Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
612/05.6TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: MANDATO
PROCURAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 11/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 236.º; 238, Nº 1; 798.º; 799.º, N.º 2; 1157.ºDO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Toda a representação voluntária tem atrás de si uma determinada relação jurídica que a justifica e que, por via de regra, está coligada ao contrato mandato, tipificado no artigo 1157.º do Código Civil, como aquele em que uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra.
2. Deste modo, a interpretação do conteúdo e significado dos poderes representativos outorgados por meio da procuração não pode deixar de ter em conta, não apenas o negócio que o representado quis efectivamente realizar, ao constituir o seu procurador, como a eventual relação jurídica – pré-existente entre representado e representante – que haja motivado o nascimento do acto em que se traduz a procuração, e que pode não decorrer ou não decorrer exclusivamente dos termos expressos no documento em que esta se mostra materializada.
3. Isto é, embora os negócios formais não consintam que o intérprete violente ou despreze o texto do respectivo documento, por força do disposto no artigo 238, nº 1 do Código Civil, esta mesma norma pressupõe que a declaração pode e deve ser interpretada de harmonia com a vontade realmente apurada do declarante – nomeadamente com recurso a elementos externos ou ao contexto do próprio documento – se ela for conhecida do declaratário (artigo 236 do Código Civil).
4. Assim, acordados os termos da venda de imóveis e pago o seu preço, se o vendedor mandatou o comprador para outorgar a escritura de venda a terceiros ou a ele próprio, e sendo intenção das partes realizar o negócio efectivamente celebrado entre si, não pode o mandatário, usando a procuração, vender a terceiro, em nome do mandante, por preço que implique um encargo fiscal superior ao que lhe competiria em consequência da venda efectivamente acordada, sob pena de incorrer em obrigação de indemnizar o mandante.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A.....e mulher B.....intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Hospital uma acção declarativa com processo ordinário contra C..... e D....., pedindo a condenação dos Réus no pagamento da quantia de € 16.928,68, acrescida dos juros de mora, à taxa legal que se venceram sobre as quantias 16.440,86 €, a contar de 16.10.2003, e 448,00 €, a contar 30.03.2004, ou, quando assim se não entenda, a contar de 01.01.2004, até integral pagamento.

Para tanto alegam que tendo ajustado verbalmente com o Réu marido, em Junho de 1995, pelo preço global de Esc. 6.130.000$00, a venda de três imóveis de que eram proprietários, o mesmo Réu, com o fito de se furtar à incidência fiscal sobre o negócio, logrou convencê-los a não outorgar a escritura pública que competia ao contrato prometido, mas antes, em seu lugar, mediante o pagamento do remanescente daquele preço, a outorgar a favor dele uma procuração irrevogável contendo poderes para vender, pelos preços e condições que tivesse por convenientes, inclusive a si próprio, os mencionados prédios; que aquele Réu, uma vez munido da referida procuração, sem nada comunicar aos AA., viria, em 12 de Fevereiro de 1999, a vender a um terceiro o dito conjunto predial, pelo preço de Esc. 22.600.000$00, que embolsou integralmente como se dono do negócio fosse; sucede que os AA. foram intimados pela administração fiscal a pagar IRS sobre a mais valia inerente a esta venda, calculada em função do mencionado preço de Esc. 22.600.000$00, tendo por causa disso satisfeito o imposto de € 16.440,86 e, bem assim, juros de mora 488,00, que, no entanto, correspondem ao lucro que exclusivamente foi auferido pelos Réus com tal negócio; que não obstante a interpelação dos AA. para o ressarcirem desse prejuízo, os RR. recusam abrir mão da respectiva importância.

Contestaram os Réus, negando qualquer artifício do Réu marido na obtenção da procuração, uma vez que esta reflectiu a efectiva vontade dos AA.; que a mais-valia invocada na acção como por eles suportada é superior à resultante dos critérios legais, para além de não levar em conta a importância de € 75.000,00 de benfeitorias que, entretanto, os RR. aplicaram nos imóveis. Terminam com a improcedência da acção.

