Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
437/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: CASO JULGADO
Data do Acordão: 01/30/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 271º E 498º DO CPC
Sumário: 1. É através duma tríplice identidade – de sujeitos, do pedido e da causa de pedir – que se definem os limites e a extensão do caso julgado.

2. Identidade de sujeitos reside no facto de as partes serem as mesmas nas duas acções; identidade que, porém, não é tanto a identidade física, mas antes a identidade jurídica.

3. Por outras palavras, o caso julgado não se forma apenas em relação às pessoas singulares/colectivas que intervieram no processo, mas também, relativamente àquelas que, por sucessão mortis causa ou por transmissão entre vivos, assumiram a posição jurídica de quem foi parte no processo - quer a substituição se tenha operado no decurso da acção, quer se tenha verificado só depois de proferida a sentença - mas nunca em relação àquelas a quem a posição jurídica havia sido transmitida antes da instauração da primeira acção.

4. É que, se a posição jurídica foi transmitida antes da instauração da acção, era já o adquirente e não o transmitente que, à data da instauração da acção, detinha legitimidade para a causa e que, por isso, devia estar “ab initio” como parte em tal causa.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A.... (anteriormente designada B...) instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra C..., pedindo:

- a condenação da Ré a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre a totalidade do prédio urbano descrito sob o n.° 2.197 por o ter adquirido à anterior legítima proprietária e por o ter adquirido por usucapião.

- a impugnação da escritura de justificação outorgada em 30.07.91 pela Ré, com base em falsidade intelectual da declarações nela constantes.

- a nulidade de tal escritura de justificação notarial, considerando que a escritura é simulada ou que as declarações nela constantes foram feitas pela Ré com reserva mental;

- a declaração de nulidade dos registos (sobre o prédio descrito sob o n° 1967 ) lavrados a partir de tal escritura de justificação;

- a inutilização de tal descrição n.º 1967 e das posteriores 3300 a 3313;

Alegou, para tal, que o prédio urbano descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.° 2917 – com a área coberta de 12.610 m2 e área descoberta de 53.530 m2 – se encontra registado a seu favor desde 29.12.1995, por o ter adquirido, por escritura pública celebrada em 27.12.1995, à anterior proprietária, registada como tal, D...; bem como os factos conducentes à aquisição, por usucapião, de tal prédio.

Mais refere que a Ré iniciou junto da CM de Leiria um processo de loteamento do prédio descrito na 2.º CRP de Leiria sob o n.° 1.967 (com a área de 20.220 m2), na sequência do qual foi emitido o alvará de loteamento n° 801/96 (com a consequente desanexação de 14 lotes que deram origem às descrições n.° 3.300 a 3.313); e que a Ré havia apresentado como título de aquisição de tal prédio, objecto de loteamento, uma escritura pública de justificação, de 30/07/1991, em que declarou não ter título formal do prédio – porção de terreno com 20.220 m2 – justificado; após o que solicitou, com base em tal escritura, a inscrição de propriedade a seu favor, levando à abertura da referida descrição n.º 1.967.

Ora, segundo a Autora, o prédio justificado – porção de terreno com 20.220 m2 – a que veio a corresponder a descrição n.º 1.967, faz parte e é uma parcela do prédio descrito sob o n.° 2917, de que a Autora é proprietária.

Efectivamente, ainda segundo a Autora, foram falsas as declarações da Ré constantes da escritura de justificação por não corresponderem à realidade, tendo sido prestadas com o intuito de enganar os destinatários, sendo, por isso, a escritura simulada e as declarações dela constantes feitas com reserva mental.

A Ré contestou, articulado em que, em síntese, impugna a falsidade e simulação que lhe foram atribuídos na outorga da escritura de justificação, de 30/07/1991; em que impugna os factos alegados pela Autora tendentes à usucapião sobre a porção de terreno, com 20.220 m2, a que corresponde o prédio descrito sob o n.º 1.967; e em que alega idênticos factos, mas conducentes à aquisição a seu favor, por usucapião, da porção de terreno, com 20.220 m2, justificada, descrita e registada.

Em concordância com o alegado, deduz os seguintes pedidos reconvencionais:

- de reconhecimento da R. como única dona e possuidora do prédio descrito sob o n.° 2.917 na 2.ª CRP de Leiria (também por verificação da condição resolutiva constante do contrato de compra e venda entre a R. e a Ingridhutte);

- de condenação da A. a entregá-lo à R., livre de pessoas e bens e no estado de conservação em que se encontra, devendo ser cancelado o registo da inscrição a favor da A.;

- de reconhecimento da R. como única dona e possuidora do prédio descrito sob o n.° 1967 na 2 Conservatória do Registo Predial de Leiria, e condenação da A. a abster-se da prática de qualquer acto perturbador da posse ou do direito de propriedade da Ré, ordenando-se a correcção da descrição n.° 2.917, no sentido da área descoberta passar a ser de 33.310 m2;

- de reconhecimento da R. como única dona e possuidora do prédio descrito sob o n.° 1967 na 2 Conservatória do Registo Predial de Leiria, direito de propriedade adquirido por acessão, recebendo da Ré a quantia de 60.660.000$00, correspondente ao valor do prédio antes de transformado pela R., e ordenando-se a rectificação do registo nos termos requeridos supra;

- de condenação da A. no pagamento à R. de uma indemnização pelas benfeitorias realizadas na parcela ou prédio reclamado no montante de 123.090.000$00 ou na quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença, e no mínimo de 20.000.000$00, acrescido de juros de mora.

A Autora replicou, apresentando a sua defesa às excepções e aos pedidos reconvencionais constantes da contestação.

Na réplica e ao abrigo do preceituado no art. 273° do Código de Processo Civil, a A. ampliou ainda a causa de pedir e o pedido, no sentido de a R. ser condenada ao pagamento à A. de uma indemnização pelos prejuízos causados com a sua actuação, na quantia de 100.000.000$00 por cada ano que decorra desde a data da notificação da R. deste articulado até ao trânsito em julgado da sentença.

Foi proferida sentença, que considerou verificada a excepção do caso julgado – em relação e tendo em vista o decidido na acção 116/87 – e que absolveu a Ré da instância.

