Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2258/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: SUB-ROGAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 09/27/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º A),B) E C), 6.º, N.º 1 E 9.º DO DECRETO-LEI N.º 423/91,30/10; ARTIGO 130º, Nº 4, DO CÓDIGO PENAL; ARTIGOS 592.º, N.º E 593.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: 1. Concedida a indemnização a que estava obrigado, o Estado, na qualidade de terceiro directamente interessado na satisfação do crédito, adquire, na medida da satisfação dada aos direitos do lesado, os poderes que ao mesmo competiam, ficando sub-rogado, por força da lei, nos direitos deste contra o autor dos actos intencionais de violência ou as pessoas com responsabilidade meramente civil, dentro dos limites da indemnização prestada, podendo, por isso, demandar o réu, até ao montante que tiver satisfeito, nos termos do estipulado pelos artigos 130º, nº 4, do Código Penal, e 9º, do DL nº 423/91, de 30 de Outubro.
2. Não é pressuposto do pedido de indemnização pelo Estado a instauração de processo criminal, muito menos, a dedução pelo lesado, dentro ou fora do processo-crime, de qualquer pedido de indemnização.

3. Sendo de prever, razoavelmente, que o réu não tenha capacidade de reparar o dano causado com a morte da vítima, até porque lhe foi concedido o benefício do apoio judiciário, e não sendo previsível obter de outra fonte uma reparação efectiva e suficiente daquele dano, restava ao lesado o recurso ao pedido de concessão de uma indemnização pelo Estado, não resultando inviabilizada a sub-rogação deste que, com base na aludida previsão, satisfez a indemnização pedida pelo lesado.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


O Ministério Público, em representação do Estado Português, propôs a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma sumária, contra A..., casado, residente em Proença-a-Nova, pedindo que, na sua procedência, este seja condenado a pagar ao Estado Português a quantia de 1.200.000$00, equivalentes a 5.985,60 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, alegando, para tanto, e, em síntese, que, por acórdão, transitado em julgado, proferido no processo nº 34/99, do Tribunal de Círculo de Castelo Branco, actualmente, o processo n.º 214/99, deste 3º Juízo, o réu foi condenado, pela autoria material de um crime de ofensas corporais agravadas pelo resultado, na pena de dois anos de prisão, cuja execução ficou suspensa, pelo período de três anos, uma vez que, no dia 1 de Outubro de 1995, cerca das 18 horas, em Monte das Barrelas, Malpica do Tejo, disparou um tiro na perna direita de B..., atingindo-o junto ao joelho, que lhe provocou lesões que foram causa da sua morte.
A isto acresce, continua o autor, que, no seguimento daquela decisão, a mulher do falecido, D..., requereu ao Estado a indemnização da aludida quantia, pelos danos sofridos, ao abrigo do DL n.º 423/91 de 30 de Outubro, que lhe foi concedida, ficando o Estado sub-rogado nos direitos da lesada contra o réu, podendo haver deste a dita quantia e juros de mora.
Na contestação, o réu, na parte que ainda importa considerar, suscitou a nulidade do acto administrativo que atribuiu à viúva de B..., sem, previamente, ter sido ouvido, a indemnização referida, impugnando o montante de tal indemnização e o direito de regresso, por parte do Estado, contra si, concluindo pela improcedência da acção, com a consequente absolvição do pedido.
No despacho saneador, declarou-se a sub-rogação do Estado no direito de crédito do lesado contra o responsável pelo dano, relegando-se, para a sentença final, o conhecimento da eventual nulidade, por inobservância da audição do réu no processo administrativo que determinou a concessão da indemnização à lesada.
Desta decisão, o réu interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª - A lesada não deduziu, dentro ou fora do processo-crime referenciado nos autos, qualquer pedido de indemnização pelo que, face ao princípio da adesão obrigatória consagrado no artigo 71º do Código de Processo Penal, o seu direito precludiu.
2ª - O direito à indemnização consagrado nos artigos 1o e 2o do DL n° 423/91, de 30.10 tem, essencialmente, um carácter de solidariedade social, como resulta do seu próprio preâmbulo, sendo atribuível ainda que se não possa obter ou exigir do lesante o respectivo reembolso.
3ª - Tal direito à indemnização emerge, pois, de título diverso daquele que emerge da efectivação da responsabilidade civil do lesante, não se lhe podendo substituir.