Houve réplica, tendo os AA. rematado como na petição.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância, sem qualquer tipo de impugnação:

1. O Réu casou com a Ré em 16 de Abril de 1992, dedicando-se desde então à actividade de compra e venda de imóveis.

2. O Réu dedicava-se profissionalmente, e dedica-se ainda, à actividade lucrativa de compra e venda de bens imóveis.

3. No mês de Junho de 1995, os Autores, como vendedores, e o Réu, como comprador, ajustaram, verbalmente, um negócio de compra e venda de três prédios, sendo um rústico, sito às Tapadas, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo n.º 2749, e dois urbanos, ambos sitos na Quinta das Tapadas, inscritos na respectiva matriz sob os artigos n.º 222 e n.º 223, todos da freguesia de Aldeia das Dez, deste concelho e comarca de Oliveira do Hospital.

4. O preço global ajustado pela compra e venda destes três referidos prédios foi de 6.130.000$00.

5. O Réu entregou então aos Autores, e estes receberam daquele, a título de sinal e princípio de pagamento do preço, a quantia de 1.130.000$00.

6. Tendo sido acordado que a quantia restante do preço (5.000.000$00) seria paga no acto da escritura, cuja data para a sua outorga seria indicada pelo Réu.

7. Por escritura pública[1] exarada em 02/02/1996, da qual se encontra certidão a fls. 30 a 33 que aqui se dá por integralmente reproduzida, os Autores declararam: “Que, com a faculdade de substabelecer, constituem procurador o Sr. C........, a quem conferem os necessários e especiais poderes, para vender, pelos preços e condições que tiver por convenientes, inclusive a si próprio, um prédio rústico inscrito na concernente matriz da dita freguesia de Aldeia das Dez sob o artigo 2749, e dois prédios urbanos inscritos na matriz da freguesia de Aldeia das Dez, já referenciada, sob os artigos 222 e 223; conferem ainda poderes para vender um prédio urbano, omisso na concernente matriz da aludida freguesia de Aldeia das Dez, sito à Matosa ou Tapadas, a confrontar de todos os lados com o mandante varão, com a superfície coberta de quarenta e cinco metros quadrados; para outorgar e assinar as competentes escrituras ou contratos promessa e representá-los perante quaisquer entidades ou repartições públicas... e tudo o mais que preciso for aos fins deste mandato, que é irrevogável e não caduca por morte ou interdição dos mandantes, por ser também conferido no interesse do mandatário, nos termos da lei civil vigente".

8. Com a escritura pública outorgada pelos Autores em 02/02/1996, quiserem os autores e o réu, na realidade, titular o negócio referido em 3.

9. Em 02/02/1996, o Réu entregou aos Autores os restantes 5.000.000$00 do preço acordado.

10. Os Autores estavam cientes que o Réu realizava o negócio com eles movido pelo lucro, que perseguia no exercício da sua actividade, e com pleno conhecimento que o réu iria vender os imóveis a terceiro por valor superior ao que lhes tinha pago.

11. Os Autores nunca declararam para efeitos fiscais o preço de 6.130.000$00 que receberam pelo negócio referido em 3.

12. Entre 1996 e 1999, o Réu realizou obras, a suas próprias expensas, num dos prédios urbanos, designadamente o restauro exterior e interior da casa de habitação.

13. E a colocação de vedação, a abertura de acessos, a colocação de calçada portuguesa nos espaços em volta da casa de habitação, a abertura de furo para abastecimento de água, e a instalação de electricidade e respectiva baixada, a qual estava a cerca de 1 km daquele local.

