Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
84/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO JESUS
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
USUCAPIÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
PRAZO
Data do Acordão: 05/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 371º, Nº 1, 1249º, 1259º, 1260 E 1296º DO C. CIV..
Sumário: I – Um documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (artº 371º, nº 1, 2ª parte, do C.Civ.).
II – Isto é, um documento autêntico garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade.

III – Pode demonstrar-se que a declaração inserta num documento autêntico não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade do mesmo.

IV – A justificação notarial não constitui título de aquisição ou de transmissão do direito real, não possui qualquer eficácia constitutiva ou translativa desse direito – trata-se, muito simplesmente, de um instrumento ágil de documentação de um facto aquisitivo, para estritos efeitos de registo predial.

V – A acção na qual se impugne o facto justificado notarialmente constitui uma acção de simples apreciação negativa (artº 4º, nºs 1 e 2, al. a), do CPC).

VI – Tratando-se de acção de simples apreciação negativa, é ao réu e não ao autor que compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (artº 343º, nº 1, C. Civ.) – portanto, não é o autor que tem o encargo de provar a inexistência do direito ou do facto, é antes o réu que está onerado com a prova dos factos constitutivos desse direito.

VII – Os vícios não formais do negócio ou titulus adquirendi não afectam, em regra, o título da posse, mas o mesmo não acontece com os vícios de forma, resultantes da inobservância de formalidades ad substantiam (artºs 220º, 875º e 1259º, nº 1, C. Civ.).

VIII – A posse que faculta ao possuidor a usucapião não tem que ser titulada – a ausência de título apenas importa o alargamento do prazo necessário para que aquela possa ser invocada (artºs 1294º e 1296º C. Civ.).

IX – A posse titulada presume-se de boa-fé e a posse não titulada presume-se de má fé – artº 1260º, nº 2, C. Civ..

X – Porém, qualquer destas presunções é meramente iuris tantum, ou seja, elidível mediante prova em contrário – artº 350º, nº 1, C. Civ..

XI – A distinção entre a posse de boa fé ou de má fé releva para efeitos de usucapião, no sentido da exigência, no tocante à posse de má fé, de um prazo mais longo para possibilitar ao possuidor a invocação da usucapião – artº 1296º C. Civ..

XII – O prazo referido tem de verificar-se não à data da instauração da acção de impugnação do facto justificado notarialmente, mas à data da celebração da escritura de justificação.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO


A... , veio intentar a presente acção declarativa com a forma ordinária, contra B... e mulher C... (que, tendo falecido veio a ser substituída na causa pelos seus herdeiros, D... , E... e F... ), G.... e H... , pedindo que seja declarado que:

- é inexistente o direito que o réu B... pretendeu justificar por escritura datada de 15 de Agosto de 1995, lavrada de fls. 33 a 35 verso do livro de notas n.º 371-A do 2.º Cartório Notarial de Castelo Branco;

- é inexistente o direito que os réus C...e mulher pretenderam justificar por escritura datada de 18 de Agosto de 1995, lavrada de fls. 36 a 38 verso do livro de notas n.º 371-A do 2.º Cartório Notarial de Castelo Branco;

- não tem qualquer valor ou efeito qualquer registo que tenha sido feito com base nas duas escrituras de justificação, ordenando-se o respectivo cancelamento, à custa dos réus.

Alega a autora, em síntese, que o réu B...comprou, no estado de solteiro, através de C...que interveio como seu procurador, 1/600 avos indivisos do prédio identificado no artigo 1.º da Petição inicial, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco com o n.º 32.763, tendo a porção comprada 5.140 m2.

A autora e o primeiro réu vieram a casar, em regime de comunhão geral, pelo que o dito imóvel é bem comum do casal entretanto dissolvido no dia 08-02-1993, por decisão proferida no Supremo Tribunal da República da África do Sul, decisão revista e confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, já transitada em julgado.

Depois do casamento e até à data do divórcio o dito bem foi possuído pela autora e marido, em nome próprio, posse essa titulada, contínua, pacífica e de boa-fé, tal como haviam feito os anteriores possuidores e vendedores, que sempre praticaram actos de cultura sobre a totalidade do prédio, de arrancamento de matos, de feitura de benfeitorias, quer por si, quer pelos seus rendeiros, durante mais de trinta e quarenta anos, pelo que, se outro título não houvesse, o dito imóvel foi adquirido pela autora e seu marido por usucapião, fazendo parte do património comum do casal, que ainda não foi partilhado.