4ª - Assim, o direito à sub-rogação do Estado, como previsto no artigo 9o do referido diploma, não derroga a aplicação dos regimes fixados nos artigos 71° a 84° do Código de Processo Penal, e 589° a 594° do Código Civil, antes os completa,
5ª - Pelo que, encontrando-se precludido qualquer direito de indemnização do lesado sobre o réu, não assiste ao Estado qualquer direito de sub-rogação.
6ª - Ao assim não decidir, a douta decisão recorrida aplicou erradamente o disposto nas referidas normas (art°s 1o e 9o Dec-Lei n° 423/91, de 30.10, 71° a 84º do Código de Processo Penal, e 589° a 594° do Código Civil), tendo as mesmas sido, por isso, violadas.
7ª - Pelo que a douta decisão recorrida deverá ser revogada.
O autor não apresentou contra-alegações.
A sentença julgou a acção, procedente por provada, e, em consequência, condenou o réu a pagar ao autor a quantia de 5. 985,60 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.
Desta sentença, o réu interpôs, também, recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª - O Ministério Público, em representação do Estado Português, veio demandar o réu, ora recorrente, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 1 200 000$00 (5 985,60 €), acrescida dos juros de mora.
2ª - O recorrente foi submetido a julgamento pala prática de um crime de ofensas corporais agravadas pelo resultado p. e p. nos termos dos artigos 143° e 145° do Código Penal, tendo pelo mesmo sido condenado por acórdão transitado em julgado proferido no processo 34/99 do Tribunal de Círculo de Castelo Branco.
Isto porque,
3ª - No dia 1 de Outubro de 1995, quando se encontrava no Monte das Barrelas, Malpica do Tejo a separar o gado, a vítima (B...), alcoolizado e munido de uma espingarda, dirigiu-se ao recorrente e disse-lhe ''agora é que vamos ver quem são os homens", tendo então efectuado dois disparos na direcção do recorrente, logrando apenas acertar numa cabra, que matou;
4ª - O recorrente conseguiu agarrar no cano da arma enquanto a vítima a mantinha segura pela coronha;
5ª - Durante algum tempo, ambos lutaram pela posse da arma até que o recorrente conseguiu ficar com a mesma, disparando um tiro na perna direita da vítima, que em virtude das lesões, mais tarde, veio a falecer;
6ª - No seguimento daquela decisão, a esposa da vítima, D..., ao abrigo do Decreto Lei n° 423/91 de 30 de Outubro, requereu junto do Estado Português uma indemnização pelos danos sofridos;
7ª - Vindo o Estado Português a conferir-lhe o montante de 1 200 000S00 (5 985,60 €), arrogou-se ter ficado sub-rogado no direito da lesada contra o réu (ora recorrente) pelo que lhe exige o pagamento dessa quantia acrescida dos juros de mora;
8ª - Invocou o réu, que no caso em apreço, a administração não concretizou o preceito constitucional que visa assegurar as participações dos cidadãos na formação das decisões que lhes digam respeito, não lhe tendo concedido, como estava obrigada, o direito de audiência, e concluiu, além do mais, pela nulidade do referido acto.
9ª - Proferido o despacho saneador a fls. 67 e ss (refira-se, o segundo dos autos), considerou o meritíssimo juiz do Tribunal "a quo " não conter ainda o processo os elementos necessários para se conhecer de tal questão, pelo que relegou para momento ulterior a apreciação da mesma;
10ª - Entendeu no entanto, porque relevante e porque competia ao Tribunal apreciá-la, levar tal matéria ao questionário, inserindo na base instrutória o quesito "O Réu foi ouvido no âmbito do processo cuja decisão [administrativa] se mostra junta a fls. 13 e ss? ";
11ª - Isto porque no seu despacho de fls 68 dos autos fixa, o MM" Juiz a quo, que: "No caso de não ter sido ouvido o ora Réu naquele processo administrativo, enferma a decisão administrativa de nulidade insanável a qual terá de ser apreciada por este tribunal judicial, uma vez que, remetendo-se à inércia, não veio arguir tal nulidade na sua sede própria: a do foro administrativo".