14. Em 24 de Fevereiro de 2007, o custo das obras realizadas pelo réu seria de € 98.953,52.

15. Por escritura pública exarada em 12/02/1999 a folhas 90 a 93 do Livro de Notas para Escrituras Diversas número 58-H do Terceiro Cartório Notarial de Lisboa, da qual se encontra certidão a fls.35 a 42 que aqui se dá por integralmente reproduzida, o réu, outorgando na qualidade de procurador dos autores, declarou vender, pelo preço total de 22.260.000$00, a Rodrigo Diniz dos Santos Abrantes (também representado no acto pelo Réu), que declarou comprar, os prédios mencionados na “supra” referida procuração.

16. O Réu marido outorgou a escritura pública de compra e venda na qualidade de procurador, mas, na realidade, actuou na convicção de ser ele próprio dono e vendedor dos prédios.

17. O Réu recebeu e fez seu o indicado preço de 22.260.000$00.

18. O Réu, por exercer profissionalmente a actividade de compra e venda de imóveis, e actuando como tal, sabia que esta venda dos prédios a um terceiro por aquele preço, por ele efectivamente realizada, embora em nome dos autores, viria necessariamente a ser sujeita a tributação fiscal e ao consequente pagamento de impostos.

19. O Réu sabia também que estes impostos, apesar de respeitarem a um negócio, viriam a ser liquidados em nome dos autores e que sobre estes viria a recair a obrigação legal de os pagar ao Estado, tal como efectivamente aconteceu.

      20. Os Autores foram notificados pela Repartição de Finanças de Oliveira do Hospital, através dos seus ofícios de 21/10/2002 e 20/03/2003, para apresentarem novas declarações de IRS por omissão de rendimentos provenientes da alienação efectuada através da escritura pública celebrada em 12/02/1999.

            21. Por força de nova liquidação de IRS dos autores relativa ao ano de 1999, englobando também o rendimento da alienação dos prédios, pelo preço de 22.260.000$00, e juros compensatórios no montante de € 3.503,71, os autores pagaram € 20.134,76 de IRS (€ 211,95 pagos em 24/12/2002 + € 19.922,81 pagos em 16/10/2003), acrescidos de € 597,68 de juros de mora (pagos em 30/03/2004).

         

                                                                              *

A apelação.

São as seguintes as conclusões que culminam as alegações dos apelantes e que confinam o objecto do pronunciamento desta Relação:

1) Para conclusão do contrato de compra e venda dos identificados prédios aos ora recorrentes e ao recorrido marido, encontrando-se já pago o preço, apenas faltava titular a sua transmissão, através de escritura a marcar por este, servindo-se para este fim da procuração, outorgada pelos Autores em 02/02/1996, pois foi por esta forma que quiseram, na realidade, titular este negócio;

2) Deste modo, ao Réu marido restava, no uso dos poderes conferidos pela procuração, vender a si próprio os prédios e outorgar a necessária escritura;

3) Mas, à revelia do acordado, decidiu realizar venda própria e directa dos prédios a terceiro, em nome dos recorrentes, dissimulando a sua qualidade de real vendedor, tendo conseguido, por esta sinuosa via, como foi sua intenção, eximir-se à obrigação de pagar os impostos ao Estado, devidos por esta transacção própria e pelos lucros que arrecadou;

4) Sabia, porém, que, por se tratar de um negócio seu, em relação à qual os recorrentes eram completamente alheios, viria a prejudicá-los, sujeitando-os ao pagamento de impostos por eles não devidos, tal como efectivamente aconteceu;

5) Através deste expediente, que congeminou, conseguindo subtrair-se à tributação incidente sobre o valor desta venda própria, fê-la recair deliberadamente sobre os recorrentes;

6) Agiu com denotada deslealdade e má fé negocial, movido pelo desígnio de querer prejudicar a contraparte, o que conseguiu, aproveitando-se da boa fé e da confiança que nele foi depositada pelos recorrentes;

7) Constituiu-se, por isso, na obrigação de reparar esta lesão patrimonial que culposamente causou aos recorrentes, ex vi do disposto nos Art°s 227° e 562° e segs. do Código Civil;

