Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4349/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: QUEIXA
DENÚNCIA
Data do Acordão: 03/15/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº. 49º DO C. P. PENAL
Sumário: 1. A noção de queixa não se cinge à mera transmissão do facto com relevância criminal ao Ministério Público, não relevando uma simples declaração de ciência acerca do facto; a queixa exige, ainda, que nessa declaração se manifeste uma vontade de ver o agente perseguido criminalmente.
2. A queixa distingue-se da denúncia porque esta é mera manifestação de ciência – transmissão ao Ministério Público da ocorrência de um crime.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:
I
1- No processo comum com o n.º 145/03 do tribunal de Vouzela os arguidos A..., B..., C..., D..., foram condenados nas seguintes penas -
a) A A... na pena conjunta de 115 dias de multa à taxa diária de €3,5 resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares de 70 dias de multa pela prática dum crime de dano p. e p. pelo art.º 212º do Código Penal e de 80 dias de multa pela prática dum crime de injúrias p. e p. pelo art.º 181º do Código Penal;
(…)
2- Recorre a arguida A..., concluindo –
1- Nos termos do n.0 3 do art.0 212º do Código Penal o procedimento criminal pelo crime de dano depende de queixa;
2- Nos termos do art0 48º do C.P.P o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal com as restrições constantes nos artigos 49º a 52º do citado diploma;
3- Nos termos do art.0 49º do CPP o Ministério Público só pode promover o procedimento se o ofendido lhe tiver dado conhecimento dos factos através da formalização de uma queixa;
4- A queixa é um acto voluntário, uma declaração destinada a produzir efeitos jurídicos em que o ofendido manifesta ao MP ou a outras entidades que a deverão transmitir àquele a vontade de que seja punido quem for criminalmente responsável, só assim podendo haver impulso processual quer nos crimes particulares que nos crimes semi-públicos.
5- Nos termos do n.0 3 do art.0 49º do CPP a queixa só pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais.
6- Dos autos apenas consta a formalização de uma queixa em que os recorridos denunciam, unicamente, factos susceptíveis de enquadramento no crime particular de injurias, daí se terem constituído assistentes, não existindo qualquer queixa ou denuncia do crime de dano.
7- A recorrente/arguida é cunhada e concunhada dos ofendidos/assistentes, pelo que nesse caso, o art.º 212/ 4 remete para o art.0 207º alínea a), ambos do C.P , remissão essa que deve ser devidamente adaptada. Ora, não parece que a lei tenha querido distinguir, nos crimes de dano, os cunhados dos concunhados, sendo todos para os efeitos daquela alínea a) do 207º afins em 2º grau.
8- Tendo o MP elaborado acusação pública, quando a mesma deveria ser particular, e sem que tenha havido queixa formalizada, está a extravasar a sua competência e a ultrapassar a sua legitimidade, pelo que existe uma nulidade insuprível por violação do art.º 212º/3 do C.P e art.ºs 48º e 49º do Código de Processo Penal.
9- Finalmente não devia ter sido dado como provado o prejuízo do dano no valor de €125, uma vez que não existe qualquer suporte documental que o fundamente, não bastando as declarações dos assistentes interessados, que poderiam dizer, sobre esse facto, o que lhes conviesse, por isso é que a lei não permite que os interessados civis possam depor como testemunhas.
3- Responderam o Ministério Público e os assistente D... e mulher B... pelo infundado do recurso .
O Ex.mo Procurador - Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da sua procedência.
4- Colheram-se os vistos e realizou-se a audiência.
Cumpre apreciar e decidir!
II -
1- Factos provados
(…)
2- Questiona-se no recurso a existência de queixa quanto ao crime de dano por que a arguida A... foi condenada [ queixa que deveria ser apresentada por qualquer dos ofendidos D... / B...] e as consequências decorrentes da sua falta.
3- Apreciando
3.1- A recorrente foi condenada, além do mais, pela prática dum crime de dano p. e p. pelo art.º 212º do Código Penal .
O referido crime tem , em princípio, natureza de crime semi-público já que o n.º3 do artigo estatui que depende de queixa o procedimento criminal.
E dizemos “em princípio”, já que nas situações previstas nas alíneas a) e b) do art.º 207 do Código Penal, para que remete o n.º4 o artigo 212º, revestirá natureza de crime particular.
A arguida A... é cunhada do ofendido D... pois que este é irmão do seu marido C.... A relação familiar entre a arguida e o ofendido é uma relação de afinidade em 2º grau, pelo que o crime reveste quanto a este [ o D...] natureza de crime particular.
Presumindo-se, para facilidade de raciocínio, que a habitação do casal D.../B... é um bem comum, então esta será também ofendida no dano causado pela arguida. E inexistindo entre esta e a ofendida qualquer relação de parentesco ou de afinidade [Neste aspecto remetemo-nos para o correcto raciocínio expendido na douta sentença.], então quanto à B... o crime tem a natureza de crime semi-público, ou seja, o respectivo procedimento criminal também depende de queixa desta.