12ª - Referiu ainda, o MMº Juiz a quo, no seu despacho de 19.03.2002 (fls... dos autos) que: "Ora a declaração de nulidade de tal acto trará necessariamente como consequência a improcedência da acção por ineptidão (cfr artº 193º, nº 2, al a), do Código de Processo Civil";
13ª - Conheceu pois, o MM" Juiz a quo de tal matéria, sendo que os mencionados despachos não foram, nessa parte, postos em crise nem pelo autor nem pelo réu, pelo que constituem, a esse respeito, caso julgado;
14ª - Tendo sido notificado da sentença de que ora se recorre, verificou o recorrente que o meritíssimo juiz a quo deu como provado tal quesito sem contudo não esclarecer ou fundamentar em que meios de prova baseou tal convicção;
15ª - Não se dignando fazer aquele esclarecimento, prejudicou o meritíssimo juiz recorrido os direito de defesa do réu, mormente, o direito de recurso, não fundamentou com clareza a sua sentença, nem se pronunciou de modo suficiente quanto a uma questão que devia apreciar;
16ª - Nos termos do artigo 201° n° 1, 668° n° 1 alíneas b) e d) do C.P.C, a sentença é nula;
17ª - Em face desta omissão de pronúncia e em face da relevância de tal questão para uma boa decisão da causa, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por uma outra em que se pronuncie sobre a referida matéria submetida pelo réu à apreciação do juiz, indicando quais os meios de prova em que fundou a sua convicção.
18ª - Em face da prova documental junta aos autos e da que foi produzida em sede de audiência de julgamento, crê o recorrente que o meritíssimo juiz do Tribunal "a quo" para formar sua convicção, e consequentemente ter dado como provado, que o réu foi ouvido no âmbito daquele processo administrativo apenas se pôde basear nas declarações do recorrente perante a Guarda Nacional Republicana quando questionado sobre as suas condições económico-sociais, junto aos autos a folhas 115, ou nas declarações do mesmo junto dos Serviços do Ministério Público do Tribunal de Castelo Branco, a folhas 128, declarações essas que nem se encontram assinadas pelo declarante;
19ª - Nos termos do artigo 100° n° 1 do CPA, "Concluída a instrução, e salvo o disposto no artigo 103" [que não se aplica] os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta";
20ª - Daí que, as declarações prestadas pelo recorrente, se algum valor terão, terão de ser vistas como efectuadas em sede daquela instrução, nunca tendo o arguido sido informado ou notificado para o quer que fosse;
21ª - Nunca ou alguma vez, durante todo aquele procedimento administrativo, efectivamente, o direito de defesa e o contraditório do recorrente terão sido acautelados;
22ª - Pelo que sempre a sentença recorrida deverá ser revogada, substituindo-se por uma outra que dê como não provado que o recorrente foi ouvido no âmbito do processo administrativo e em consequência declare nulo o acto administrativo que conferiu à viúva da vítima a indemnização em causa nos autos e absolva o réu, aqui recorrente, do pedido.
O autor, nas suas contra-alegações, sustenta que deve manter-se, na íntegra, a douta decisão recorrida.
Na sentença apelada, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz, acrescentando-lhe, porém, novos factos, a que correspondem as alíneas L), M) e N), com base no teor dos documentos mencionados, nos termos do estipulado pelos artigos 363º, nº 2, 369º, nº 1, 371º, nº 1, do Código Civil (CC), 659º, nº 3 e 713º, nº 2, do CPC:
No dia 1 de Outubro de 1995, cerca das 18 horas, A... encontrava-se no interior de um bardo, sito no Monte das Barrelas, Malpica do Tejo, acompanhado por C..., a separar gado – A).
Nesse monte trabalhava, como encarregado de gado, “vazio”, B... que chegou ao bardo, tendo-lhe o A... pedido para não deixar misturar o gado – B).
O B... disse “esperem aí que eu já venho”, largou o cajado e abandonou o local – C).
Voltou cinco minutos depois, munido de uma espingarda caçadeira e, da cancela do bardo, disse para o A... “agora é que vamos ver quem são os homens” – D).
De contínuo, apontou a arma em direcção ao A... que se refugiou atrás de um pilar de tijolo, entre a cancela que divide o interior do bardo e os cabanões, e efectuou um disparo – E).
O C... foi-se embora e o B... avançou, pelo interior do bardo, na direcção do A... e fez um segundo disparo que atingiu uma cabra, matando-a – F).