8) Além disso, tendo colhido vantagem patrimonial com esta venda, própria, que lhes proporcionou enriquecimento do seu património comum, aos recorridos cumpria o dever legal de manifestar fiscalmente o concernente resultado ou lucro que obtiveram, e pagar os correspondentes impostos, e não aos recorrentes, que eram alheios a esta venda e aos seus resultados;

9) Mas, mais do que a omissão deste dever legal, actuaram dolosamente com o fito de onerar, como efectivamente oneraram, os recorrentes com tal pagamento, locupletando-se injustamente à custa destes, o que configura, em face do disposto no art.º 473 do CC, manifesto enriquecimento sem causa.

Não houve contra-alegações.

                                                                            *

São, pois, duas as questões que aparecem levantadas no recurso, que se reconduzem a saber:

1º - Se há ou não lugar à indemnização dos AA. pelo dano por eles suportado com o imposto pago pela mais valia efectivamente realizada pelos RR., nomeadamente decorrente da ou deslealdade negocial do Réu marido, ora apelado, ex vi do art.º 227 do CC ou do ilícito incumprimento do acordado com aqueles;

2º - Se se verifica enriquecimento sem causa em favor dos Réus, traduzido no não pagamento do referido imposto, que viria a ser satisfeito à custa do empobrecimento patrimonial dos AA..

Sistematicamente esta segunda questão aparece submetida à consideração deste tribunal de recurso de modo subsidiário relativamente à primeira.

Vejamos então.

Sobre a invocada obrigação de indemnizar que recaíria sobre os Réus mercê da conduta contratual do R.marido.

A este propósito, ponderou-se na sentença recorrida que "não se provou a 'culpa in contrahendo' do Réu, nos termos do art° 227° Código Civil, geradora da sua obrigação de indemnizar, mas antes que os Autores assumiram o risco da sua conduta desconforme à lei, pagando, consequentemente, o montante da liquidação que lhes foi feita, e que, aliás, não impugnaram".

Importa, por isso, cuidar de analisar cada uma das premissas que teriam conduzido a esta conclusão.

 

A chamada culpa in contrahendo pode emergir – assim se depreende do texto do nº1 do art.º 227 do Código Civil - da conduta da parte tanto nos preliminares como na formação do contrato e cobre designadamente a violação dos seguintes deveres impostos pela lealdade e boa fé negociais[2]:

O dever de cada um deles se exprimir claramente, a fim de evitar ao outro falsas interpretações do seu comportamento;

O dever de não começar negociações que se saibam de antemão condenadas ao malogro ou à celebração de um negócio que não seja válido;

O dever de não abandonar arbitrariamente as negociações encetadas;

O dever de comunicar à contraparte alguma causa de nulidade do negócio.

Do precedente enunciado flui à evidência que a responsabilidade chamada de pré-contratual pode advir, não apenas da frustração de um negócio, como também da conclusão de um negócio válido, só possível por virtude do comportamento desleal de uma das partes. 

A sentença começou por afastar a ideia de do R. marido baseando-se na previsibilidade para os AA. do subsequente comportamento deste na utilização que veio a fazer da procuração, vendendo os imóveis a terceiros em nome dos AA., previsibilidade - ou razoabilidade – que estaria pressuposta, quer nos próprios termos em que a mesma procuração foi outorgada, quer no conhecimento que aqueles possuíam da actividade lucrativa de revenda de imóveis a que o referido R. se dedicava.    

O aresto ora impugnado estribou, assim, o seu raciocínio, por um lado, no âmbito dos concretos poderes que, mediante a procuração de 2 de Fevereiro de 1996, os AA. teriam concedido ao R. marido; e, por outro lado, na circunstância de aqueles se acharem "cientes que o réu realizava o negócio com eles pelo lucro", pelo que não "poderiam ter deixado de antecipar a liquidação de mais valias que lhe foi feita".

