptamente, usando-os como coisa sua de forma pública e pacífica, na convicção de exercerem um verdadeiro direito de propriedade, pelos que os adquiriram por usucapião.

     A Sra. Juiz a fls. 94 julgou extinta a instância (acção e reconvenção) com fundamento no uso anormal do processo, não havendo, por isso que homologar a transacção em apreço.

     Daí os presentes recursos de agravo interpostos por AA. e RR. os quais no termo da sua alegação pediram que se revogue o decidido homologando-se a transacção efectuada ou então que se determine a rectificação do respectivo clausulado (agravo dos AA.).

     Foram para tanto apresentadas as seguintes,

     Conclusões.

     A - Agravo dos AA. Amélia Céu Marques Figueiredo Oliveira e marido José Marques Figueiredo.

     1) Os AA./recorrentes e as partes envolvidas nesta situação jurídica não fizeram um uso anormal do processo nem a transacção por estes celebrada denota tal uso anormal.

     2) Invocaram a usucapião e todos os seus requisitos para reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a metade autonomizada do prédio-mãe inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Cavernães, concelho de Viseu, sob o artigo 1990, onde edificaram os AA./recorrentes a sua casa de morada de família inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 820 da dita freguesia.

     3) Não houve fraccionamento ilegal, pois a proibição do artigo 1376º do Código Civil, cede perante o instituto da usucapião, e nem o prédio mãe foi dividido em 1980 para dar lugar a duas parcelas de cultura, mas sim para a edificação de uma casa.

     4) Não houve fraccionamento do prédio mãe em dois terrenos de cultura, mas sim num prédio urbano e a outra metade mantendo a aptidão para cultura.

     5) Pois os AA/recorrentes detiveram desde pelo menos o ano de 1981 a posse exclusiva de metade do prédio rústico e desde 1983 do prédio Urbano que edificaram nessa metade autonomizada.

     6) A não referência na Transacção da edificação da casa de morada de família dos AA./Recorrentes inscrita na matriz urbana da freguesia de Cavernães sob o artº 820º não deve ser fundamento de anulação do processo, quando muito de rectificação da transacção.

     7) Fez-se errónea interpretação dos artigos 2º, 665º do Código de Processo Civil e 1 376º do C. Civil, que acreditamos foram violados.

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     B – Agravo dos RR. C.....e D…..

     1) Não obsta à aquisição por usucapião de parcelas, de área inferior à unidade de cultura;

     2) As normas de emparcelamento e que proíbem fraccionamento não são normas imperativas e de ordem pública cedendo perante usucapião;

     3) Os RR. Reconvintes alegam a divisão material do prédio mãe em dois prédios pelos AA. e RR por volta de 1980;

     4) Dividiram-no ao colocarem marcos em pedra e regos para os individualizarem;

     5) Invocaram actos de posse por sobre o seu prédio (sua parcela);

     6) Invocaram todos os caracteres de posse conducentes à aquisição por usucapião,

     7) Não podendo assim afirmar-se estar-se perante um processo simulado ou tendente a efectuar um fraccionamento ilegal.

     Não houve contra-alegações.

     Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

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     2. FUNDAMENTOS.

    

     2.1. Os Factos.

     Os factos que interessam à decisão da causa cons­tam a fls. 82 ss do despacho agravado.

     Assim, não tendo sido impugnada a matéria de facto nem havendo tão pouco qualquer alteração a fazer-lhe, nos termos do preceituado no artº 713º nº 6 do Código de Processo Civil, dá-se aqui a mesma por reproduzida.

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     2.2. O Direito.

     Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

     - Da essência, finalidades e âmbito da transacção. Seus limites.

     - O caso vertente.

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     2.2.1. Da essência, finalidades e âmbito da transacção. Seus limites.

     Intentada acção com processo ordinário através da qual os AA. pretendem essencialmente ver dividido um prédio em duas parcelas por usucapião, acabou por ser lavrada transacção cujos termos constam de fls. 77 e 78.