 A autora teve conhecimento, há algum tempo, da existência de 2 escrituras de justificação notarial em que cada um dos réus (o seu ex-marido B... e C...) justificou, por não possuir título, a aquisição, cada um, de dois talhões de terreno para construção urbana, referindo-se que todos estão omissos na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco, dado que o prédio cuja semelhança é certificado pela mesma Conservatória, não corresponde ao descrito sob o n.º 34.091, do livro B – 92. Tal foi conseguido porque o réu C..., por si e intitulando-se representante do B..., foi previamente declarar na Repartição de Finanças aqueles quatro talhões de terreno como sendo dois de sua propriedade e dois do irmão.

Os referidos 4 talhões de terreno são precisamente a porção de terreno de 1/600 avos de todo o prédio comprada pelo réu B..., no estado de solteiro, e que pertencem ao dissolvido casal como bem sabem os réus B..., C...e mulher, tendo os mesmos prestado falsas declarações nas ditas escrituras de justificação.

Regularmente citados, vieram os réus C...e D... contestar alegando, em síntese, que quando o primeiro réu ainda era solteiro, bem assim como o seu irmão B..., compraram, cada um, dois talhões de terreno para construção urbana sitos no Bairro Nossa Senhora do Valongo, em Castelo Branco, sendo que, para poderem beneficiar da isenção de sisa fizeram a compra exclusivamente em nome do B..., visto este ser emigrante na África do Sul, aquisição meramente formal quanto aos talhões de terreno adquiridos pelo réu C...e formalizada na escritura junta como doc. 1 da Petição Inicial.

Desta forma, o réu contestante adquiriu os dois talhões de terreno identificados no artigo 7.º da contestação, tendo, posteriormente, vindo a vender o mencionado em 2.º lugar a L..., em nome de quem os ditos talhões estão registados na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco.

Alega o réu que, a partir da data de aquisição, em finais de 1978, ininterruptamente, passou a afectar tais talhões à guarda de materiais de construção, alfaias agrícolas e demais bens e equipamentos que entendia, a utilizar, a administrar, dispor, hipotecar e inclusivamente vender, fazendo suas todas as utilidades e frutos dos mesmos, como se de dono e legítimo possuidor, em exclusivo, se tratasse, como efectivamente foi e ainda é de um dos talhões.

Mais alegou que arroteou e cultivou a terra, plantou árvores e delimitou os talhões, com marcos e muros de vedação e iniciou, em princípios de 1990 a construção de uma casa de habitação, que veio a ser concluída no final do ano de 1998 no primeiro dos talhões por si identificados. Desde finais de 1978 o réu sempre se afirmou como o dono e legítimo possuidor dos ditos talhões, e como tal reconhecido por toda a gente, à vista de todos e sempre na convicção de que os mesmos lhe pertenciam, tal como sempre fizeram os seus antepossuidores, pelo que, se outro título não tivesse, sempre os teria adquirido por usucapião.

Referiu ainda que a própria autora sempre reconheceu que o aqui réu é dono e legítimo possuidor dos prédios referidos no artigo 7.º da contestação, sendo frequente, nas férias que passaram juntos (autora e os dois primeiros réus), comentarem entre si o destino a darem aos respectivos prédios, sendo que nunca a autora ou réu B...praticaram quaisquer actos de posse sobre os supra referidos prédios.

Concluem pela improcedência da acção.

A autora replicou, impugnando a matéria da excepção alegada pelos réus contestantes, maxime a existência de qualquer compra verbal.

Saneado e condensado o processo, realizou-se a audiência de discussão e julgamento vindo a acção a ser julgada parcialmente procedente nos seguintes termos:

“- declaro impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de 15 de Agosto de 1995, outorgada por B..., de fls. 33 a 35 verso do livro de notas n.º 371 – A do 2.º Cartório Notarial de Castelo Branco, por o réu não ter adquirido os prédios nela identificados, correspondente aos do artigo 22.º da petição inicial, por usucapião;

- declaro ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que o réu não possa, através dela, registar quaisquer direitos sobre os prédios nelas identificados;

- ordeno o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura;

- condenar o réu B... a suportar as despesas decorrentes destes cancelamentos.