Importa desde já frisar que, diante das respostas, formalmente limitativas, mas ao cabo e ao resto substancialmente negativas, dadas aos quesitos primeiro a quinto e oitavo e nono da base instrutória, difícilmente seria defensável a teoria da do R. na emissão da procuração em causa[3], uma vez que nenhuma acção ou omissão é concretamente imputada à conduta do Réu, anterior ou contemporaneamente à feitura da procuração.

É certo que se provou que o Réu sabia que os impostos da venda dos prédios a terceiros seriam liquidados em nome dos Autores. Só que esse facto não postula que esse mesmo Réu, quando obteve a procuração, tivesse o propósito de, utilizando o nome daqueles, proceder à venda dos prédios a terceiros.

Neste quadro, nada na matéria provada inculca que os AA. tenham sido induzidos à declaração em que concederam os poderes negociais ao R. Rogério e, ainda menos, que aqueles tenham sido vítimas de um engenho ou artifício – como por aqueles vinha alegado – que por este teria sido criado para possibilitar o desvio da incidência fiscal sobre a mais valia proveniente da venda dos prédios a terceiros.

A materialidade relevante para aferição da liberdade da declaração e da vontade das partes é, por conseguinte, aquela que se acha consignada no facto provado em 8, e que não mereceu qualquer objecção no vertente recurso:

Com a procuração outorgada pelos autores em 02/02/1996, quiserem os autores e o réu, na realidade, titular o negócio referido em 3. – (al. G) da matéria de facto assente).            

No que concerne ao documento que corporizou a mencionada procuração, cuja fotocópia autenticada se encontra junta a fls. 31 a 33, trata-se, como se vê do respectivo teor, de um documento que materializa um mandato "(...) que é irrevogável e não caduca por morte ou interdição dos mandantes, por ser também conferido no interesse do mandatário, nos termos da lei civil vigente".

Mais se colhe do aludido documento que os ora apelantes aí declararam conferir ao Sr. C..... – ora apelado – "os necessários e especiais poderes, para vender, pelos preços e condições que tiver por convenientes, inclusive a si próprio" os prédios aí mencionados.

Na decisão proferida na 1ª instância deu-se, desde logo, como certo e adquirido que, suportado neste documento, o apelado e Réu marido teria actuado legítimamente ao vender a terceiros os imóveis pertencentes aos AA. pelo preço e condições em que veio a acordar com esses terceiros.

Salvo devido respeito, não podemos sufragar esta tese.

Cuidar-se-á de indagar se – como se inculca no veredicto da 1ª instância - o apelado e Réu marido, ao vender os imóveis a Rodrigo Dinis dos Santos Abrantes (também representado por aquele R.), pela escritura pública de 12/02/99, actuou legítimamente, ou seja, a coberto dos poderes e dentro dos fins prosseguidos com procuração exarada pelos apelantes.

Por outras palavras, há que averiguar se, mesmo sem matéria que possa integrar o conceito de na conduta do R. marido e apelado, ainda assim se pode afirmar que este, violando o mandato e a vontade dos mandantes, praticou um facto ilícito – aqui de natureza necessariamente contratual - que o constitua na obrigação de indemnizar os Autores.

Para tanto interessará fundamentalmente precisar qual foi a real intenção das partes ao acordarem na emissão da procuração em discussão.

O negócio visado pelos AA. com a emissão da procuração era, sem dúvida, a venda dos imóveis em questão.

A procuração é um negócio jurídico unilateral que se destina à representação do seu autor pelo procurador num negócio subsequente e determinável – art.º 262, nºs 1 e 2 do CC.

Mas associada à procuração esteve presente, ainda, uma convergência de vontades no sentido de um mandato, celebrado pelos AA., como mandantes, com o R. Rogério, este na veste de mandatário, no sentido de este proceder à venda dos imóveis discriminados no aludido instrumento. Era este o acto jurídico que, nos termos do art.º 1157 do CC, o mandatário estava encarregado de praticar por conta dos mandantes, sendo por causa desse desiderato que os AA. lhe outorgaram a procuração.