Quando o B... se encontrava perto da segunda cancela do bardo, o A... saiu detrás da coluna, avançou sobre ele e agarrou no cano da arma que aquele mantinha segura – G).
Lutaram pela posse da arma, até que o A... conseguiu ficar com ela e disparou um tiro na perna direita do B..., atingindo-o junto ao joelho – H).
As lesões sofridas vieram a ser causa ocasional da morte de B... que foi produzida por choque hipovolémico, em consequência do tiro da arma de fogo – I).
Pela prática de tais factos foi o réu, por acórdão transitado em julgado, proferido no processo nº 34/99, do Tribunal Judicial do Círculo de Castelo Branco (actualmente processo nº 214/99, do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco), condenado pelo crime de ofensas corporais agravadas pelo resultado, previsto e punível, pelos artigos 143º, nº1 e 145º, nº1, a), do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, cuja execução ficou suspensa, por um período de três anos – J).
A requerimento da mulher da vítima, D..., a Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes do Ministério da Justiça, tendo em conta os prejuízos sofridos e a sua situação económica, dado que apenas dispunha de uma pensão de sobrevivência, no montante de 19560$00, arbitrou-lhe uma indemnização, no valor de 1200000$00 – Certidão documental de folhas 97 a 139 – L).
O réu foi ouvido, nos serviços do Ministério Público de Castelo Branco e pela GNR local, no decurso da instrução do processo de que resultou o arbitramento da indemnização, referida em L) – Certidão documental de folhas 97 a 139 – M).
A requerimento do réu, foi-lhe concedido o apoio judiciário, na presente acção, por comprovada insuficiência económica, pelo Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Castelo Branco, nas modalidades de pagamento de honorários a patrono escolhido, dispensa do pagamento da taxa de justiça e dispensa do pagamento total dos demais encargos do processo – Documentos de folhas 24 a 33 – N).
O réu foi ouvido, no âmbito do processo, aludido em L) e M), cuja decisão se mostra junta, a folhas 13 e seguintes, conforme resulta, igualmente, do teor da certidão documental de folhas 97 a 139 – 1º.
Por via da decisão, referida em I), D..., mulher da vítima B..., requereu, em 6 de Julho de 1999, ao Ministro da Justiça que lhe fosse concedida, pelo Estado, uma indemnização pelos danos sofridos – 2º.
A Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes emitiu, em 13 de Março de 2000, parecer no sentido de que deveria ser atribuída à requerente uma indemnização, tendo em conta os prejuízos sofridos e a sua situação económica, no valor de 1.200.000$00 – 3º.
Tal quantia foi, efectivamente, recebida, a 11 de Julho de 2000, pela D... – 4º.
A vítima nos autos, referidos em I), encontrava-se alcoolizada e assumiu uma atitude provocatória contra o ora réu – 5º.

*
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir em ambas as apelações, em função das quais se fixa o objecto dos recursos, considerando que o «thema decidendum» dos mesmos é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da nulidade resultante da falta de audiência do réu no processo que conduziu à decisão do Estado.
II – A questão da sub-rogação do Estado no direito de crédito do lesado.

I

A QUESTÃO DA NULIDADE

Efectivamente, o réu foi ouvido no decurso do processo que, a requerimento da mulher da vítima, D..., foi instruído pela Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes do Ministério da Justiça, nomeadamente, nos serviços do Ministério Público de Castelo Branco e na GNR local, de que resultou o arbitramento da indemnização de 1200000$00, a favor daquela, como decorre da resposta ao ponto nº 1 da base instrutória, com a fundamentação bem explicitada, no respectivo despacho de folhas 199 e 200, onde se refere, textualmente, que “para formar a convicção do tribunal serviram ainda os…documentos constantes de folhas 98 a 139, donde consta, para além do mais, que o réu foi ouvido no âmbito do processo administrativo, tendo nele prestado as declarações que entendeu” e, também, da nova factualidade assente, aditada por esta Relação, a que corresponde a alínea M), com base na respectiva certidão documental de folhas 97 a 130.
Assim sendo, o Tribunal «a quo» fundamentou a resposta ao ponto nº 1 da base instrutória, em documentos portadores de força probatória plena, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 363º, nº 2, 369º, nº 1 e 371º, nº 1, todos do CC.