Inconformada com tal sentença, interpôs a A. recurso de agravo, visando a sua revogação

Termina a sua alegação com as seguintes conclusões que se transcrevem:

A. O tribunal a quo absolveu a Ré da instância por entender que “atenta aposição ocupada pela Autora e o objecto dos presentes autos”, se verifica caso julgado entre a presente acção e a acção 116/87 do 1° Juízo, 2ª secção, do Tribunal Judicial de Lema, intentada em 14 de Julho de 1987 pela C... contra a Ingridhutte.

B. Fê-lo com base em matéria de facto assente manifestamente insuficiente, por não considerar factos essenciais para decidir sobre o preenchimento ou não dos requisitos da excepção do caso julgado (art. 498° do CPC), que foram devidamente alegados e provados por documentos juntos aos autos, tais como: a data da propositura da acção 116/87, os factos alegados pela ora Recorrida, A. na acção 116/87 na sua petição inicial, a oposição da AGV, por ter adquirido o prédio em causa nessa acção, a decisão que declara esta parte ilegítima, os fundamentos da sentença proferida no âmbito da acção 116/87, o registo provisório da acção e a sua caducidade, a coincidência entre o prédio descrito em O) e o prédio descrito em A) que é o mesmo que a parcela reclamada na acção 116/87.

156. Pelo que, antes de mais, dada a insuficiência da matéria assente, tendo sido tais factos alegados pela A e constando dos autos os meios de prova, documentos, suficientes para, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 712°, n.° 1, alínea a), aplicável ex vi art. 749° e no art. 690º-A, todos do CPC, devem ser aditados à matéria fáctica e considerados como assentes os seguintes factos:

(…)

C. Caso assim não se entenda, concluindo-se pela desnecessidade do aditamento dos supra referidos factos, deve o tribunal tomar em consideração, aquando da decisão, todos os documentos acima identificados, nos termos do art. 569°, n.° 3 do CPC.

D. Para além disso, o tribunal a quo, na douta sentença recorrida, ao concluir pela imposição como autoridade de caso julgado da sentença proferida na acção 166/87 aos presentes autos, interpretou e aplicou de forma erróneas as normas contidas nos art. 497°, 498° e 673°, todos do CPC, que regulam os requisitos e alcance da excepção de caso julgado

E. Institui o artigo 498° do CPC que se repete uma causa, verificando-se o caso julgado, quando se “propãe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”, visando-se através desta figura garantir a segurança e certeza jurídicas e o prestígio dos tribunais.

F. No caso dos presentes autos, não se verifica nem a identidade física dos sujeitos, nem tão pouco a identidade do ponto de vista da sua qualidade jurídica, não sendo a Recorrente, por conseguinte e contrariamente ao entendido pelo tribunal a quo, sucessora da Ingridhutte, por não haver identidade da relação litigada.

G. Na acção 116/87, proposta em 14.07.1987, a ali Autora, aqui R., C..., pediu que a Ré, Ingridhutte, fosse condenada a reconhecer o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno de 20.220 m2, alegando o facto de esta não ter cumprido o contrato celebrado entre ambas, ou seja, em causa nesta acção estava “o cumprimento do contrato”, conforme é expressamente reconhecido pela sentença.

H. Uma outra sociedade, a AGV, que adquiriu o direito de propriedade sobre a parcela em causa, no âmbito de uma execução, cuja executada era a Ingridhutte (alínea G), R. nos autos da acção 116/87, requereu a sua intervenção nesta, tendo sido julgada parte ilegítima, por ser “totalmente alheia” à questão dos autos, ‘ o cumprimento do contrato”.

I. Foi por estar em causa ‘cumprimento do contrato” que a Ingridhutte, pese embora não fosse a proprietária da parcela à data da instauração da acção 116/87, não foi considerada parte ilegítima, enquanto a AGV, opoente, que tinha adquirido e registado a seu favor a parcela antes da acção (alínea G e H), foi julgada como parte ilegítima.

J. Pois, a única hipótese em que a lei admite que o transmitente mantenha a legitimidade, apesar de já não ser titular do direito, é a prevista no artigo 271°, n.° 1 do CPC, caso em que a sentença proferida produz efeitos em relação ao adquirente.

K. E mesmo assim, procurando salvaguardar a boa-fé do adquirente, a sentença não produzirá efeitos em relação a este se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção, por assim, desconhecer o carácter litigioso do direito que adquiriu.

L. É este o caso dos presentes autos: o registo provisório da acção 116/87 (em 21.06.1989, provisoriamente por natureza e por dúvidas) é posterior ao registo da aquisição da AGV e caducou antes do registo da aquisição da ARTIVIDRO, que vendeu à A. (alínea M), nunca tendo sido registada a respectiva sentença.

M. Resulta claro do supra exposto que a Ingridhutte transmitiu o direito de propriedade sobre o prédio em causa antes de a aqui R., C... ter intentado à acção 116/87, pelo que tendo a transmissão ocorrido antes da propositura da acção, não tem aplicação o citado artigo 271°, n.° 1 do CPC, ‘porque, nestas situações, o transmitente não tem legitimidade originária para a acção.”.

N. Não tendo a Ingridhutte sido considerada parte ilegítima, só se pode concluir que a relação jurídica da acção 116/87 (a do contrato de compra e venda) é uma relação jurídica diversa daquela que teve como sujeito a adquirente AGV, não sendo esta, bem como as restantes sucessivas adquirentes, sucessora da posição jurídica da Ingridhutte, razão pela qual a sentença da acção 116/87 não produz efeitos quanto a este ou qualquer dos posteriores adquirentes.

O. A AGV e as posteriores adquirentes, incluindo a aqui Recorrente, são terceiros juridicamente interessados, por serem titulares de um direito, próprio, independente e incompatível com o reconhecido na decisão transitada da acção 116/87, que não sofrem a acção reflexa do caso julgado dessa decisão.

P. Excepto se a AGV (e as posteriores adquirentes) tivesse podido intervir na acção 116/87, o que não lhe foi permitido pelo tribunal, pelo que, nas palavras do Prof. Alberto dos Reis “O oponente não foi admitido a intervir; mas a decisão que o afastou deixou intacto o seu direito, que ele pode, portanto fazer valer noutra acção. E se o direito subsiste, isso equivale a dizer que não o obriga, como caso julgado, a sentença proferida na acção em que tentou intervir.”