Ora, nos termos do nº 2 do art.º 262 do C.Civil, "Salvo disposição em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar".

Tratando-se de venda de imóveis - à data carecida de escritura pública (art.ºs 875 do CC e 89, al. a) do C. do Notariado) - a procuração destinada a atribuir os poderes representativos respectivos tinha de constar de instrumento notarial, pelo que se situava no domínio dos negócios sujeitos a forma legal, nos termos dos art.ºs 219 e 220 do CC.             

Há que distinguir, porém, entre o negócio jurídico unilateral que é a procuração e a forma utilizada para o negócio, legal ou convencional, sendo que esta é apenas um modo de aparência da declaração negocial, sem que, contudo, esta se esgote na forma adoptada.

Como escreve Manuel de Andrade[4] "A noção de forma dos negócios jurídicos, tal como costuma ser utilizada, pressupõe que para a validade da declaração negocial não admite a lei todo e qualquer comportamento declarativo - toda e qualquer acção idónea para exteriorizar de vontade. Pressupõe que a lei estatui certas limitações a tal respeito; que a declaração de vontade negocial só tem eficácia quando realizada através de certo tipo de comportamentos ou acções declarativas. Esse tipo é que constitui a forma negocial. A forma dos negócios jurídicos pode pois definir-se na seguinte fórmula cujo sentido será o que resulta do exposto: é uma determinada figuração exterior prescrita para a respectiva declaração ou declarações de vontade (VON TUHR)".

Apesar da lei não impor que certos negócios formais se expressem com terminologia rígida - como sucedia no direito romano o emprego de palavras solenes ou sacramentais, caso da stipulatio  - a massificação de muitas das formas negociais acabou por aprisionar as próprias declarações negociais dentro de modelos estereotipados.

A especial manifestação requerida para os negócios formais consiste afinal na mera necessidade de documento escrito.

A procuração, que o art.º 262, nº 1 do C.Civil define como o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos, embora possa nascer autonomamente, está normalmente ligada a um contrato, que pode ser de mandato ou de outro tipo, p. ex. de trabalho.

Aliás, no domínio do C. Civil de 1867, o contrato de mandato, que também se designava de procuradoria, era conceptualizado no art. 1318 respectivo como existindo sempre que "... alguma pessoa se encarrega prestar, ou fazer alguma coisa, por mandado e em nome de outrem", dizendo-se procuração "... o documento, em que o mandante ou constituinte exprime o seu mandato..."(art.º 1319).

Toda a representação voluntária tem atrás de si uma determinada relação jurídica que a justifica e que, por via de regra, está coligada ao contrato mandato, tipificado no art.º 1157 do C.Civil, como aquele em que uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra.[5]  

Deste modo, a interpretação do conteúdo e significado dos poderes representativos outorgados por meio da procuração não pode deixar de ter em conta, não apenas o negócio que o representado quis efectivamente realizar, ao constituir o seu procurador, como a eventual relação jurídica – pré-existente entre representado e representante – que haja motivado o nascimento do acto em que se traduz a procuração, e que pode não decorrer ou não decorrer exclusivamente dos termos expressos no documento em que esta se mostra materializada.

Isto é, embora os negócios formais não consintam que o intérprete violente ou despreze o texto do respectivo documento, por força do disposto no art.º 238, nº 1 do CC, esta mesma norma pressupõe que a declaração pode e deve ser interpretada de harmonia com a vontade realmente apurada do declarante - nomeadamente com recurso a elementos externos ou ao contexto do próprio documento[6]- se ela for conhecida do declaratário (art.º 236 do CC).