No mais, improcede a pretensão da autora”.

Inconformada, apelou a autora que das suas alegações tira as seguintes conclusões:

(…………………………………………………………………………)

Os apelados contra-alegaram defendendo a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


ª

As conclusões da recorrente – balizas delimitadoras do objecto do recurso (arts. 684º nº3 e 690º nº 1º do Cod. Proc. Civil) – consubstanciam as seguintes questões:

a) Nulidades da sentença;

b) Respostas contraditórias na matéria de facto;

c) Prazo da usucapião;

d) Inversão do título de posse;

e) Abuso de direito.


ª


II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Foram considerados provados os factos seguintes:

(……………………………………………………………………….)

ª

            DE DIREITO

A) Nulidades da sentença

(………………………………………………………………………………………..)

B) Respostas contraditórias na matéria de facto

(………………………………………………………………………………………..)

C) Prazo da usucapião

Insurge-se também a apelante quanto ao prazo da usucapião, e sua verificação, aceites na sentença. Entende que tendo sido considerada a posse do réu C...não titulada, de má-fé e sem registo anterior, sem poder aceder a sua posse à posse de boa-fé dos antepossuidores, em 18/08/1995, data da celebração da escritura de justificação notarial, ainda não se tinha completado o decurso dos 20 anos necessários à aquisição originária por usucapião.

Vejamos, mas antes do mais importa tecer alguns considerandos acerca da força probatória dos documentos autênticos.

A escritura pública de compra e venda assim como a de justificação notarial constituem tipos de documento autêntico (artºs 362º, 363º nºs 1 e 2 e 369º nº 1 do Código Civil).

A força probatória do documento consiste no valor ou na fé que, como meio de prova a lei lhe confere. Esse valor pode referir-se ao documento em si mesmo e ao seu conteúdo. No primeiro caso, têm-se em vista a força probatória formal do documento, a sua autenticidade ou genuinidade, no segundo, a sua força probatória material.

A força probatória formal do documento diz respeito à proveniência dele, à pessoa de que emana. No tocante à proveniência do documento, estabelece a nossa lei substantiva civil fundamental uma presunção de autenticidade desde que o documento se mostre subscrito pelo autor, com assinatura reconhecida notarialmente ou com o selo do respectivo serviço (artº 370º nºs 1 e 2 do Código Civil).

No tocante à força probatória material do documento, quer dizer, quanto às declarações ou narrações que contém, em primeiro lugar, o documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (artº 371º nº 1, 1ª parte, do Código Civil).

Depois, o documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (artº 371º nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Isto é, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Portanto, o documento autêntico não fia a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram. Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele.

Assim, por exemplo, se numa escritura pública de compra e venda, como a inserta nos autos, o vendedor declara ao notário que vende a totalidade de um terreno que integra quatro talhões e o comprador declara que aceita para si essa venda, aquele documento só faz prova plena de que aqueles outorgantes fizeram aquelas declarações negociais. Não prova, porém, que tais afirmações correspondem à verdade[1].

Logo, quer a escritura de compra e venda celebrada em 27/01/79 em que interveio o réu/apelado como procurador do seu irmão, o réu B..., quer a escritura de justificação na qual foram plasmadas as declarações do mesmo apelado C...relativas à posse e ao completamento do prazo da usucapião, provam plenamente que aqueles produziram essas declarações, mas não provam evidentemente que tais declarações sejam verdadeiras.

A oportunidade destas considerações até aqui feitas impunha-se para esclarecer a apelante da verdadeira dimensão legal probatória decorrente da celebração da primeira dessas escrituras, uma vez que a crítica que desenvolve ao longo das suas alegações de recurso nas diferentes vertentes tem sempre origem na mesma leitura e ilação, erradas, que dela faz, como seja a de se terem por assentes e incontroversos os factos declarados pelos intervenientes na escritura pública de compra e venda de 27/01/79, desvalorizando tudo o mais que em contrário se provou nos autos.