Q. Ora, não tendo sido posta em causa a legitimidade da Ingridhutte, na acção 116/87 e tendo sido declarada como parte ilegítima, a AGV, posterior adquirente, a sentença proferida no âmbito daquela acção não pode ter eficácia de caso julgado em relação ao adquirente, porque necessariamente recaiu sobre uma relação jurídica diversa daquela em que a adquirente, a AGV — e logo, as posteriores adquirentes – era interessada.

R. Para que se possa determinar o exacto conteúdo da sentença proferida no processo 166/87 (art. 673° do CPC) e consequentemente o alcance do seu caso julgado é fundamental ter presente que o tribunal a quo excluiu expressamente da discussão a transmissão da Ingridhutte a favor da AGV, limitando o seu objecto ao contrato celebrado entre a A. e a R.

S. Excluída essa transmissão na acção 116/87, constata-se que a AGV e as posteriores adquirentes da parcela em causa, nas quais se inclui a Recorrente, eram sujeitos de uma relação independente e incompatível com a das partes no referido processo, nos exactos termos definidos pela sentença.

T. Assim, conclui-se, pela inexistência da identidade dos sujeitos dos presentes autos com os da acção 116/87, pois como refere Teresa Quintela de Brito “não há coincidência entre a qualidade jurídica da transmitente, ante um objecto processual individualizado pela sua alegada titularidade e substantivamente aferido pela sentença de mérito, e a qualidade jurídica da adquirente como titular de uma situação jurídica diversa daquela que foi objecto da acção anterior.

U. Também carece de qualquer fundamento o entendimento do tribunal a quo de que a sentença da acção 166/87 se impõe como autoridade de caso julgado, por considerar que o objecto de tal decisão constitui uma questão prejudicial na presente acção, pois, a Recorrente é titular de um direito próprio, independente e incompatível com o reconhecido na sentença da acção 116/87.

V. O objecto da acção identifica-se através do pedido e da causa de pedir, sendo o pedido o efeito jurídico que com a acção se pretende obter e a causa de pedir o título (acto ou facto jurídico) em que se funda o direito do autor.

W. Na presente acção — bem como na acção 166/87 - o reconhecimento do direito de propriedade não constitui a causa de pedir mas o efeito jurídico que se pretende obter.

X. E se é verdade que em ambas as acções se pretende ver reconhecido o direito de propriedade sobre a parcela de terreno de 20.220 m2, é inegável que essa pretensão se funda em diferentes causas de pedir: na acção 166/87, a C... alegou, para fundamentar o direito de propriedade sobre a dita parcela, o contrato celebrado com a Ingridhutte e a condição dele prevista de a Junta reaver a parcela de terreno não ocupada por aquela.

Y. Enquanto, na presente acção, a Recorrente alegou ter adquirido o terreno descrito sob o n° 2917, no qual se inclui a parcela em discussão, à anterior legítima proprietária registada enquanto tal, conforme trato sucessivo constante do registo predial, por força da presunção derivada do registo a seu favor e alegou ainda ter adquirido originariamente o imóvel por usucapião.

Z. Urna vez que a condição prevista no contrato celebrado entre a C... e a Ingridhutte que constitui a causa de pedir da acção 116/87 não consta do registo da aquisição a favor da Ingridhutte, a Recorrente e as anteriores proprietárias desconheciam tal condição e desconheciam a acção intentada pela ora Recorrida, uma vez que, por razões imputáveis à Recorrida, o registo provisório da acção caducou e a sentença proferida não foi registada.

AA. Pelo que a Recorrente e as anteriores proprietárias não podiam conhecer a natureza litigiosa do direito sobre o imóvel que adquiriram, mas antes confiaram que a situação constante do registo era fidedigna.

BB. Resulta do que atrás ficou exposto que, quanto ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade, não existe identidade das causas de pedir, pois, nas duas acções, as respectivas autoras fundaram a sua pretensão em diferentes factos jurídicos, logo, são diversas as causas de pedir, são diversos os objectos das duas acções.

CC. Contudo, na douta sentença recorrida, o tribunal a quo confunde os dois conceitos, como se a identidade do objecto das acções se aferisse tão só pela coincidência do pedido, sendo irrelevante para o efeito a relação material de onde a Autora faz derivar o correspondente direito, ou seja, a causa de pedir.

DD. O entendimento do tribunal a quo é contrário à teoria da substanciação, aceite pela doutrina e jurisprudência, pois, conforme refere Manuel de Andrade, relativamente ao direito de propriedade: “segundo a nossa lei, mesmo quando o direito seja deite tipo tem de declarar-se qual o acto ou facto jurídico donde provenha, e a sentença apenas tomará em conta tal acto ou facto, só nessa medida lhe correspondendo a força ou autoridade de caso julgado. artigos 193°, n.° 2 al. a) e 498° n.° 4.

EE. O tribunal a quo ao estender, na douta sentença recorrida, a eficácia de uma sentença a terceiros que não intervieram no processo, que não foram ouvidos e logo não alegaram as suas razões, e a relações materiais estranhas àquela que se discutiu em processo anterior, atenta contra os valores subjacentes ao caso julgado, pois a extensão da eficácia da sentença para além do que ela própria definiu (contrário, ao disposto no art. 673° do CPC) afronta a segurança e certeza jurídicas, não fazendo jus ao prestígio dos tribunais.

FF. Por fim, refira-se ainda que o entendimento preconizado pelo tribunal recorrido viola os princípios e as regras que regulam o registo predial, ao atribuir eficácia erga omnes a factos sujeitos ao registo, como a acção 116/87 (art. 3°, n.° 1, ai. a) do CRP), sem que mesmos estejam definitivamente registados (cfr. art. 5°, n.° 1 do CRP), violando ainda a regra da prioridade do registo e do trato sucessivo prevista no art. 6°, n.° 1 do mesmo diploma legal.

GG. Pois, atendendo à sequência dos registos referidos nas Alíneas A, E a L) e ao facto de o registo da acção 116/87 ter caducado (alíneas AA e BB), segundo a regra do trato sucessivo, o direito de propriedade da A. devidamente registado prevalece sobre o direito de propriedade da R. reconhecido pela douta sentença da acção 116/87 que não é oponível à A., por a R. não ter registado a referida decisão final.

HH. Para além disso, o tribunal a quo, ao concluir pela autoridade caso de julgado da sentença proferida na acção 116/87 nos presentes autos, está a impor à Recorrente, que não foi parte do contrato cujo cumprimento constitui a causa de pedir daquela acção, os efeitos desse contrato, em clara violação do disposto no art. 406° do Código Civil, que estatui a eficácia inter partes dos contratos.

