Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3084/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR.ª REGINA ROSA
Descritores: DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO DO NÃO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE UM PACTO DE PERFERÊNCIA
Data do Acordão: 12/02/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Área Temática: CÓDIGO CIVIL
Legislação Nacional: ART. S 416° , 798° E 1410° DO C. C.
Sumário:
I - Tratando-se de uma preferência pessoal (não real), se a comunicação prevista no art. 416°, n° 1, do C. C. não for feita e a transmissão se consumar sem conhecimento do preferente, este nada mais pode fazer de que pedir uma indemnização ao transmitente faltoso, nos termos gerais de direito .
II - A mera ocorrência dessa omissão não é necessariamente causa de prejuízos, pois pode não ter havido qualquer dano reparável para o titular da preferência em resultado do incumprimento da obrigação de preferência - art. 563° do C.C..
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - RELATÓRIO
I.1- Maria ..., intentou acção sob a forma ordinária contra António ..., pedindo a condenação deste a pagar-lhe a importância de 34.396.843$00, a título de indemnização por prejuízos que alega ter sofrido por o réu ter violado o pacto de preferência na aquisição de determinado imóvel.
O réu contestou, excepcionando a prescrição do eventual direito que a A. pretende exercer, e por impugnação alega ter comunicado a ela e ao então seu marido o projecto de venda do imóvel a Armando Diogo Ramos, e que ambos renunciaram ao exercício do direito de preferência na venda por estarem, segundo teriam referido, a construir uma vivenda para eles. Mais acrescenta que caso tenha havido violação do direito que a A. invoca, ela nenhum prejuízo teria sofrido, tanto mais que o imóvel quando foi vendida estava velha e semi-destruída. Conclui pedindo a condenação da A. como litigante de má fé.
A A. respondeu.
Foi proferido despacho saneador tabelar, seleccionados os factos assentes e elaborada a base instrutória, com reclamações atendidas.
Realizado o julgamento, foi decidida a matéria de facto controvertida, sem reparos das partes. Ambas as partes alegaram de direito, e por último foi proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada e o réu absolvido do pedido.
I.2- Desta decisão apelou a autora, adiantando nas alegações recursivas estas úteis conclusões:
1ª- O pacto de preferência outorgado tinha em vista a transmissão de um imóvel. Case ele tivesse sido honrado pelo R., o imóvel teria ingressado no património da A. pelo preço pelo qual foi vendido a terceiro;
2ª- Facilmente se constata que o prejuízo da A. corresponde à diferença do valor que o seu património em 2000 teria se, em vez do dinheiro do preço estivesse composto do referido imóvel;
3ª- Para se saber isso temos que saber quanto valia em 2000 o dinheiro do preço e quanto valia nessa data o imóvel dos autos;
4ª- A aplicação das taxas de inflação durante os anos de 1984 a 1999 dá-nos o valor de 5.603.157$00. Tendo sido fixado o valor do imóvel em 20.000.000$00, o prejuízo da A. é, assim, de 14.396.843$00 que corresponde à diferença entre o valor actual do imóvel e a valorização da quantia de 1.750.000$00 paga em Janeiro de 1984;
5ª- Da matéria provada resulta que o imóvel tinha diversos defeitos e que sofreu obras de beneficiação por parte do terceiro adquirente, mas o que nunca ficou provado foi o custo das referidas obras, prova que cabia ao R. fazer;
6ª- não tendo sido feita prova do valor das obras, não pode tal facto ser levado em consideração para reduzir o prejuízo da A..
I.3- Apresentou o réu contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
A matéria factual provada na 1ª instância não foi impugnada e tão pouco se justifica a sua alteração ex vi do art.712º,C.P.C., pelo que, e tal como autoriza o art.713º/6 do mesmo diploma, remete-se para os termos da sentença recorrida no que a tal matéria de facto concerne.