     Nos termos do preceituado no artigo 280º alínea c) do Código de Processo Civil a transacção perfila-se como uma das formas possíveis de extinção da instância a par da confissão e desistência. A transacção procura no entanto uma solução de compromisso e aponta para uma saída em que as partes põem fim ao seu diferendo moldando os seus interesses através de um consenso obtido por meio de concessões e cedências mútuas. É aliás o que flui do artigo 1 248º nº 1 do Código Civil ao referir que “1. Transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões. No intuito de facilitar a composição do diferendo, o nº 2 do mencionado normativo legal estatui que “as concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido”. Há pois um aliquid datum aliquid retentum na relação jurídica controvertida. Contudo dentro deste condicionalismo é relativamente ampla a margem de manobra de composição de interesses, permitindo a transacção judicial quer o alargamento objectivo quer o alargamento subjectivo do pleito. Tanto assim é que se tem entendido ser lícito às partes em litígio porem fim a todas as acções entre si pendentes mediante transacção global lavrada por termo num dos processos. É por isso que a Doutrina vem dando a este tipo de transacção o título de novativa; verificados certos requisitos mínimos de validade, a transacção poderá operar como que uma substituição da obrigação primitiva por outra, de contornos não coincidentes e até mais alargados; e na verdade, desde que a transacção não enferme de nulidade – e é desde logo o que dispõe o artigo 1 249º do Código Civil - não pode o juiz recusar-se a homologá-la com fundamento em que as respectivas cláusulas extravasam o objecto da causa[1]. Contudo, como acima já deixámos entrever, a vontade das partes não basta sempre para superar sem mais na transacção certos óbices de natureza legal. É o que se passa desde logo com as normas referentes à urbanização e edificação com sede presentemente no DL 555/99 de 16 de Dezembro e também com as normas de fraccionamento e emparcelamento de prédios rústicos a que se reportam os artigos 1 376º ss do Código Civil e DLs 103/90 de 22 de Março e 384/88, de 25 de Outubro.

     Alguns impedimentos de natureza legal surgem assim como excepção à divisibilidade dos prédios, a par dos que são de natureza convencional ou natural[2]. É o que se passa por vezes quando se pretende por termo à indivisão; e isto não em virtude de aspectos ligados à acção vocacionada para tanto, a acção de divisão de coisa comum a que se reportam os artigos 1 052º ss do Código de Processo Civil, mas em grande número de casos devido a impedimentos de natureza legal de outra índole, nomeadamente administrativa e urbanística, óbices de cariz público que se impõem na esfera jurídica privada em ordem a garantir o correcto planeamento do território e a boa disciplina na construção civil.

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     2.2.2. O caso vertente.

 No caso que analisamos está precisamente em causa a questão de aquilatar da validade da transacção efectuada por AA. e RR. face aos elementos imperativos que regulamentam o emparcelamento previstos nomeadamente nos artigos 1 376º ss do Código Civil.

     É do seguinte teor a transacção efectuada:

      

                 Cláusula Primeira

     No lugar das Cavadas, limite da freguesia de Cavernães, concelho de Viseu, existiu o seguinte prédio mãe:

- Rústico, composto por terra de semeadura, com videiras, sito às Cavadas, limite da freguesia de Cavernães, concelho de Viseu, com a área na matriz de 1160 m2, mas que na realidade é de 1725 m2, isto após rigoroso levantamento topográfico, a confrontar do norte com caminho, nascente com estrada, sul com Leopoldo da Cunha Matos, poente com José António, inscrito na matriz rústica daquela freguesia sob o artigo 1990.

                 Cláusula Segunda

     Em 1980, os Autores A.....e marido B.....e os RR. C.....e mulher D..... na qualidade de comproprietários do prédio descrito na cláusula primeira, procederam à divisão material do referido prédio em dois, tendo para o efeito procedido ao cravamento de marcos em pedra nas suas estremas, criando-se assim dois prédios distintos e autónomos física e economicamente; a saber:

    

     a) Rústico, composto por terreno de cultura, sito às Cavadas, limite da freguesia de Cavernães, com a área de 845 m2, a confrontar do norte com ….., sul com ….., poente com Rio, nascente com estrada, omisso na matriz, fazia parte do artigo 1990, daquela freguesia.

    

     b) Terreno de cultura com videiras, com a área de 880 m2, sito às Cavadas, limite da freguesia de Cavernães, concelho de Viseu, a confrontar do norte com caminho, sul com A……, poente com …., nascente com estrada, omisso na matriz, fazia, parte do artigo rústico 1990 daquela freguesia.