II. Acresce que, a presente acção não se esgota no pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela de terreno e nas causas de pedir enunciadas supra — aquisição derivada à anterior legítima proprietária e aquisição originária por usucapião.

JJ. A A., ora Recorrente, pediu ainda que fosse julgada procedente a impugnação da escritura de justificação outorgada pela C... em 30.07.91, requerendo, consequentemente, a inutilização das descrições e cancelamentos dos registos a relativos à parcela em causa (prédios 1967 e 3300 a 3313), a favor da R., Recorrida.

KK. Para o efeito, a Recorrente alegou, como causa de pedir, que são falsas as declarações constantes da dita escritura relativamente às circunstâncias que baseiam a aquisição originária e que foram feitas com o intuito de enganar os destinatários, sendo, por isso, a escritura simulada ou as declarações dela constantes feitas com reserva mental.

LL. Independentemente da prova que se venha a fazer dos factos alegados quanto aos factos que constituem a causa de pedir dos referidos pedidos, da consequente procedência ou não dos mesmos, sempre se dirá que entre os pedidos de declaração da nulidade da escritura e de cancelamentos dos respectivos registos e o pedido formulado na acção 166/87, não existe qualquer identidade, ainda que remota, como também não existe identidade das causas de pedir que lhe estão subjacentes.

A agravada ofereceu contra-alegações, em que concluiu sustentando, em síntese, pela verificação da excepção do caso julgado, devendo a sentença ser mantida na íntegra.

Foram obtidos os vistos legais, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

São os seguintes os Factos Provados com relevo para a apreciação e decisão do Caso Julgado1:

A) Por escritura pública – junta de fls. 134 a 139 destes autos – outorgada no dia 4 de Agosto de 1972, na Secretaria Notarial de Leiria, a C... declarou ser dona e possuidora do seguinte imóvel:

“ (…) pinhal e mato no sítio denominado Charneca do Bailadouro, a confrontar do Norte com José da Ponte, Eduardo Figueiredo e outros, do Sul com Júlia de Sousa Oliveira, António Pereira Timóteo e outros, do Nascente Manuel António Neves e outros e do Poente com Matas Nacionais, atravessado pela estrada nacional, estrada nacional e por caminho público e inscrito na matriz predial rústica com o artigo 2.286.

(...) Que resolveu pôr à venda, em hasta pública, a seguinte fracção do descrito prédio, do mesmo desanexada e delimitada na forma que refere:

Parcela de terreno com a área de 66.140 m2, destinada à construção de uma fábrica de vidros, a confrontar do Norte com estrada nacional, do Sul com caminho público, do Nascente com estrada municipal e do Poente com matas nacionais.

(...) A deliberação foi tomada em 21 de Junho do corrente ano e executada em 19 de Julho do corrente ano, onde a descrita parcela foi adjudicada à representada do segundo outorgante (E..., ), nas condições constantes daquela primeira deliberação, aprovada pelo Presidente da Câmara Municipal de Leiria.

(...) Assim vende à representada do segundo outorgante, pelo preço de 661.000$00 a descrita parcela do mencionado prédio.

O preço será pago em 10 prestações anuais e iguais de 66.100$00, tendo recebido neste acto da compradora a 1.ª prestação.

(…)”

O segundo outorgante declarou:

“que aceita para a sua representada a presente venda”.

B) Tendo em vista e na dependência da inscrição que na alínea seguinte se refere, foi, em 01/07/1976, aberta2 na Conservatória do Registo Predial de Leiria a seguinte DESCRIÇÃO a que foi dado o N.º 80.447:

“prédio rústico, composto de uma parcela de terreno com a área de 66.140 m2, destinado a construção de uma fábrica de vidros, no sítio da Charneca do Bailadouro, limite de Touria, freguesia de Pousos, que confronta do norte com a estada nacional do sul com caminho público e do poente com Matas Nacionais. Fazia parte do prédio inscrito na matriz sob o art. 2286.”

C) Na mesma data – 01/07/1976 – foi inscrita3, a favor da C..., a aquisição do prédio identificado na DESCRIÇÃO N.º 80.447, indicando-se como causa a usucapião.

D) Ainda na mesma data – 01/07/1976 – foi inscrita4, a favor da E..., por compra à C..., a aquisição do prédio identificado na DESCRIÇÃO N.º 80.447, (facto, registado, que foi comprovado pela escritura referida em A) dos factos provados).

E) Em 02/01/1987, foi inscrita5, a favor da António Gomes Vieira & Filhos Limitada, por arrematação em hasta pública, na execução em que era executada E..., a aquisição do prédio identificado na DESCRIÇÃO N.º 80.447.

F) Por escritura pública outorgada no dia 4 de Junho de 1987, na Secretaria Notarial de Leiria6, António Gomes Vieira & Filhos Limitada declarou vender a Faiart - Fábrica de Louças Regionais Portuguesas, Lda, que declarou comprar, pelo preço de 66.000.000$00, o prédio identificado na DESCRIÇÃO N.º 80.447.

G) Em 07/07/1987, foi inscrita7, a favor da Faiart - Fábrica de Louças Regionais Portuguesas, Lda, por compra António Gomes Vieira & Filhos Limitada, a aquisição do prédio identificado na DESCRIÇÃO N.º 80.447 (facto, registado, que foi comprovado pela escritura referida na alínea anterior).

H) Por escritura de compra e venda outorgada no dia 14 de Dezembro de 19888, no Cartório Notarial da Batalha, Faiart - Fábrica de Louças Regionais Portuguesas, Limitada, declarou vender, pelo preço de 65.000.000$00, a Artividro - Arte em Vidro Limitada, que declarou comprar, o prédio identificado na DESCRIÇÃO N.º 80.447.

I) Em 18/01/1990, foi inscrita9, a favor da Artividro - Arte em Vidro Limitada, por compra a Faiart - Fábrica de Louças Regionais Portuguesas, Limitada, a aquisição do prédio identificado na DESCRIÇÃO N.º 80.447 (facto, registado, que foi comprovado pela escritura referida na alínea anterior).

J) Por escritura pública outorgada no dia 27 de Dezembro de 1995 no 7.º Cartório Notarial do Porto10, Artividro - Arte em Vidro Limitada, declarou vender, pelo preço de 550.000.000$00, à aqui Autora – B..., que declarou comprar, o prédio identificado na DESCRIÇÃO N.º 80.447.