Contudo, tendo em vista a questão colocada pela apelante, importa reter a seguinte factualidade:
1. Em acção de posse judicial avulsa, em que era autor o aqui réu, António Mirrado Vaz Serra, e réus, a aqui autora e o então seu marido, Manuel Mata Vaz Serra, foi celebrado em 8.3.80 um acordo homologado por sentença transitada em julgado, em que aquele se comprometia a dar preferência, na compra, aos réus, do prédio composto de casa de habitação sito em Cernache do Bonjardim;
2. A A. casou em 1970, indo o casal residir para o aludido prédio;
3. Por escritura celebrada em 22.1.84, o réu declarou vender a Armando Diogo Ramos, pelo preço de 1.750.000$00, o referido prédio;
4. Antes dessa escritura, o réu visitou Manuel Vaz Serra, seu tio, referindo-lhe que iria vender o imóvel referido, tendo aquele dito que não estava interessado no mesmo, uma vez que ia construir uma casa, onde planeava viver, como fez, e onde actualmente vive a autora;
5. No ano de 2000, o prédio valia, no mínimo, cerca de 20.000 contos;
6. A A. e Manuel Vaz Serra divorciaram-se em Janeiro de 1990, e vivem em Cernache do Bonjardim;
7. Armando Diogo Ramos passou a habitar com a mulher no prédio referido, logo que acabou as obras a que aludem os pontos de facto 29 a 35 constantes da sentença, à vista de toda a gente e da autora.

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II.2 - de direito
A questão única que importa apreciar - delimitadora do objecto do recurso -, consiste em saber se á A./recorrente assiste direito de indemnização decorrente do não cumprimento definitivo por parte do réu do pacto de preferência.
A A. alicerçou a pretensão indemnizatória na violação do aludido pacto de preferência na compra do imóvel, por o réu ter outorgado em 1984 escritura de venda do imóvel a Armando Diogo Ramos, que o reconstruiu e nele passou a habitar, sem que tivesse sido proporcionada a ela, nos termos do art.416º, C.C. (como os demais a citar sem menção de origem), a possibilidade de exercer o seu direito.
Como se vê, a A. não pretende exercer o direito de preferência na venda do imóvel, de harmonia com o preceituado nos arts.1410º e segs. O que ela reclama é a atribuição pelo réu – obrigado à preferência - de uma compensação monetária, como ressarcimento pelos prejuízos que diz terem para ela advindo com a alegada violação da preferência.
Os arts.414º e segs. referem-se aos pactos de preferência (embora também aplicável aos casos de direito legal de preferência), e tal como este, não envolve a obrigação de contratar (de vender, de arrendar, etc.), mas apenas a de, querendo a pessoa contratar, escolher certa pessoa para contratar – o preferente -, antes de qualquer outra, em igualdade de circunstâncias como sua contraparte; logo, o direito de preferência só pode ser exercido a partir do momento em que o obrigado à preferência manifesta a vontade de contratar e revela as condições em que pretende fazê-lo Cfr. António Carvalho Martins, «Preferência», pág.29, e Luís Menezes leitão, «Direito das obrigações», Vol.I, pág.221.
Observa a sentença que “não se logrou fazer prova que tenha sido sequer dado à autora, ou mesmo ao seu ex-marido, a possibilidade de exercerem o direito de preferência, isto é, não se logrou fazer a prova que o réu lhes tenha comunicado os elementos essenciais da venda que projectava efectuar”, acrescentando-se que “sendo o direito de preferência atribuído em comum a dois titulares, então casados entre si, a comunicação da alienação deve ser efectuada a ambos”.
Entendeu-se a seguir que tendo o obrigado à preferência alienado a coisa a terceiro sem notificar o preferente, este tem de contentar-se com a indemnização pelos danos causados pela violação do pacto.
Na realidade, tratando-se no caso concreto de preferência pessoal (não real), se a comunicação prevista no art.416º/1 não for feita e a transmissão se consumar sem conhecimento do preferente, como veio a acontecer, este nada mais pode fazer do que pedir uma indemnização ao transmitente faltoso, nos termos gerais.
A apelante faz corresponder o seu pedido de indemnização na diferença entre o preço actualizado do valor da alienação e o valor actual da coisa alienada. Ou seja, na tese da A. os prejuízos sofridos correspondem a essa diferença.