                 Cláusula Terceira

     O prédio identificado na al. a) da cláusula anterior é propriedade e pertença dos AA. A.....e marido E…...

                 Cláusula Quarta

     O prédio identificado na al. b) da cláusula segunda, é propriedade e pertença, dos RR C.....e mulher D…...

                 Cláusula Quinta

     E, sendo assim, como na realidade é, AA. e RR. já se encontram na posse dos seus identificados prédios nas alíneas a) e b) da cláusula segunda, como prédios autónomos e demarcados, há mais de 20, 25 anos, usufruindo-os como coisa exclusivamente sua, à vista de toda a gente, publicamente, continuadamente, ou seja sem interrupção, sem oposição de quem quer que fosse, portanto de forma pacífica, de boa fé, e na convicção de exercerem um verdadeiro direito de propriedade sobre tais prédios, lavrando-os, semeando-os e colhendo os frutos, plantando milho, batatas e deles retirando as demais utilidades de que os mesmos são susceptíveis, e que lhe podem proporcionar, pelo que os adquiriram por usucapião.

                 Cláusula Sexta

    

     De modo que os RR. C.....e mulher D…., casados sob o regime de comunhão de adquiridos, reconhecem que os AA. A.....e marido B….., casados sob o regime de comunhão de adquiridos são donos e legítimos possuidores (e proprietários) do prédio identificado e descrito na al. a) da cláusula segunda por o haverem adquirido por usucapião.

Por sua vez;

               

 Cláusula Sétima

    

     Os AA. A.....e marido B….., reconhecem que os RR. C.....e mulher ..... casados no regime de comunhão de adquiridos, são donos e legítimos possuidores (e proprietários) do prédio identificado e descrito na al. b) da cláusula 2ª, por o haverem adquirido por usucapião.

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     Nos termos do preceituado no artigo 1376º do Código Civil " 1. Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela do terreno.

     2. (…).

     3. (…).

     Por seu turno o artigo 1379º nº 1 do mesmo Diploma Legal refere que "São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, bem como o fraccionamento efectuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos".

     O artigo 1º da Portaria nº 202/70 de 21 de Abril estatui em execução da Lei nº 2116 de 14/8/1962, que a unidade mínima de cultura fixada para terreno de sequeiro é de 2 Ha. Assim sendo, têm os dois prédios no seu conjunto uma área inferior aos aludidos 2 Ha, unidade mínima de cultura (845 m2 + 880 m2)= 1725 m2. Na tese defendida em primeira instância tornar-se-ia assim impossível quer a acção de divisão de coisa comum quer a via de solução por recurso a acto notarial tendo em linha de conta que o funcionário notarial está adstrito à observância do princípio da legalidade dos actos.

     Vejamos:

     Como se deduz, quer da Petição Inicial quer essencialmente da transacção, as partes invocam como fundamento da sua pretensão a prática de uma multiplicidade de actos referentes à usucapião de cada uma das parcelas em que se dividiu o prédio-mãe. Nomeadamente em 1980, os Autores A.....e marido B.....e os RR. C.....e mulher ..... na qualidade de comproprietários do prédio descrito na cláusula primeira, procederam à divisão material do referido prédio em dois, tendo para o efeito procedido ao cravamento de marcos em pedra nas suas estremas, criando-se assim dois prédios distintos e autónomos física e economicamente; a saber:

    

     a) Rústico, composto por terreno de cultura, sito às Cavadas, limite da freguesia de Cavernães, com a área de 845 m2, a confrontar do norte com …., sul com …., poente com Rio, nascente com estrada, omisso na matriz, fazia parte do artigo 1990, daquela freguesia.

    

     b) Terreno de cultura com videiras, com a área de 880 m2, sito às Cavadas, limite da freguesia de Cavernães, concelho de Viseu, a confrontar do norte com caminho, sul com ….., poente com …., nascente com estrada, omisso na matriz, fazia, parte do artigo rústico 1990 daquela freguesia.

     O prédio identificado na al. a) da cláusula anterior é propriedade e pertença dos AA. A.....e marido B…..

     O prédio identificado na al. b) da cláusula segunda, é propriedade e pertença dos RR C.....e mulher D…..