3.2- A noção de queixa não se cinge à mera transmissão do facto com eventual relevância criminal ao Ministério Público, ou seja, não releva como queixa uma simples declaração de ciência acerca do facto. A queixa exige, ainda, que se manifeste nessa declaração uma vontade de ver o agente perseguido criminalmente pelo facto.
A queixa distingue-se da denúncia na medida em que enquanto esta é mera manifestação de ciência [ transmissão ao MP da ocorrência do crime ], na queixa além desta declaração de ciência exige-se ainda uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra o agente [cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., págs. 55 a 59.] .
3.3- Compulsados os autos constata-se a inexistência de apresentação de queixa pelos ofendidos [D... e/ou B...] contra a arguida A... pela prática do crime .
Na queixa que inicialmente apresentaram inexiste qualquer referência ao dano, mas o Ministério Público e os ofendidos pretendem agora ver nas declarações que a B... prestou no auto de acareação de fls. 79/80 uma apresentação de queixa pelo correspondente crime [Teor dessas declarações – “( ...) Entretanto chegou a arguida A... que trazia uma sachola e que disse que o seu marido era um trafulha mais o advogado e que tinha enganado a velha, tendo em seguida batido com o instrumento que trazia nas mãos na porta da residência da queixosa”.] .
Ora, com todo o respeito por opinião diversa, tal declaração não configura a apresentação de queixa já que nela se não manifestou perante o Ministério Público uma vontade de procedimento criminal pelos factos que eventualmente o preencham. E mesmo que assim fosse, ou seja, mesmo que se tivesse tal declaração como queixa, haveria a dizer que o direito de queixa há muito caducara já que tal declaração é de 1/7/2004 e os factos bem como o conhecimento que deles tinham os ofendidos remontam a 4/7/2003.
Ou seja, tal declaração é posterior ao decurso do prazo de 6 meses para o exercício do direito de queixa referido no art.º 115º do Código Penal.
3.4- Mas só após a sua condenação vem a arguida suscitar a questão da falta de apresentação de queixa pelo falado crime e, consequentemente, a questão da ilegitimidade do Ministério Público para acusar a arguida pelo mesmo [Curiosamente os assistentes D... e mulher referem o dano na acusação particular de fls. 162 e ss. mas não imputam à arguida a prática do crime de dano. As considerações feitas quanto à acusação pública caber-lhe-iam caso se tivesse tal acusação particular como integradora deste crime.] .
O exercício da acção penal pertence ao Ministério Público, mas no caso de crime de dano p. e p. pelo art.º 212º do Código Penal essa legitimidade depende da atempada apresentação de queixa -, cfr. art.ºs 48º e ss. do Código de Processo Penal .
No caso dos autos não houve apresentação de queixa pelo indicado crime, pelo que carecia o Ministério Público de legitimidade para acusar a arguida A... pelo mesmo.
A sua falta implica , quanto ao crime em apreço, a nulidade do processo [Cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., pág.34.] , nulidade esta insanável e consequentemente invocável por qualquer interessado e do conhecimento oficioso até ao trânsito da decisão final -, cfr. art.º 119º alínea b) do Código de Processo Penal .
Efectivamente este preceito comina com nulidade insanável a falta de promoção do processo pelo Ministério Público « nos termos do art.º 48º», artigo este que também nos remete para os art.ºs 49º a 52º do mesmo Código [ de Processo Penal].
Fica assim claro que nos crimes particulares e nos crimes semi-públicos a queixa dos ofendidos condiciona o exercício da acção penal pelo Ministério Público relativamente à promoção do procedimento por esses crimes, constituindo a legitimidade do Ministério Público requisito de validade do processo.
3.5- Não tendo sido apresentada queixa pelo crime de dano não podia o tribunal conhecer da sua existência, bem como do correspondente pedido indemnizatório já que nos termos dos art.ºs 71º e 74º do Código de Processo Penal tal pedido é «fundado na prática de um crime» tendo legitimidade para o apresentar « a pessoa que sofreu danos causados pelo crime ».
Embora não sendo possível um recurso directo relativamente ao pedido de indemnização face ao seu valor, não pode deixar de ter-se em consideração a estatuição do art.º 403º/2 do Código de Processo Penal que estabelece uma condição resolutiva do caso julgado parcial [Cunha Rodrigues, in Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra, 1980 pág. 388.].
III-
Decisão
Termos em que se anula a sentença na parte em que condena a arguida A... na pena de 70 dias de multa pela prática dum crime de dano, bem como na consequente sua condenação no pagamento do montante indemnizatório de € 125, absolvendo-se da instância a arguida/demandada quanto à acusação pelo indicado crime e do correspondente pedido indemnizatório. Dá-se sem efeito o cúmulo jurídico de penas efectuado com a pena de tal crime .
Custas pelos assistentes D... e mulher B..., que fizeram oposição ao recurso, com a taxa mínima aplicável.

Coimbra,