Se há declarações negociais que para serem correcta e integralmente determinadas precisam de ser conexionadas e harmonizadas com o contexto em que surgem documentadas, isto é, materializadas, são aquelas em que alguém voluntariamente confere poderes representativos a outrem.

Foi exactamente isto que o veredicto agora sob censura não fez, postergando por inteiro qualquer esforço interpretativo da procuração a que se reporta o documento de fls. 31 e seguintes dos autos.

Cingindo-se ao teor literal do documento, nomeadamente à possibilidade nele inscrita de o procurador, por mandato irrevogável, poder vender os imóveis pelos preços e condições que tivesse por convenientes, inclusive a si próprio, logo a M.ma Juíza se considerou habilitada a deduzir que o Réu ficou senhor dos mais amplos poderes para transaccionar livremente os bens em apreço, incluindo a venda imediata a terceiros, quando e nos termos que bem lhe aprouvesse.

Ora bem se vê que a terminologia constante do documento titulante da procuração não foi específicamente elaborada, antes reflecte um modelo estereotipado, uma fraseologia ritualizada, atribuindo ao procurador os amplos poderes que são usuais para situações semelhantes.  

Na verdade, na prática, a tarefa de balizar o exacto fim da procuração estava até singularmente facilitada pela circunstância de ter sido levado à matéria provada o já supra mencionado facto, segundo o qual "Com a procuração outorgada pelos Autores em 02/02/1996, quiseram os Autores e o Réu, na realidade, titular o negócio referido em 3. – (al. G) da matéria de facto assente).

Querer titular é, afinal, o equivalente a querer titular do ponto de vista da vontade das partes. Mas o que já não se nos afigura é que alguma vez pudesse estar na previsão dos mandantes Autores - que o mesmo é dizer que tivesse sido por eles interiorizado - que o R. marido, de posse da procuração, pudesse alienar arbitrariamente  os imóveis sem previamente formalizar a aquisição proveniente dos AA., de tal sorte que todos os efeitos do negócio se produzissem na esfera dos representados.

Com efeito, sendo o mandato representativo, o mandatário actua em nome e por conta do mandante – art.ºs 1157, 1178, nºs 1 e 2 e 258 do CC.

Daí que nenhum efeito do acto praticado na execução do mandato se produza na esfera jurídica do pretenso mandatário.

Todavia – conforme o ínsito em 9 dos factos provados - no mesmo dia em que foi emitida a procuração – em 2/02/1996 – o R. até satisfez a totalidade do preço acordado com os AA. para a compra dos prédios, entregando-lhes então os restantes Esc. 5.000.000$00. Por isso, não se vê que outro negócio deveria o procurador realizar[7] se não a formalização da própria escritura pública, então necessária à aquisição para si dos imóveis dos AA.. Se os AA. tivessem em vista a venda dos imóveis a terceiros através da representação do Réu para que serviria o preço já recebido deste? E se este consistia na totalidade da contrapartida acordada, como se imputaria na compra e venda ajustada com os AA. em Junho de 1995 o recebimento de um novo preço? E se o apelado e Réu marido quis funcionar como procurador dos AA. ora apelantes na escritura de 12/02/99, porque razão – como se vê do provado em 17 – "recebeu e fez seu o indicado preço de 22.260.000$00" em vez de o entregar àqueles AA., supostos donos do negócio?

A única interpretação plausível para a declaração da vontade dos AA. é, por conseguinte, a de que estes, ao outorgá-la, terão suposto que o R. marido, ora apelado, dela se serviria para intervir como comprador dos imóveis logo que isso lhe conviesse, para a partir daí concretizar a revenda lucrativa dos mesmos, no exercício da actividade que aqueles AA. já conheciam (cfr. o facto provado em 10).

Assente esta premissa, há que afoitamente avançar para a constatação de que o R. marido, sob pena de violar grosseiramente as instruções dos mandantes, não podia vender os prédios directamente aos terceiros seus hipotéticos clientes em nome e por conta dos Autores, porquanto bem sabia não ser esse o desejo ou a vontade destes, nem o objecto do que com eles havia acordado.