     E, sendo assim, AA. e RR. já se encontrariam na posse dos seus identificados prédios nas alíneas a) e b) da cláusula segunda, como prédios autónomos e demarcados, há mais de 20, 25 anos, usufruindo-os como coisa exclusivamente sua, à vista de toda a gente, pública e continuadamente, ou seja sem interrupção, sem oposição de quem quer que fosse, portanto de forma pacífica, de boa fé, e na convicção de exercerem um verdadeiro direito de propriedade sobre tais prédios, lavrando-os, semeando-os e colhendo os autos, plantando milho, batatas e deles retirando as demais utilidades de que os mesmos são susceptíveis, e que lhe podem proporcionar.

     Perante este circunstancialismo sustentam os AA. que estaríamos em face de uma posse, não titulada, pacífica, pública e de boa-fé, já que se encontraria ilidida a presunção de má-fé a que se reporta o artigo 1 260º nº 2 do Código Civil.

     Os requisitos da usucapião a que se reportam os artigos 1 287º ss do Código Civil estariam pois preenchidos. Só que agora somos colocados perante a questão fulcral deste processo: a usucapião poderá sobrelevar normas imperativas, nomeadamente aquelas a que se reporta a proibição do fraccionamento supra-apontada?

     Não está em causa questionar o instituto da prescrição aquisitiva ou usucapião; trata-se de uma forma de aquisição originária de direitos; verificados determinados condicionalismos a lei faz corresponder a dada situação de facto a qualificação jurídica correspondente, mau grado até o vício que afecta a situação do pretendente face a esse bem. Estão aqui em causa interesses ligados à estabilidade e segurança jurídica, não fazendo sentido que perante um longo período de tempo se eternizem situações de incerteza, permitindo-se a justa realização das expectativas criadas à luz de uma prolongada configuração factual. Isto vale a nosso ver inteiramente para o caso a que se reporta o artigo 1 396º ss do Código Civil[3]. O motivo de interesse público que justifica o conhecimento oficioso da caducidade funda-se na indisponibilidade do direito a ela sujeito. Contudo decorrido que seja o aludido prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo obstar à usucapião. Estaríamos assim perante um caso em que não obstante a existência de uma ilegalidade, "o sistema jurídico atendendo a interesses de natureza social e económica que tem por relevantes, admite que certas situações de facto obtenham tutela jurídica e possam dar lugar ao reconhecimento de direitos"[4]

     E no entanto… nem sempre a transacção é viável como meio de terminar conflitos, até porque casos há em que não é isso verdadeiramente que está em causa mas antes tornear verdadeiros óbices legais…

     Efectivamente se a transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões podendo envolver modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido – artigo 1 248º do Código Civil - já o artigo 1 249º estatui que as partes não podem transigir sobre direitos que lhes não é permitido dispor nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos. É o que se passa com o artigo 1376º nº 1 do citado Diploma legal no que ora nos importa considerar; "Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela do terreno". Significa isto que não é possível através de transacção considerar decorrido o prazo de usucapião, já que tal abriria a porta para uma situação de fraude à Lei colocando as autoridades administrativas perante um facto consumado, ao arrepio das normas de direito que regulam o fraccionamento dos prédios; e sem pretender entrar aqui em considerações categóricas quanto à seriedade das partes[5], é desde logo o que se verificaria no caso vertente em que a área dos prédios não chega a perfazer a unidade de cultura, in casu de 2 Ha como acima já referimos. Diferente seria o caso se estivéssemos já perante a declaração de aquisição como facto consumado do direito de propriedade por usucapião de parcelas distintas, mesmo que em violação do dito emparcelamento mas após julgamento formal, atendendo à natureza sanativa daquele instituto[6]. Todavia não é possível transigir sobre a usucapião e nomeadamente os respectivos prazos, sem que se provem por inteiro os elementos integradores do instituto. E compreende-se… não estão aqui em causa apenas direitos disponíveis; a transacção, a admitir-se, permitiria extravasar aquele âmbito, acabando por colidir com interesses públicos de relevo, comprometendo neste caso a política de emparcelamento do território, bem como as normas reguladoras do planeamento e construção civil[7]; e assistir-se-ia a breve trecho à proliferação de acções nos tribunais não com vista à resolução de conflitos - que por vezes é bem palpável não existirem – mas antes a iludir proibições legais, sendo certo que nos termos do disposto no artigo 665º do Código de Processo Civil "Quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o Autor e o Réu se serviram do processo para praticar um acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objectivo anormal prosseguido pelas partes". Mas independentemente da existência de dolo das partes deve o Juiz obstar também a tal finalidade quando está objectivamente em causa a prática de um acto proibido por lei.