L) Em 29/12/1995, foi inscrita11, a favor da aqui Autora – B..., por compra a Artividro - Arte em Vidro Limitada, a aquisição do prédio identificado na DESCRIÇÃO N.º 80.447 (facto, registado, que foi comprovado pela escritura referida na alínea anterior).

M) Havia entretanto sido averbado12 à DESCRIÇÃO N.º 80.447 o seguinte:

Em Julho de 1976, a construção de um conjunto fabril, destinando a fábrica de vidros, composto por vários pavilhões, com a área coberta de 12.610 m2;

Em Dezembro de 1976, a sua conclusão; a omissão do prédio na matriz; e o ter sido apresentada declaração para inscrição na matriz.

Em Setembro de 1978, o ter sido o prédio inscrito na matriz sob o art. 1483.º;

Em 02/01/1987, o ter passado, por actualização, o prédio descrito a prédio urbano com a superfície coberta de 12.610 m2 e o logradouro de 53.530 m2.

N) Em 10/08/1995, à DESCRIÇÃO em livro N.º 80.477 passou a corresponder a FICHA N.º 2.917 e, em face dos averbamentos referidos na alínea anterior, a identificação do prédio 80.447/2.917 passou a ser a seguinte:

Prédio urbano, sito em Charneca do Bailadouro, Touria, com a área coberta de 12.610 M2 e descoberta de 53.530 M2, inscrito na matriz sob o n.º 1.483 composto por “conjunto fabril, destinado a fábrica de vidros, composto dos seguintes pavilhões: um pavilhão de betão armado com área de 8600m2, destinado a lapidação, roça, composição, empacotamento, expedição e armazém; um pavilhão de betão armado com a área de 600m2, destinado a serralharia, electricidade, posto de transformação e grupo de emergência; outro pavilhão de betão armado com a área de 1 800m2 com dois fornos de vidro; 2 pavilhões de betão armado com a área de 300m2, cada, destinado a arcas de recozimento e escolha, 2 edifícios de 1 piso de betão pré-fabricado com as áreas de 950m2, onde estão instalados os serviços administrativos, sanitários e refeitório e de 60m2, onde está instalada a portaria e recepção, tudo devidamente vedado, a confrontar do Norte com estrada nacional, do Sul com caminho público, do Nascente com estrada municipal e do Poente com Matas Nacionais”.

O) Correu termos no Tribunal da Comarca de Leiria, sob o n.° 116/87 da 2 Secção, 1° Juízo, Acção Sumária13, instaurada em 14.07.1987, pela aqui R. – C... – contra a E..., em que aquela pedia a condenação da R. a:

a) Reconhecer o direito da A. à parcela não ocupada pela R., conforme determina as condições de adjudicação e venda;

b) A descontar na restituição de parte do preço, devida pela A., as anuidades não pagas;

c) Que a área do terreno constante da escritura pública de 66.140 m2 seja reduzida para 45.920 M2.

P) Na PI da acção a que se refere a alínea anterior, a C... alegou e juntou aos referidos autos o contrato de 4.08.1972, celebrado por escritura pública no 1° Cartório da Secretaria Notarial de Leiria, pelo qual vendeu à Ingridhute terreno em causa de 66.140m2, pelo preço de 661.000$00, a pagar em 10 prestações e submeteu a venda às condições de adjudicação da deliberação da Junta de Freguesia de 21 de Junho de 1972.

Q) Designadamente, à condição n.° 7, que a seguir se transcreve:

“Concluídas as obras referidas na condição 1.ª ou decorrido o prazo de 12 meses sem que tais obras estejam acabadas, todo o terreno não ocupado reverterá para a Junta de Freguesia, restituindo a importância que recebera por terreno não utilizado.”

R) Em tal acção, foi ainda alegado pela A. – C... – que a parcela de terreno reclamada não fora ocupada pela Ingridhute e encontrava-se no mesmo estado em que se encontrava em 1972 e nela crescia mato e pinheiros, tendo concluído, que esta não tinha cumprido as condições constantes do contrato de compra e venda referido na alínea A), reclamando o direito de reaver para si a parcela de terreno não ocupada pela Ingridhute.

S) Em tal acção foi a R. Ingridhute citada editalmente, não tendo sido apresentada qualquer contestação.

T) Em 20.01.1988, a sociedade António Gomes Vieira e Filhos, Lda. apresentou requerimento14 na acção identificada em R) que foi considerado como constituindo “oposição nos termos do art. 342.º do CPC”15; requerimento em que invoca ter adquirido o prédio em causa por arrematação em hasta pública promovida pela Fazenda Nacional contra a R. Ingridhutte.

U) Requerimento a que a ali A. – C... - respondeu16, mantendo o alegado na PI da acção e acrescentando, entre outras coisas, o seguinte:

“A requerente, ao adquirir tal prédio, adquiriu-o com os direitos e obrigações que sobre o mesmo prédio impendiam”;

“Consolidando-se, como se consolidou, na esfera da A. o direito de reaver o terreno não ocupado a partir de 1984, a aquisição feita pela requerente, confinar-se-á tão somente àquele que foi efectivamente ocupado pela R. no prazo referido”;

“Era apenas esse que poderia ser transmitido”;

“Pelo que a aquisição que a requerente invoca em nada pode contrariar a pretensão da A. tal como a configura na PI”.

V) O requerimento da AGV, a que se alude na alínea T), mereceu o despacho de 13/11/198917, em que se “julgou a oponente (AGV) parte legítima” e se ordenou que a Acção 116/87 prosseguisse sem a sua intervenção.

X) Sustentou-se no referido despacho que, a “A. não pede a restituição de qualquer parcela de terreno, o que poderia ter a sua repercussão na oponente, mas apenas se condene a R. a reconhecer o seu direito a uma parcela de terreno não ocupada”; acrescentando-se que “a A. pede, em síntese, o cumprimento do contrato. A esta questão é a opoente totalmente alheia, carecendo de interesse em contradizer”.

Z) Em tal Acção 116/87 veio a ser proferida sentença18 em 09.05.1990, transitada em julgado, tendo a ali R. sido condenada a:

“Reconhecer o direito da autora à parcela de 20.220 m2 que não ocupou;

A descontar na restituição de parte do preço devida pela autora as anuidades não pagas (264.400.00)

No mais, julgo a acção improcedente.”