Ou seja, o R. C....., ao intervir na escritura de compra e venda de 12/02/99, nos moldes em que o fez, incumpriu o mandato de que estava investido.

E incumpriu, sem dúvida, com culpa grave, em função da presunção ínsita no art.º 799, 2 do C.Civil, dado que sabia que iria atirar para os ombros dos AA. o imposto respeitante à mais valia calculada com o negócio que em nome deles concretizou, respondendo pelos prejuízos provocados à outra parte com o seu inadimplemento, nos termos do art.º 798 do CC.

Por outro lado, a sua ilícita conduta foi causa adequada do dano sofrido pelos AA., espelhado no IRS adicional que lhe foi imputado[8], já que, sem aquela conduta nunca seria de esperar[9] que estes vissem a administração fiscal exigir-lhes uma nova liquidação do IRS do ano de 1999, da qual emergiu o pagamento do imposto atinente à mais valia supostamente gerada pela venda do R. marido.

Quanto à dimensão deste dano atender-se-á - porque só isso vem pedido - ao diferencial entre o imposto que os AA. tiveram de pagar - € 20.134.76 – e o que pagariam se o negócio tivesse sido feito com o R. marido no modo ajustado - € 3.693,90  - isto é, € 16.440,86, além da proporção nos juros de mora que tiveram de suportar - € 488,00, respondendo os RR. – a Ré mulher pelo proveito comum, ao abrigo do art. 1691, nº 1, alíneas c) e d) do CC – pela soma destes valores, desde 16/10/2003 e 30/03/2004, datas em que se verificaram o pagamento, respectivamente, do imposto e dos juros de mora fiscalmente liquidados aos AA.[10]

Com o êxito da primeira das questões colocadas prejudicado fica o interesse da apreciação da segunda questão.

Donde que o recurso alcance integralmente o seu objectivo.

Pelo exposto, julgando procedente a apelação, revogam a sentença recorrida, e, julgando a acção procedente por provada, condenam os Réus a pagar aos Autores a quantia de € 16,928,86, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 16/10/2003 sobre € 16.440,86, e desde 30/03/2004 sobre 488,00, até integral pagamento.

Custas em ambas instâncias pelos apelados.


[1] Há aqui um lapso evidente pois a sentença e o saneador queriam reportar-se à procuração aludida em 7, pelo que se passará a considerar a referência a esta.
[2] Conforme o ensinamento de Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 2ª ed. , Atlântida, p.120-121.
[3] Em que se perguntava, essencialmente, se, ao convencer os Autores a passar a procuração com o recebimento do remanescente do preço da venda, o R. teve o premeditado intuito de lhes ocultar "a sua qualidade de comprador" (sendo certo que o que aqui se quis efectivamente significar foi o premeditado intuito de vir a vender directamente os prédios a terceiros) e se actuou com o premeditado e alcançado estratagema de não aparecer aos olhos da lei e do fisco como verdadeiro titular destes negócios.
[4] Teoria Geral, 1972, V. II, p. 48.
[5] Sendo certo que a lei também admite e regula hoje a figura do mandato dito sem representação.
[6] Cfr. P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, 1979, V. I, em observação ao artigo em apreço, citando o Ac. do STJ de 18/07/72 in BMJ 219, p. 225 e seg.s.
 
[7] E que é indissociável da procuração, como se pode constatar da respectiva disciplina legal, nomeadamente dos art.ºs 262, nº 2, 263 ou 268, nº 1 do CC.
[8] Conforme a materialidade provada em 20 e 21.
[9] Aplicando aqui a formulação negativa da teoria da causalidade adequada a que aderiu o art.º 563 do CC, os AA. provavelmente não teriam sofrido esse dano senão fosse o facto lesante do R.
[10] Conforme o facto provado em 21 e o docs. de fls. 58 a 61.