     Por outro lado refira-se também que a própria acção de divisão de coisa comum através da usucapião não seria possível com os factos delineados. É que o artigo 1406º do Código Civil estatui que "1. Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente tem direito. 2. O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título".

     Ora vê-se dos termos da transacção que os comproprietários apenas que está a haver uso de uma das parcelas do todo predial por cada um do comproprietários, o que por si só não basta para poder considerar-se estarmos perante uma posse exclusiva à face do nº 2 do citado normativo legal; necessário seria para tanto que se tivesse verificado a "inversão do título da posse"[8]. "Esta, nos termos do artigo 1 265º do Código Civil"   pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse". Neste caso a posse para efeito de usucapião só poderá contar-se a partir da inversão, já que até aí a posse ou uso de cada proprietário aproveita a todos os consortes em termos de composse para efeitos de defesa desta ou do direito real mas não constitui posse exclusiva – cfr. artigos 1 406º, 1 286º e 1 291º do Código Civil enquanto não se verificar a respectiva inversão. É que tem-se exigido rigor na verificação dos requisitos da inversão de posse; haverá que verificar-se uma oposição formal por meios notificativos directos e levada ao conhecimento do outro compossuidor, não bastando meros meios exteriorizadores (declarativos do novo estado de ânimo)[9].

     De concreto temos apenas que se encontra exarado em acta praticamente um acordo de uso das parcelas, o que por si só não afasta a posse comum, já que a posse ou uso de cada comproprietário aproveita a todos os consortes em termos de composse; e os termos da transacção não são de molde a poder afirmar-se que se inverteu a posse e desde quando. De qualquer forma, mesmo que ainda assim se não entenda e possam admitir-se reservas a esta tese no caso vertente - (rigor atenuado quanto à verificação da inversão da posse atento o acordo das partes) - certo é que isto não afasta o principal óbice à procedência dos agravos que é essencialmente, como referimos, a impossibilidade de através mera transacção se poder resolver esta matéria a contento das partes.

     Os AA. invocam ainda em benefício da sua tese o facto já haver caducado de qualquer forma a possibilidade de reagir contra a situação por eles definia em razão do disposto no artigo 1379º do Código Civil e que os AA. convocam em abono da sua tese. Estatui o normativo em análise que " 1. São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, bem como o fraccionamento efectuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos.

2. Têm legitimidade para a acção de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte.

3. A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto ou do termo do prazo referido no nº 1".

     Aqui é evidente a sem razão do agravantes: O prazo de caducidade só poderia começar a contar-se a partir do momento em que houvesse uma homologação da transacção, pois que só a partir desse momento a ilegalidade ingressaria relevantemente na ordem jurídica e poderia ser objecto de anulação, marcando a data da homologação o início do prazo para tanto.

     Nesta conformidade e por via das considerações expendidas conclui-se que não podem os agravos lograr provimento.

Poderá então concluir-se o seguinte:

     1) A transacção perfila-se como uma das formas possíveis de extinção da instância a par da confissão e desistência procurando uma solução de compromisso voltada para uma hipótese em que as partes põem fim ao seu diferendo moldando os seus interesses através de um consenso obtido por meio de concessões e cedências mútuas.

     2) Dentro deste condicionalismo é relativamente ampla a margem de manobra de composição de interesses, permitindo a transacção judicial quer o alargamento objectivo, quer o alargamento subjectivo do pleito. Tanto assim é que se tem entendido que é lícito às partes em litígio porem fim a todas as acções entre si pendentes mediante transacção global lavrada por termo num dos processos.

     3) Verificados certos requisitos mínimos de validade, a transacção poderá operar como que uma substituição da obrigação primitiva por outra de contornos não coincidentes e até mais alargados;

     4) Desde que a transacção não enferme de nulidade – e é desde logo o que dispõe o artigo 1 249º do Código Civil - não pode o juiz recusar-se a homologá-la com fundamento em que as respectivas cláusulas extravasam o objecto da causa.