Como assim, não se verifica o vício da nulidade da sentença, como vem invocado pelo réu, ou outro que, a existir, daria antes lugar, se tal tivesse sido requerido pelo apelante, a uma reformulação da fundamentação da matéria de facto, nos termos do disposto pelo artigo 712º, nº 5, do CPC.
A isto acresce que o artigo 130º, nº 1, do Código Penal, ao dispor que “legislação especial fixa as condições em que o Estado poderá assegurar a indemnização devida em consequência da prática de actos criminalmente tipificados, sempre que não puder ser satisfeita pelo agente”, prevê a criação de um seguro social destinado a satisfazer a indemnização ao lesado, por actos de criminalidade violenta, quando a mesma não puder ser paga pelo delinquente, baseada numa ideia de «solidariedade social» ou de «indemnização social», de natureza supletiva, e não num princípio de «responsabilidade do Estado», como decorre do preâmbulo do DL nº 423/91, de 30 de Outubro, complementado pelo Decreto Regulamentar nº 4/93, de 22 de Fevereiro.
A instrução dos pedidos para a concessão pelo Estado de uma indemnização a vítimas de crimes violentos é da competência de uma comissão especial, que procede a todas as diligências úteis para o efeito e, nomeadamente, à audição dos requerentes e dos responsáveis pela indemnização, os autores dos actos violentos ou os responsáveis meramente civis e, a final, emite parecer sobre a viabilidade da indemnização e respectivo montante, cuja concessão é da competência do Ministro da Justiça, atento o disposto pelos artigos 6º a 8º, do DL nº 423/91, de 30 de Outubro, e 1º a 7º, do já citado decreto regulamentar, gozando aqueles, portanto, de legitimidade para atacar, querendo, a decisão de atribuição da indemnização pelo Estado ao lesado, nomeadamente, por eventual não verificação dos requisitos legais, consagrados pelo artigo 1º, atento o estatuído pelo artigo 10º, nº 3, ambos do aludido DL nº 423/91, de 30 de Outubro.
De todo o modo, sempre se dirá que a concessão da indemnização ao lesado observou os requisitos legais exigidos pelo artigo 1º, nº 1, a), b) e c), do DL 423/91, para a procedência do pedido, o que, aliás, o réu não questiona, nas suas alegações de recurso.
Por seu turno, sustenta, igualmente, o réu que deveria ter sido ouvido no procedimento, antes de ser tomada a decisão final, e informado, nomeadamente, sobre o sentido provável desta, nos termos do estipulado pelo artigo 100° n° 1 do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
Com efeito, dispõe o artigo 103º, nº 2, a), do CPA, que “o órgão instrutor pode dispensar a audiência dos interessados…se [estes] já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas”.
No caso em apreço, o réu foi confrontado com o processo, seu objecto, a titularidade de meios patrimoniais e a sua disponibilidade para pagar a indemnização devida à lesada, não tendo aderido a este propósito, demonstrando, aliás, não querer pagar aquela, nem ao Estado.
Por esta razão, a Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes dispensou a sua audiência, antes de proferir a decisão administrativa, com base no já citado artigo 103º, nº 2, a), do CPA.
Porém, além do mais, o réu não invocou, em qualquer passagem da contestação, a não verificação da sua audiência antes da prolação da decisão final administrativa, pelo que não pode agora esta questão ser tomada em consideração, exactamente, por não ter sido objecto de apreciação, em primeira instância.
Com efeito, os recursos destinam-se a reapreciar e, eventualmente, a modificar as decisões impugnadas, a obter o reexame dos problemas nelas tratados, a reanalisar questões já decididas, mas nunca a decidir sobre questões novas ou criar decisões sobre matéria nova, porquanto visam modificar decisões e não emitir juízos de valor sobre matéria nova.
Por isso, tratando-se de questão nova, em toda a sua latitude, aquela que, neste particular, foi suscitada no recurso, e não no Tribunal «a quo», como deveria ter acontecido, e porque, também, não constitui matéria indisponível, encontra-se vedada ao conhecimento do Tribunal da Relação, por força do preceituado pelos artigos 660º, nº 2, 664º e 684º, nºs 2 e 3, do CPC STJ, de 2-2-88, BMJ, nº 374, 449; de 14-10-86, BMJ nº 360, 526; de 16-7-81, BMJ, nº 309, 283. .