Assim não é, por isso se admite a todo o tempo a impugnação dos factos nelas contidos e, ao que agora nos interessa, também do facto justificado (artº 101º nº 1 do Código do Notariado).

Feito o esclarecimento, avancemos então para a temática da usucapião.

A justificação notarial não constitui título de aquisição ou de transmissão do direito real, não possui qualquer eficácia constitutiva ou translativa desse direito. Trata-se, muito simplesmente, de um instrumento ágil de documentação de um facto aquisitivo, para estritos efeitos de registo predial.

A acção na qual se impugne o facto justificado notarialmente constitui uma acção de simples apreciação negativa (artº 4 nºs 1 e 2 al.a) do CPC).

Em contrário do princípio geral, tratando-se de acção de simples apreciação negativa, é ao réu e não ao autor que compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (artº 343º nº 1 do Código Civil).

Portanto, não é o autor que tem o encargo de provar a inexistência do direito ou de facto, é antes o réu que está onerado com a prova dos factos constitutivos desse direito.

 Invocando os justificantes uma posse conducente à usucapião este é que é verdadeiramente o facto aquisitivo do direito.

É a usucapião e não o registo que constitui a base da nossa ordem imobiliária[2]. A situação registral nada pode contra a usucapião, visto que esta é a ultima ratio na solução de conflitos entre adquirentes de direitos reais.

Nestas condições, tudo está, portanto, em saber se os réus exerceram sobre os prédios uma posse que lhes faculte a aquisição, por usucapião, daquele direito.

De harmonia com a matéria de facto declarada provada pelo tribunal a quo, provou-se o corpus da posse, dos réus C... e mulher, por se ter apurado que, a partir de 1978, passou a limpar os matos que cresciam nos ditos talhões, em 1983 delimitou os terrenos, e em princípios de 1992 iniciou a construção de uma casa de habitação, no lote referido na al. a) do artigo 7.º da contestação, a qual ficou concluída por volta de 1998, construção que os réus têm afectado a sua habitação em Portugal desde a data em que a concluíram.

 Provou-se que o réu assim actuou desde 1978 como se de dono e legítimo possuidor se tratasse, sendo certo que, quanto a este aspecto, sempre seria de presumir que os réus agiram como verdadeiros possuidores, nos termos do artigo 1252.º, nº 2, do Código Civil, pois, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto.

Provou-se ainda que o réu tem sido reconhecido por toda a gente como dono e legítimo possuidor dos ditos talhões, e praticou todos os actos, alguns dos quais com intervenção da ré mulher, na convicção de que os talhões lhe pertenciam, à vista de toda a gente, inclusive da autora, e sem que fosse deduzida qualquer oposição e de forma ininterrupta.

Em face destes dados de facto é indubitável que os réus C...e o cônjuge adquiriram a posse - quer se considere este conceito em sentido subjectivo ou objectivo – sobre as referidas coisas corpóreas imóveis.

Há, porém, que caracterizar essa posse.

É indiscutível que se trata de uma posse pacífica e pública: ela foi adquirida sem violência e foi exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artºs 1261º nºs 1 e 2 e 1262º do Código Civil). Trata-se, portanto, de posse boa para usucapião (artº 1297º do Código Civil).

Também não oferece dúvida que se trata de uma posse não titulada.

Os vícios não formais do negócio ou titulus adquirendi não afectam, em regra, o título da posse, mas o mesmo não acontece com os vícios de forma, resultantes da inobservância de formalidades ad substanciam (artº 1259º nº 1 do Código Civil). No caso, o contrato de compra e venda concluído entre o réu C...e o vendedor não foi celebrado por escritura pública e, portanto, por inobservância dessa formalidade ad substantiam, é nulo (artºs 220º e 875º do Código Civil).

Contudo, a posse que faculta ao possuidor a usucapião não tem que ser titulada. A ausência de título apenas importa o alargamento do prazo necessário para que aquela possa ser invocada (artºs 1294º e 1296º do Código Civil).

Mais delicada se apresenta aqui a questão de saber se àquela posse assiste a característica da boa fé.

A posse diz-se de boa fé quando, no momento da sua aquisição, o possuidor ignorava que lesava o direito de outrem (artº 1260º nº 1 do Código Civil). Desta noção de boa fé, resulta, naturalmente, como seu reverso, a noção de má fé.