Na sentença considerou-se sem fundamento essa pretensão, por não se vislumbrar que essa diferença constitua, em termos de causalidade adequada, qualquer medida de prejuízo sofrido pela autora, preterida no pacto de preferência. Mais se adiantou que a mesma pretensão não constitui a medida de qualquer dano emergente, nem, tão pouco, de qualquer lucro cessante
A apelante discorda deste entendimento, e alegando que se o pacto tivesse sido honrado pelo R., o imóvel teria ingressado no seu património, insiste em reclamar o prejuízo que quantifica em 14.396.843$00, correspondendo, como defende, à diferença do valor que em 2000 teria o imóvel (20.000.000$00) e o dinheiro do preço pago em Janeiro de 1984 (5.603.157$00).
Cremos que não lhe assiste razão.
Não se questiona a violação da obrigação de preferência. Está apenas em causa, consoante antes se salientou, a indemnização pelo incumprimento definitivo dessa obrigação, em face da venda do imóvel a terceiro.
Vimos que no caso em apreço o direito de preferência é pessoal, porquanto a estipulação do pacto de preferência atribuiu aos seus beneficiários (a A. e seu então marido) um direito de crédito contra a outra parte (o aqui réu).
Como decorre do disposto no art.798º, “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que cause ao credor”: é a indemnização pelo interesse contratual positivo ou dano do cumprimento que abrange o equivalente da prestação devida e a reparação dos prejuízos restantes provenientes da inexecução, por forma a colocar o credor na situação em que estaria se a obrigação tivesse sido cumprida.
À luz do exposto, a A. – titular da preferência -, adquiriu o direito a uma indemnização por incumprimento. Todavia, na falta de alegação de danos concretos em resultado da não comunicação nos termos do art.416º/1 pelo vinculado à preferência, julgamos que não deve conceder-se à autora qualquer indemnização.
Ao invés do que pretende fazer crer, a simples ocorrência de tal omissão não é necessariamente causa de prejuízos. Para o titular da preferência pode não ter havido qualquer dano reparável resultante do incumprimento da obrigação de preferência. Segundo se dispõe no art.563º, que consagra a teoria da causalidade adequada, a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Por isso, e consoante afirma o Prof. Almeida Costa, “não há que ressarcir todos e quaisquer danos que sobrevenham ao facto ilícito, mas tão-só os que ele tenha na realidade ocasionado, os que possam pelo mesmo produzidos(…) «Direito das obrigações», 3ª ed., pág.399.
Deste modo, e à luz do citado art.563º, não vemos que exista relação de causalidade entre a falta de comunicação para preferência e os prejuízos alegados na dimensão pretendida. De acordo com um juízo de probabilidade, já seria idónea a produzir um dano se p.ex., a apelante tivesse tido necessidade de adquirir uma outra casa quando poderia ter comprado por preço inferior a casa vendida que fora objecto da preferência.
Nesta medida, não merece censura a solução adoptada na sentença para julgar improcedente a pretensão aduzida.
Contudo, também por outra via a pretensão da A. estaria votada ao insucesso.
Com efeito, analisando criticamente a matéria de facto provada e acima alinhada, a nosso ver é patente que ela reflete uma actuação por parte da autora que viola manifestamente os princípios da boa fé, dos bons costumes ou do fim social e económico do direito.
Isto é, ao exercitar o direito de indemnização na presente acção, a autora fá-lo abusivamente, como de resto bem sustenta o recorrido nas suas contra-alegações. Malgrado a aparente tutela que pode encontrar a sua pretensão em preceitos objectivos, o resultado pretendido é recusado pelo sistema jurídico, na medida em que implicaria a aceitação dos efeitos jurídicos de condutas qualificáveis como de “venire contra factum proprium”.
Como ensina Planiol, “o direito cessa onde começa o abuso”. citado por Menezes Cordeiro, in «Tratado de direito civil», tomo I, pág.192.
Sob a epígrafe «abuso do direito», prescreve o art.334º: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Há abuso de direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante. Cfr. Prof. Vaz Serra, «BMJ» nº85, pág.253
A boa fé significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.