II

DA SUB-ROGAÇÃO

Vem o autor pedir, na presente acção, a condenação do réu no pagamento da quantia que satisfez à lesada, a título de indemnização pelos danos sofridos pelo marido, em consequência da autoria material de um crime de ofensas corporais agravadas pelo resultado que o vitimou, por parte daquele, e respectivos juros.
Compete ao Estado, nos termos das disposições combinadas dos artigos 1º, nº 1, a), b) e c) e 6º, nº 1, do DL nº 423/91, de 30 de Outubro, conceder indemnizações às pessoas a quem a lei civil atribua o direito a alimentos, por morte de vítimas de lesões corporais graves resultantes, directamente, de actos intencionais de violência praticados em território português.
Por seu turno, concedida a indemnização a que estava obrigado, o Estado fica sub-rogado nos direitos do lesado contra o autor dos actos intencionais de violência e as pessoas com responsabilidade meramente civil, dentro dos limites da indemnização prestada, em conformidade com o estipulado pelo artigo 9º, do referido DL nº 423/91, de 30 de Outubro.
Com efeito, a sub-rogação supõe o pagamento e, portanto, que o terceiro que paga pelo devedor só fica sub-rogado nos direitos do credor com o pagamento Vaz Serra, RLJ, 99º, 360., ou seja, segundo a definição contida no artigo 592º, nº 1, para a hipótese da sub-rogação legal, que aqui interessa considerar, que o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando estiver, directamente, interessado na satisfação do crédito, adquirindo, então, na medida da satisfação dada aos direitos deste, os poderes que ao mesmo competiam, atento o preceituado pelo artigo 593º, nº 1, ambos do CC.
Trata-se, portanto, de uma sub-rogação legal, derivada da lei, em que o terceiro está, directamente, interessado na satisfação do crédito, conforme, expressamente, vem admitido pelo artigo 592º, nº 1, do CC, e não da vontade das partes, em que não há ou não se exige acordo entre o terceiro que paga e o credor, ou entre aquele e o devedor, porquanto do simples facto do pagamento efectuado por terceiro, dadas certas circunstâncias, é a própria lei que o considera como sub-rogado nos direitos do credor Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 608 e 609; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, 286 e 287. .
Apenas aconteceu uma modificação subjectiva da relação obrigacional, quando o credor [lesado] foi substituído pelo terceiro [Estado] que cumpriu, em lugar do devedor [o réu], por força da lei, que lhe atribui, por esse facto, o direito de sub-rogação nos poderes do credor.
Ora, o autor, ao cumprir a obrigação legal de ressarcir o lesado, como aconteceu, ficou sub-rogado nos direitos deste à indemnização, podendo, por isso, demandar o réu, até ao montante que tiver satisfeito, nos termos do estipulado pelos artigos 130º, nº 4, do Código Penal, e 9º, do já citado DL nº 423/91, de 30 de Outubro.
O pagamento do quantitativo da indemnização arbitrada constitui, para o Estado, o cumprimento de uma obrigação definitiva, vinculativa, não condicionada e sem carácter de liberdade, sendo certo que o réu não contesta o direito do lesado a ser ressarcido, nem o dever do Estado de pagar essa indemnização.
Tendo o lesado exercido os seus direitos contra o Estado, uma vez que este satisfez o crédito daquele, adquiriu, na medida do que pagou, os direitos do lesado à correspondente indemnização, em conformidade com o estipulado pelo artigo 593º, nº 1, do CC.
Aliás, nem sequer é pressuposto do pedido de indemnização pelo Estado a instauração de processo criminal, muito menos, como defende o réu, a dedução pelo lesado, dentro ou fora do processo-crime, de qualquer pedido de indemnização, sob pena de preclusão do seu direito, face ao princípio da adesão obrigatória, consagrado no artigo 71º, do Código de Processo Penal.
Sendo de prever, razoavelmente, que o réu não tenha capacidade de reparar o dano causado com a morte da vítima, até porque lhe foi concedido o solicitado benefício do apoio judiciário, para a presente acção, por comprovada insuficiência económica, pelo Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Castelo Branco, nas modalidades de pagamento de honorários a patrono escolhido, dispensa do pagamento da taxa de justiça e dispensa do pagamento total dos demais encargos do processo, e, não sendo previsível, por outro lado, que se possa obter de outra fonte uma reparação efectiva e suficiente daquele dano, restava ao lesado o recurso ao pedido de concessão de uma indemnização pelo Estado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º, nº 1, a), b) e c), 4º, nºs 1 e 2, do DL nº 423/91, de 30 de Outubro, e 7º, nº 2, do Decreto Regulamentar nº 4/93, de 22 de Fevereiro.