AA) Sentença, em cuja fundamentação se escreveu o seguinte:

“ nesta sede trata-se de fazer cumprir o contratado entre a A. e a R., que a isso são obrigados, face ao disposto no art. 406° do C. Civil: o contrato deve ser pontualmente cumprido, ou seja, em todos os seus pontos, designadamente quanto à área vendida e restituição do preço... Porém, entendo não proceder o pedido de alteração da área constante da escritura. É que esta é válida tal como se encontra redigida, visto abranger a hipótese dos autos. Na sua essência traduz ela a venda do terreno que a Ré efectivamente ocuparia. Ressalva-se no seu teor a não ocupação integral do terreno, como veio a acontecer. Assente pois que a Ré não ocupou 20.220 m2 nem pagou 264.400$00 que devia, conclui-se que a situação se acha toda ela prevista na escritura em causa.”

BB) A C... efectuou o registo19 de tal Acção 116/87, relativamente ao prédio n.° 80.447, em 21.06.1989, tendo este ficado provisório, também por dúvidas;

CC) Registo que foi declarado caducado20 em 18.01.1990.

DD) A sentença referida em Z) nunca foi registada.

EE) Por escritura pública de justificação notarial outorgada no dia 31 de Julho de 1991, na Secretaria Notarial de Leiria21, a aqui R. – C... – declarou ser possuidora do seguinte imóvel:

“terreno de pinhal, com a área de 20.220 m2, sito em Touria, freguesia de Pousos, concelho de Leiria, a confrontar do norte com Fabrica de Vidros Ingridute do sul com Estrada Municipal, do Poente com Rua do Bailadouro e do Nascente com Estrada Municipal, não descrito no Registo Predial e inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia em nome da possuidora sob o artigo número 5.137.”

FF) Em tal escritura foi declarado pela R. que não tem título formal de aquisição do referido imóvel.

GG) Na sequência da escritura referida em - e tendo em vista e na dependência da inscrição que na alínea seguinte se refere – foi, em 04/12/1992, aberta na Conservatória do Registo Predial de Leiria a seguinte DESCRIÇÃO22 com o N.º 1.967:

“Rústico, situado em Touria, com a área total de 22.200 M2, inscrito na matriz sob o n.º 5.137, com a seguinte composição: “Terreno de pinhal – Norte, fábrica de vidros Ingridute; Sul e Nascente, Estrada Municipal; Poente, Rua do Bailadouro”

HH) Na mesma data – 04/12/1992 – foi inscrita23, a favor da C..., a aquisição do prédio identificado na DESCRIÇÃO N.º 1.967, indicando-se como causa a usucapião.

II) À DESCRIÇÃO n° 1.967 foi, em 26/06/1996, averbada24 a emissão do alvará de loteamento n.º 801/96, que autorizou a constituição de 14 lotes de terreno.

JJ) Da DESCRIÇÃO n.º 1.967 vieram a ser desanexados 14 lotes a que correspondem as descrições 3.300 a 3.313.

LL) Lotes, assim descritos, que se encontram ainda registados em nome da aqui R. – C....

MM) A parcela de terreno identificada/configurada na DESCRIÇÃO n.º 1.967 corresponde a parte do terreno identificado/configurado na DESCRIÇÃO n.º 80447.

NN) A parcela de terreno em discussão na acção 116/87, referida na alínea O) é a parcela de terreno identificada/configurada na DESCRIÇÃO n.º 1.967.

*

III – Fundamentação de Direito

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da agravante (art. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC), passa pela análise do caso julgado, pela análise dos seus limites objectivos e subjectivos.

Um dos efeitos da sentença – porventura, o mais importante – é o caso julgado; que ocorre quando a decisão contida na sentença se torna imodificável.

Visa-se com tal efeito, de caso julgado, garantir aos particulares o mínimo de certeza do direito ou de segurança jurídica indispensável à vida de relação.

Para tal, funcionando como excepção – a “excepção de caso julgado” – não permite a proposição de nova acção destinada a apreciar a questão solucionada pela decisão transitada em julgado.

Assim, o que essencialmente se exige, em nome do caso julgado, é que os tribunais respeitem ou acatem a decisão, não julgando a questão de novo; garante-se, portanto, a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente e a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica.

Para tanto, para sabermos quando uma decisão transitada em julgado obsta à apreciação duma nova acção, importa conhecer e determinar os limites do caso julgado.

Questão cuja resposta se encontra no art. 498.º, n.º 1, do CPC, segundo o qual é através duma tríplice identidade – de sujeitos, do pedido e da causa de pedir – que se definem os limites e a extensão do caso julgado.

Identidade de sujeitos que reside no facto de as partes serem as mesmas nas duas acções; identidade que, porém, não é tanto a simples identidade física, mas antes a identidade jurídica – art. 498.º, n.º 2, do CPC.

Por outras palavras, o caso julgado não se forma apenas em relação às pessoas singulares/colectivas que intervieram no processo, mas também relativamente àquelas que, por sucessão mortis causa ou por transmissão entre vivos, assumiram a posição jurídica de quem foi parte no processo, quer a substituição se tenha operado no decurso da acção quer se tenha verificado só depois de proferida a sentença.

Identidade da causa de pedir que existe quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, identidade que tem de ser procurada não relativamente às demandas formuladas mas na questão fundamental levantada nas duas acções.

Assim, tendo a nossa lei (art. 498º, 4, do CPC) adoptado a chamada teoria da substanciação, que exige sempre a indicação do título ou facto jurídico em que se baseia o direito do autor, a causa de pedir, numa acção real, é o facto jurídico de que deriva o direito invocado.

Identidade do pedido que ocorre quando for o mesmo o efeito jurídico pretendido.

Dito isto, importa referir, em jeito de síntese conclusiva, que a ordem pela qual a lei enumera as 3 identidades caracterizadoras do caso julgado mostra que, havendo identidade de sujeitos, é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado.

É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado

O que significa, a outro modo, que a força do caso julgado não se estende aos fundamentos da sentença; apenas cobre a resposta do tribunal à pretensão do autor ou do réu – concretizada no pedido ou na reconvenção – limitada através da respectiva causa de pedir.

Importando, porém, precisar e enfatizar que a eficácia do caso julgado já funcionará para não permitir, ao R. vencido, a alegação, em nova acção, de quaisquer factos não invocados na acção anterior, mas verificados antes do encerramento da discussão, para contrariar a decisão contida na sentença.