O termo ilegitimidade no artigo em análise, é sinónimo de antijuridicidade ou ilicitude. Cfr. Jorge Coutinho de Abreu, «Do abuso de direito», págs.55 e 67
O instituto mais claro deste abuso é a chamada conduta contraditória (“venire contra factum proprium”) em combinação com o princípio da tutela da confiança. Com raiz no princípio da boa fé, a proibição da conduta de “venire contra factum proprium” impede o exercício de um direito subjectivo ou duma pretensão, quando o seu titular, por os não ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos (revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável) Ob. supra citada, pág.59-60.
No caso concreto, e aplicando estes princípios aos factos apurados somos em crer, como dissemos, que a apelante abusou do direito que invoca.
Efectivamente, e desde logo, há a considerar que a venda do imóvel realizou-se em Janeiro 1984 e a presente acção deu entrada em juízo em Outubro de 2000, dizendo a autora que só nesta data teve conhecimento da escritura de compra e venda.
Ora, como resulta dos referidos factos, designadamente dos pontos 13 a 28, o imóvel em questão - localizado em Cernache do Bonjardim -, encontrava-se então (1984) em mau estado de conservação, a necessitar de obras, e por isso foi restaurado pelo adquirente Armando Diogo Ramos (pontos de facto 29 a 35). Terminadas as obras, este e a família passaram a habitá-lo, à vista de toda a gente e da autora.
O que significa que, embora não se saiba em que altura é que acabaram obras, sendo certo que não nos parece razoável admitir que duraram 16 anos, a autora não podia ignorar que casa objecto da preferência – onde chegou a residir após o seu casamento – estava a ser alvo de obras de restauro e que depois passou a ser ocupada por outras pessoas, que não o réu. Aliás e como vem salientado, o Armando Ramos habitava a casa à vista da autora.
Não alegando ter estado ausente do país, nem em parte incerta ou desconhecida do réu durante tão dilatado período, antes vivendo em Cernache do Bonjardim como vem provado, para qualquer pessoa normal em tal situação, isto é, a viver numa localidade pequena ao longo de tanto tempo, era óbvio que havia alterações na dita casa, primeiro pelas obras realizadas e a seguir pelos novos ocupantes.
Por conseguinte, durante 16 anos nada manifestou a autora, que se saiba, relativamente ao facto de não lhe ser dada preferência na compra do imóvel, sendo de resto estranho que não tivesse conhecimento da intenção da venda do imóvel a terceiro comunicada ao então seu marido pelo réu.
Daqui se infere, pois, que tudo decorreu e se processou num clima de confiança, convencendo a autora que aceitava a situação descrita que era do seu conhecimento, e fazendo crer à contraparte que não lançaria mão do direito invocado.
Portanto, não reagindo durante tantos anos, é inaceitável que venha agora exercer o questionado direito de indemnização sem qualquer justificação. Se o tribunal acolhesse a sua pretensão nestas circunstâncias, tal significaria a cobertura de um injusto proveito para a apelante, tanto mais que não podemos esquecer que a casa tinha o valor de 20.000.000$00 em 2000, certamente mercê das obras feitas pelo adquirente, proveito esse flagrantemente violador dos limites da boa fé e da confiança, à luz do conceito “venire contra factum proprium”.
Como assim, a sua conduta quanto ao direito de indemnização, cai sob a alçada do citado art.334º, sendo pois ilegítimo o exercício desse direito invocado.
Não se questiona que o abuso de direito seja de conhecimento oficioso.
O art.334º não diz qual a sanção, quais os efeitos do abuso de direito. Mas sendo ele uma forma de antijuricidade ou ilicitude, as consequências do comportamento abusivo têm de ser as mesmas de qualquer actuação sem direito, de todo o acto (ou omissão) ilícito. Cfr. Coutinho de Abreu, ob.cit., pág.76
A consequência do abuso é, pois, o titular do direito ser tratado como se o não tivesse.
Deve, pois, concluir-se pela ilegitimidade do recurso à presente acção, decaindo, assim, a pretensão da autora.
Deste modo nega-se provimento à apelação.

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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pela apelante.