Torneando a dificuldade, a lei recorre a presunções, determinando que a posse titulada se presume de boa-fé, e a não titulada de má fé (artº 1260º nº 2 do Código Civil). Qualquer destas presunções é meramente iuris tantum, ou seja, elidível mediante prova em contrário (artº 350º nº 2 do Código Civil).

A boa ou má fé avalia-se no momento da aquisição.

 A distinção entre a posse de boa ou de má fé releva para efeitos de usucapião no sentido da exigência, no tocante à posse de má fé, de um prazo mais longo para possibilitar ao possuidor a invocação dessa usucapião (artº 1296º do Código Civil).

Neste âmbito, a sentença apelada concluiu que a posse do réu C...e cônjuge era de má fé. A razão de ser deste julgamento é explicada nestes termos: “Mas não se provou a boa fé dos réus (artigo 1260.º/1), por não terem demonstrado que só tivessem actuado da forma descrita, por estarem convencidos que actuavam legitimamente, não lesando direitos de quem quer que fosse.

E, como a posse é não titulada, também se presume de má fé (artigo 1260.º/2), o que significa que, não estando demonstrada a boa fé, é necessário que a posse perdure pelo prazo de 20 anos para que os réus adquiram o prédio, por usucapião. ”.

E de seguida, concluiu-se que remontando os primeiros actos de posse a 1978, tendo a acção dado entrada no dia 05-02-2001[3], nesta data se havia já completado aquele prazo de 20 anos, necessário à aquisição por usucapião.

Ora, nesta lógica argumentativa temos de reconhecer que assiste razão à apelante na censura que dirige à decisão impugnada, segundo a qual esse prazo tinha de verificar-se não à data da instauração da presente acção de impugnação, mas à data da celebração da escritura de justificação, em 18/08/95, e nesta ainda não haviam decorrido os 20 anos[4].

 De facto, se na presente acção se trata de verificar, ou não, a existência do direito de propriedade que o réu justificou, naturalmente que o deverá ser reportado a essa mesma data pois só assim se coloca em causa a eficácia da escritura de justificação. A impugnação da escritura de justificação significa a impugnação dos factos nela contidos.

E sendo assim, sem dúvida, que em 18/08/95 só haviam decorrido 16/17 anos[5].

Todavia, entendemos que o juízo desenvolvido na sentença não foi o mais acertado, pecando por alguma linearidade pois que se deteve na aceitação da primeira aparência não tendo ido mais longe quanto se impunha. Passamos a explicar.

A sentença deve utilizar, como fundamentos de facto, todos os factos adquiridos durante a tramitação do processo (artº 659º nº 2 do CPC).

Integram esses fundamentos, designadamente os factos que resultem do exame crítico das provas, isto é, aqueles que podem ser inferidos, por presunção judicial ou legal, dos factos provados (artºs 349º e 351º do Código Civil).

As presunções são ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artº 349º do Código Civil).

As presunções judiciais, de facto ou hominis ou simples presunções são afinal o produto de regras de experiência: o juiz valendo-se de certo facto e de regras de experiência, conclui que aquele facto denuncia a existência de outro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede, então, mediante presunção ou regra de experiência ou, se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência[6].

A sentença pode e deve usar os factos que por presunção possam ser extraídos dos factos julgados provados. A Relação pode, através de presunções judiciais baseadas nos factos apurados na 1ª instância, deduzir outros factos, só não lhe sendo lícito, excepto no caso de erro de julgamento, por recurso a essas presunções, dar como provado um facto que a 1ª instância julgou não provado[7].

Por sua vez, a posse diz-se de boa fé quando, no momento da sua aquisição, o possuidor ignorava que lesava o direito de outrem.

No caso, o direito alheio susceptível de ser violado pelo réu C...e cônjuge, no momento da aquisição da posse, só podia ser um: o direito real de propriedade do anterior titular dos prédios.

Vem provado que foi dele que o réu os adquiriu verbalmente, e foi com ele que posteriormente celebrou a escritura pública de compra e venda de 27/01/79, embora como procurador do seu irmão, como reconhece a apelante (cf. conclusão 4ª, parte final), para logo entrar na sua posse.