Efectivamente, tendo reconhecido, no todo ou em parte, o direito do autor, a sentença preclude todos os meios de defesa do réu, no pleno desenvolvimento do pensamento esboçado no art. 489.º, n.º 125.

Efectuadas tais considerações genéricas, revertendo ao caso dos autos, diremos, antecipando desde já a conclusão, que não se verifica, manifestamente, a excepção do caso julgado.

Antes, porém, uma breve “história” dos factos mais relevantes:

A aqui agravada – C... – vendeu, em 4/08/72, à E... uma parcela de terreno com a área de 66.140 M2; parcela de terreno essa que veio a constituir a descrição n.º 80.477.

Em 14/07/87, intentou acção contra a E... tendo em vista reaver 20.220 m2 (de tais 66.140 M2); acção que foi, no essencial, julgada procedente, por sentença de 09/05/90.

Entretanto, a referida parcela de terreno de 66.140 m2 (descrição n.º 80.477 – hoje, ficha n.º 2.917) foi sucessivamente transmitida; a 1.ª vez, em Janeiro de 1987, para a António Gomes Vieira & Filhos Limitada; a 4.ª e última vez, em 27/12/1995, para a aqui agravante.

Ao mesmo tempo, a aqui agravada – C... – outorgou, em 31/07/1991, uma escritura de justificação duma parcela de terreno com 20.220 m2; após o que veio a obter, para tais 20.220 m2, a descrição n.º 1.967

Os 20.220 M2 de terreno que estavam em discussão na AO 116/87 são os mesmos 20.220 M2 que passaram a constituir a descrição n.º 1.967.

Os 20.220 m2 que passaram a constituir a descrição n.º 1.967 correspondem a parte do terreno identificado/configurado na descrição n.º 80.447 – hoje, ficha n.º 2.917.

Dito isto, analisemos os elementos que definem a extensão do Caso Julgado.

Quanto à identidade de sujeitos:

A questão/excepção do caso julgado, importa relembrá-lo, foi colocada e suscitada em relação à AS 116/87 (melhor identificada na alínea O) dos factos provados), instaurada em 14.07.1987, em que foi Autora a aqui agravada C... e em que foi Ré a E...

Escreveu-se, a propósito da identidade subjectiva, na sentença agravada que, “sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, não podemos deixar de entender que a autora ocupa actualmente a posição anteriormente pela sociedade E...”

Acrescentando-se, mais à frente, que “na acção que correu termos sob o n° 116/87, em que eram partes a aqui ré e E..., discutiu-se o direito de propriedade sobre uma determinada área do prédio em questão”; e que “tendo a autora adquirido esse prédio, podemos dizer que, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, ocupa a mesma posição que a referida Ingrigutte Kurt Wokan, Fábrica de Vidros S.A.R.L, pelo que concluímos que existe identidade de sujeitos relativamente à acção 116/87.”

A propósito da identidade de sujeitos, ficou já dito que, mais do que a simples identidade física, “conta” a identidade jurídica; e, nessa linha, acrescentou-se que o caso julgado não se forma apenas em relação às pessoas singulares/colectivas que intervieram no processo, mas também relativamente àquelas que, por sucessão mortis causa ou por transmissão entre vivos, assumiram a posição jurídica de quem foi parte no processo.

Neste contexto, “descendendo” a posição jurídica da aqui agravante dum contrato de compra e venda celebrado entre os sujeitos que foram partes, como Autora e Ré, da referida acção 116/87, contrato de compra e venda que está na base/génese de tal acção 116/87, parece, à primeira vista, irrepreensível o raciocínio vertido na sentença agravada.

Não é, porém, assim.

Quando se diz que mais do que a simples identidade física, “conta” a identidade jurídica, está-se a partir do princípio e a pressupor que a 1.ª acção – cuja decisão, contida na sentença, se invoca como caso julgado – foi intentada e correu entre os sujeitos que naquele momento (em que a acção foi intentada e correu) eram os sujeitos da relação material controvertida.

Quando se diz que há identidade subjectiva em relação àquelas que, por transmissão entre vivos, assumiram a posição jurídica de quem foi parte no processo, está-se a pensar naqueles a quem, após o desfecho da 1.ª acção, veio a ser transmitida a posição jurídica de quem foi parte no processo; mas não, evidentemente, naqueles a quem a posição jurídica havia sido transmitida antes da instauração da 1.ª acção.

No fundo, uma tal transmissão – ocorrida após o desfecho da 1.ª acção – está subordinada ao princípio do “nemo plus iuris”, o que significa, implicitamente, que o decisão contida na sentença se incorpora e faz parte da translação operada.

De tal maneira assim é que, para uma situação intermédia – estamos, evidentemente, a referir-nos àquelas hipóteses em que a transmissão não ocorre nem antes da instauração da 1.ª acção nem depois da desfecho/sentença da 1.ª acção; mas durante o decurso da 1.º acção – o legislador se viu na necessidade de estabelecer uma regra própria.

Para tais hipóteses, prevê e admite o art. 271.º do CPC – em excepção à regra da eficácia relativa às partes do caso julgado – a legitimidade do transmitente que “continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.”

Porém, logo a seguir, na 2.ª parte do n.º 3, estabelece-se uma excepção à excepção, ao dizer-se que a sentença não produz efeitos em relação ao adquirente (no caso, previsto, de transmissão no decurso da acção) “no caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da acção”

É que – este é o ponto – se a posição jurídica26 foi transmitida antes da instauração da acção, era já o adquirente e não o transmitente que, à data da instauração da acção, detinha legitimidade para a causa e que, por isso, devia estar “ab initio” como parte em tal causa.

Se não esteve “ab initio” e se nunca foi chamado a intervir, mal se compreenderia que, com recurso à ideia da identidade jurídica, se pudesse concluir pela identidade de sujeitos.

É que, repete-se, após a instauração da 1.ª acção, não houve qualquer transmissão de posição jurídica por parte da ali Ré – a Ingrigutte Kurt Wokan, Fábrica de Vidros S.A.R.L – a favor da aqui agravante; pelo que, nesta linha de raciocínio, não “descendendo” a posição jurídica da aqui agravante de transmissão feita pela ali R. após a instauração da 1.ª acção, falha o 1.º elemento – identidade de sujeitos – que define e delimita a extensão do caso julgado.