É que, sem embargo de o lesado não se ter constituído ou não poder constituir-se parte assistente no processo penal, nem haver deduzido pedido de indemnização civil contra o ora réu, no processo-crime, em conformidade com o disposto pelos artigos 71º a 84º, do Código de Processo Penal, daí não resulta inviabilizada a sub-rogação pelo Estado, pois que este satisfez a indemnização aquele, no pressuposto substantivo que consta da parte final da alínea c), do nº 1, do artigo 1º, do DL nº 423/91, de 30 de Outubro, de que não era de prever, razoavelmente, que o réu tivesse capacidade de reparar o dano causado com a morte da vítima, ou que fosse possível obter de outra fonte uma reparação efectiva e suficiente do dano de morte verificado.
Com efeito, e, em princípio, o pedido de indemnização formulado pelo lesado deve ser apresentado contra o Estado, sob pena de caducidade, no prazo de um ano, a contar da data do facto, independentemente da instauração de processo criminal, hipótese em que tal prazo pode ser prorrogado e só expira, após decorrido um ano sobre a decisão que lhe põe termo, atento o preceituado pelo artigo 4º, nºs 1 e 2, do DL 423/91, de 30 de Outubro, sendo certo que, e tal importava que acontecesse, aquando da concessão da indemnização, por parte do Estado, o lesado ainda não tinha obtido qualquer reparação do seu dano.
Ora, tendo o Estado ficado sub-rogado nos direitos do lesado, considerando ainda que, com a sub-rogação, o montante do crédito não se modifica, mas apenas muda a pessoa do credor, os meios de defesa que o devedor lhe pode opor são aqueles que lhe era lícito invocar contra o lesado/credor, nos termos do disposto pelos artigos 594º e 585º, ambos do CC, visto que a sub-rogação deve sempre considerar uma transmissão legal do crédito Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 1973, 311 e nota 1; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada1997, 291 e 288; Meneses Cordeiro, Obrigações, 2º volume, 1990, reimpressão, 105..
Porém, o réu não invoca qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva do crédito do lesado, como, igualmente, a não alega, em relação ao próprio Estado, sub-rogado nos direitos daquele.
Assim sendo, é manifesto que o réu está constituído na obrigação de pagar ao Estado a quantia por este reclamada e que, oportunamente, satisfez ao lesado.
Improcedem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações do apelante.

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CONCLUSÕES:

I - Concedida a indemnização a que estava obrigado, o Estado, na qualidade de terceiro, directamente, interessado na satisfação do crédito, adquire, na medida da satisfação dada aos direitos do lesado, os poderes que ao mesmo competiam, ficando sub-rogado, por força da lei, nos direitos deste contra o autor dos actos intencionais de violência ou as pessoas com responsabilidade meramente civil, dentro dos limites da indemnização prestada, podendo, por isso, demandar o réu, até ao montante que tiver satisfeito, nos termos do estipulado pelos artigos 130º, nº 4, do Código Penal, e 9º, do DL nº 423/91, de 30 de Outubro.
II - Não é pressuposto do pedido de indemnização pelo Estado a instauração de processo criminal, muito menos, a dedução pelo lesado, dentro ou fora do processo-crime, de qualquer pedido de indemnização.
III - Sendo de prever, razoavelmente, que o réu não tenha capacidade de reparar o dano causado com a morte da vítima, até porque lhe foi concedido o benefício do apoio judiciário, e não sendo previsível obter de outra fonte uma reparação efectiva e suficiente daquele dano, restava ao lesado o recurso ao pedido de concessão de uma indemnização pelo Estado, não resultando inviabilizada a sub-rogação deste que, com base na aludida previsão, satisfez a indemnização pedida pelo lesado.

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DECISÃO:
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedentes ambas as apelações e, em consequência, em confirmar, inteiramente, as decisões recorridas.
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Custas de ambas as apelações, a cargo do réu.