Portanto, foi justamente do anterior proprietário que o réu recebeu a posse que foi desde sempre exercida com inteiro conhecimento e sem oposição de quem quer que fosse, obviamente também daquele e inclusive da apelante, e na convicção de que os talhões lhe pertenciam (cf. nºs 32, 36 e 37 dos factos provados).

De harmonia com as regras de experiência e critérios sociais é licito concluir que quem, depois de comprar, ainda que oralmente, dois talhões de terreno, participa com o mesmo vendedor em posterior escritura de venda dos mesmos terrenos, paga o respectivo preço, entra na sua posse actuando sobre eles em termos perfeitamente correspondentes ao direito real de propriedade, com conhecimento e sem oposição do vendedor, e na convicção de que um tal direito lhe pertence, age também na convicção de que com aquele exercício não está a lesar direito de qualquer outra pessoa, maxime, daquela que lho alienou (artº 349º do Código Civil).

Nestas condições, a posse dos referidos réus sobre os prédios deve considerar-se de boa fé.

E sendo uma posse de boa fé, a usucapião dá-se ao fim de 15 anos (artº 1296º do Código Civil). Então o facto justificado através da escritura pública de 18/08/95 é, na sua essência, verdadeiro pois que os réus nessa data dispunham já do direito potestativo à aquisição por usucapião do direito real de propriedade sobre os prédios. A declaração correspondente que fizeram documentar na escritura de justificação é, assim, verdadeira. Logo, não há fundamento para que se declare a ineficácia do acto notarial de justificação outorgada pelo réu C....

A conclusão a tirar é, portanto, a de que embora por razão diferente a solução da improcedência da acção encontrada na sentença impugnada é juridicamente exacta.

D) Inversão do título de posse

Alega ainda a apelante que tendo o réu C...agido como representante do seu irmão na escritura de compra e venda, logo o aceitou e reconheceu como proprietário de todo o terreno em que se integram os dois talhões em causa, e ao agir como procurador do irmão é tido e havido a partir dessa data como mero detentor ou possuidor precário assim se mantendo indefinidamente até à justificação notarial, pois que só através da inversão do título da posse, por oposição do detentor do direito contra o irmão e a autora, seria possível reconhecer a mesma e proceder-se à contagem do prazo de 20 anos.

Porém, o réu não alegou factos inequívocos reveladores do fim da relação jurídica que originou a detenção - mandato - conferida pelo irmão, nem, tão pouco, por mera cautela, invocou a aquisição da posse por inversão do título de posse,  pelo que foram violadas as alínea a) e b) do art. 1253º e o disposto no artigo 1265º do C.Civil (conclusões 10º, 11ª, 27ª, 28ª, 29ª e 30ª).

Com efeito, a inversão do título de posse supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio. A uma situação sem relevo jurídico especial vem substituir-se uma posse com todos os seus requisitos e com todas as suas consequências legais, também a via da usucapião definida pelo artigo 1287º, do Código Civil[8].

Ora, são havidos como detentores ou possuidores precários os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito, e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem (alíneas a), b) e c), do artigo 1253º, do Código Civil), isto é, todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não actuam sobre ela os poderes de facto, com o “animus” de exercer o direito real correspondente.

A concepção subjectivista da posse, plasmada no ordenamento jurídico nacional, está integrada por dois elementos estruturais, o “corpus” e o “animus possidendi”, objectivando-se aquele como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto que o último consiste na intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados[9].

Assim sendo, o acto de aquisição relevante para efeitos de usucapião deve consubstanciar esses dois elementos definidores do conceito de posse porquanto se apenas o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção insusceptível de conduzir à dominialidade.

Por isso, só através de demonstração expressa da inversão do título de posse, só praticando actos com o significado de que, doravante, quer possuir por si e deixar de possuir em nome de outrem, será possível ao possuidor precário adquirir por usucapião.

E os factos expoentes da “contraditio”, para este efeito da inversão do título de posse, obtêm-se com a prática de actos materiais na presença ou com o conhecimento daquele a quem se opõem[10].