De facto, alinhando o que os factos retratam, temos:

Em 14/07/87, foi instaurada a 1.ª acção (116/87).

Porém, desde 02/01/87, encontrava-se inscrita a favor da António Gomes Vieira & Filhos Limitada – em virtude de arrematação em hasta pública, na execução em que era executada E... – a aquisição do prédio objecto do contrato que esta na base da acção 116/87.

Mais, em 4/06/87 – isto é, ainda antes da instauração da acção 116/87 – a António Gomes Vieira & Filhos Limitada havia transmitido tal prédio à Faiart - Fábrica de Louças Regionais Portuguesas, Lda; o que foi levado ao registo em 07/07/87, isto é, ainda em data anterior à instauração da acção.

Assim sendo, perante tais factos, não se pode dizer, repete-se, que, para efeitos de definir a extensão do caso julgado, a aqui agravante ocupe a posição jurídica da Ré – E... – na primeira acção, uma vez que esta, após 14/07/87, nada lhe transmitiu.

Mas, mesmo que tal transmissão27 tivesse ocorrida após a instauração da acção – designadamente, na pendência da acção – ainda assim a sentença não produziria efeitos em relação à aqui agravante; agora, por força do citado art. 271.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPC.

É que a acção 116/87 – respeitante a facto jurídico susceptível de determinar a modificação dum direito de propriedade – não foi registada (como o impunham o art. 2.º, n.º 1, a) e 3.º do CRP) antes das transmissões.

Como também resulta dos factos provados, a acção só foi registada em 21/06/1989 e, mesmo assim, foi o registo efectuado provisório, também por dúvidas (por o bem já estar inscrito a favor doutra pessoa que não a Ré da acção – cfr. art. 9.º, n.º 1, do CRP), tendo caducado ao fim de 6 meses (cfr. art. 11.º, n.º 3, do CRP)28.

Quanto à identidade de pedidos e de causa de pedir:

É um pouco ocioso, reconhecemo-lo, proceder à análise de tais elementos delimitadores da extensão do caso julgado, uma vez que, seja qual for a conclusão a que aqui se chegue, sempre a conclusão final será, como vimos de explicar, da não verificação da excepção do caso julgado.

Em todo o caso, sempre valerá a pena referir o seguinte:

Assiste inteira razão à agravante quando chama a atenção para o facto da acção – no binómio pedido/causa de pedir – não se restringir a uma acção de reivindicação; numa 2.ª parte, chamemos-lhe assim, a agravante aduz factos tendo em vista impugnar a justificação notarial efectuada pela agravada e, a final, formula os pedidos consequentes e decorrentes da impugnação invocada.

Quanto a esta parte da acção – de simples apreciação negativa – não existe a mais leve identidade, quer quanto ao pedido quer quanto à causa de pedir, com a acção 116/87.

A questão da possível identidade de pedido e de causa de pedir circunscreve-se, como é evidente, em relação à parte reivindicatória da acção.

Nesta parte, há aspectos em que há identidade de pedido e de causa de pedir e outros em que tal identidade não ocorre.

Nas considerações gerais, supra efectuadas, dissemos que a eficácia do caso julgado funciona para não permitir, ao R. vencido, a alegação, em nova acção, de quaisquer factos não invocados na acção anterior, mas verificados antes do encerramento da discussão, para contrariar a decisão contida na sentença.

Significa isto que os meios de defesa porventura omitidos numa 1.ª acção ficam também cobertos pela eficácia do caso julgado, não podendo ser invocados numa 2.ª acção.

De certo modo, é isto que, em parte, ocorre nesta acção (mais exactamente, na parte em que na mesma se reivindica todo o prédio correspondente à descrição 80.447/2.197, onde se incluem os 20.220 m2 que correspondem à descrição 1.967).

Na 1.ª acção, a C... alegou – o que provou e serviu de fundamento à sentença favorável que obteve – que a parcela de terreno reclamada (20.220 m2) não fora ocupada pela Ingridhute; que se encontrava no mesmo estado em que se encontrava em 1972 e nela crescia mato e pinheiros, tendo concluído, que esta não tinha cumprido as condições constantes do contrato de compra e venda.

Nesta 2.ª acção, tudo isto voltará a ser discutido.

A agravante impugnou antecipadamente os fundamentos – causa de pedir – da 1.ª acção e a agravada29 voltou a alegar o que na 1.ª acção havia alegado, “preparando-se” para, agora contra a agravante, demonstrar a mesma causa de pedir e obter o mesmo efeito conseguido na 1.ª acção contra E....

Ora, em toda a discussão respeitante aos fundamentos da 1.ª acção e aos meios de defesa verificados antes do encerramento da discussão existe identidade de pedido e de causa de pedir; porém – salienta-se, mais uma vez, para que o que se está a dizer não gere equívocos – nem mesmo em tais aspectos, em que há identidade, existe e ocorre qualquer limitação na discussão, uma vez que, repete-se, não se verifica a excepção do caso julgado, por, como já explicámos, falhar o elemento da identidade subjectiva.

Ao invés, o que ocorreu após o encerramento da discussão na AS 116/87, jamais estaria coberto – mesmo havendo identidade subjectiva – pela eficácia do caso julgado.

Neste contexto – se houvesse, o que não é o caso, identidade subjectiva – estaríamos colocados perante uma questão, delicada, consistente em saber se a alegação dos factos conducentes à aquisição do prédio (mais exactamente, dos 20.220 m2) por usucapião estava temporalmente condicionada e circunscrita; isto é, estávamos colocados perante a questão de saber se tal alegação só valia – só estava liberta do “jugo” do caso julgado – e podia ser aproveitada em relação a momentos temporais posteriores ao encerramento da discussão na AS 116/87.

Questão cujo conhecimento seria prudente relegar para final; e que, repete-se pela última vez, no caso se não coloca, uma vez que as partes vão poder aqui discutir em toda a sua dimensão e com toda a amplitude todas as causas de pedir invocadas e pedidos deduzidos; como se não houvesse qualquer “res judicata”.

Em conclusão, não se verifica a excepção do caso julgado, pelo que procede o agravo.

IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar procedente o agravo, revogando-se a decisão recorrido, que se substitui por outra a julgar não verificada a excepção do caso julgado; e a ordenar que os autos sigam os seus termos (elaboração de despacho saneador e de selecção da matéria de facto).

Custas pela agravada.