     5) Contudo a vontade das partes não basta sempre para superar sem mais na transacção certos óbices de natureza legal; é o que se passa com alguns impedimentos dessa índole, que surgem quando se pretende pôr termo à indivisão, de natureza administrativa e urbanística, óbices de cariz público que se impõem na esfera jurídica privada em ordem a garantir o correcto planeamento do território e a boa disciplina na construção civil.

     6) Nos casos a que se reportam os artigos 1 376º e 1 377º do Código Civil não é possível através de transacção considerar decorrido o prazo de usucapião já que tal abriria a porta para uma situação de fraude à Lei colocando as autoridades administrativas perante um facto consumado ao arrepio das normas de direito que regulam o fraccionamento dos prédios.

     7) Diferente seria o caso se estivéssemos já pe­rante a declaração de aquisição como facto consumado do direito de propriedade por usucapião de parcelas distintas, mesmo que em violação do dito emparcelamento mas após julgamento formal, atendendo à natureza sanativa daquele instituto.

     8) O prazo de caducidade para a anulação dos actos de fraccionamento referidos nos artigos 1 376º e 1 377º do Código Civil e previsto no artigo 1 379º nº 3 do mesmo Diploma Legal só começaria in casu a correr a partir do momento em que houvesse uma homologação da transacção, já que só a partir desse momento a ilegalidade ingressaria relevantemente na ordem jurídica e poderia ser objecto de anulação, marcando a data da homologação o início do prazo para tanto.

                           *

     3. DECISÃO.

    

Pelo exposto acorda-se em negar provimento aos agravos confirmando assim o despacho agravado.

     Custas pelos agravantes.

      [1] Lapidarmente cfr. Ac. da Rel. do Porto de 17-6-97 (R. 9621397) in Bol. do Min. da Just., 468, 481.       
      [2] Cfr. as considerações de Manuel de Andrade in Teoria Geral da Relação Jurídica I, pags. 256 ss. Carvalho Fernandes “Teoria Geral do Direito Civil I, 3ª Edição, Universidade Católica 2001 pags. 703; e Pedro Pais de Vasconcelos “Teoria Geral do Direito Civil” Almedina pags.

      [3] Cfr. Acs. do S.T.J. de 27-6-2006 (P. 1471/2006) in Col. de Jur., 2006, II, 133; desta Relação de 28-3-2000 (R. 446/00) Col. de Jur., 2000, II, 31; de 27-5-2003 (R. 1254/2003) in Col. de Jur., 2003, III, 20; da Rel. do Porto de 9-1-1995 (R. 933/94).     

      [4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 27-6-2006 (P. 1471/2006) in Col. de Jur., 2006, II, 133.


[5] Isto mau grado certos indícios nomeadamente a frágil contestação dos RR. que só de forma muito ténue viabiliza um esboço de litígio susceptível de terminar por via de transacção….
[6] Usucapio rerum etiam ex aliis causis concessa interim propter ea quae nostra existimantes possideremus, constituta est ut aliquis finis esset (Neratius L. 5); Bono publico usucapio introducta est (I.D.41.3)
[7] E Manuel de Andrade afirma expressamente: "entendeu a lei que a (…) a transacção não pode ser admitida quando levar a um resultado que as partes não pudessem obter por meio de negócio jurídico abertamente destinado a tal efeito. E está certo. De outro modo poderia obter-se por via indirecta ou oblíqua aquilo que directamente não pode ser alcançado" Lições apud Alberto dos Reis Comentário III, pags 518

[8] Assim tem entendido também a Jurisprudência largamente maioritária: Cfr. Acs STJ 08-11-2007 in SJ20071108035452; de 31-01-2007 in SJ200701310041996; 01-02-2005 in SJ200502010046521; desta Relação de 13-1-2004 (R. 3364/2003) in Col. de Jur., 2004, I, 7. Da RL 17-01-2008 no respectivo site Proc nº 4839/2007-2;  

 

 
[9] Cfr. Orlando de Carvalho in RLJ 3810, pag. 98. No mesmo sentido Manuel Rodrigues "A Posse". Almedina, Coimbra, 3º Edição, pags 232 ss. Pires de Lima e Antunes Varela Ob. e loc. citados, pags. 30 s em anotação ao artigo 1 265º.