Sendo este o quadro normativo do instituto, é inquestionável que não se mostra provado algum circunstancialismo integrante de uma inversão do título de posse, tal como aponta a apelante. Mas por uma simples razão, a de que sempre o réu exerceu posse em nome próprio do direito de propriedade sobre os talhões de terreno desde 1978 como os factos provados demonstram com exuberância e como já acima evidenciamos, tornando assim imprópria a inversão do título da posse nos termos do estipulado pelo artigo 1265º do Código Civil.

Quando a apelante considera que o réu é um possuidor precário está, mais uma vez, a partir do pressuposto errado que já fizemos notar quanto às ilações a extrair da força probatória dos documentos autênticos.

Improcede, em consequência, mais este segmento das alegações da recorrente.

 

D) Abuso de direito

Por fim, sustenta a apelante que constitui abuso de direito o facto de o réu C...ter conhecimento de que o terreno estava inscrito unicamente em nome do irmão B..., casado que foi com a apelante, e tenha procedido em 1995 à sua divisão sem consentimento e intervenção desta, não agindo com lealdade nem correcção sabendo que prejudicava os seus interesses.

Estamos perante crítica com causa idêntica à anterior. O apelante continua a partir do princípio de que a escritura pública de compra e venda é que define o direito de propriedade quando o não é como vimos evidenciando.

Efectivamente, nos termos do preceituado pelo artigo 334º, do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito[11].

O abuso de direito representa a fórmula mais geral de concretização do princípio da boa fé, constituindo um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico sobre os infortúnios do legislador e as habilidades das partes, com aplicação subsidiária, desde que inexista solução adequada de Direito estrito que se imponha ao intérprete aplicar[12].

No caso, o réu comprou e sequencialmente, bem como naturalmente, exerceu actos de posse do seu direito de propriedade sobre os terrenos.

Jamais a conduta do réu se poderá censurar mediante a invocação do abuso de direito, e é-nos completamente impossível perspectivar-mo-la como intolerável, atentatória da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito, enfim, abusiva.

Abusiva poderá ser a conduta da apelante esgrimindo com uma escritura pública cujo conteúdo no que respeita ao verdadeiro comprador não corresponde à verdade por razões fiscais assentes, insistindo em pretender tirar partido dessa fragilidade para pretender os talhões como um bem comum do casal.

Neste entendimento, improcede a pretensão da apelante.


ª

III – DECISÃO


Pelos motivos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença impugnada embora com diverso fundamento.

Custas pela apelante.


[1] Neste sentido, P.Lima e A.Varela no Código Civil Anotado, 4ª ed., Vol.I, pag.327-328.
[2] José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 4ª edição, Coimbra, 1983, pág. 367.
[3] Por manifesto lapso dela consta como tendo sido no ano de 2005.
[4] A data da instauração da acção de impugnação seria relevante se o réu surpreendido com a acção, na perspectiva da sua procedência e consequente ineficácia da escritura de justificação notarial, reconvencionalmente pedisse o reconhecimento de haver já completado nessa data o prazo necessário à aquisição por usucapião, hipótese não configurada nos autos.
[5] Não vem precisa a data do ano de 1978 em que o recorrido deu início aos actos de posse, muito embora ele os situe nos finais desse ano, daí a alternativa colocada.
[6] Vaz Serra, Provas, BMJ nº 110, pág. 190.
[7] Acs. do STJ de 5/12/06, Proc. 06A3883, 24/05/07, Proc.07A979, no ITIJ, e de 21.05.95, CJ (STJ), III, pág. 15; Antunes Varela, RLJ Anos 122, pág. 180 e 123, pág. 49.
[8] P.Lima e A.Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pag. 30.
[9] Manuel Rodrigues, A Posse, 3ª edição, 181 e segs.; P.Lima e A. Varela, loc. cit., pag. 5 e segs.; Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, 65 e segs..
[10] Pelo Código de 1867 era ainda necessário que esses actos da “contraditio” não fossem repelidos pelo possuidor em nome próprio, exigência que o Código actual abandonou.
[11] Cf. neste sentido P.Lima e A.Varela, ob. cit., vol. I, 4ª ed., pag. 298 Ac. do STJ de 21.9.93, in CJ (STJ), 1993, III, 19.
[12] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, T1, 2ª edição, 2000, 241, 248.