Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1950/06.6PBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: NAVALHA DE PONTA E MOLA
ARMA PROIBIDA
Data do Acordão: 04/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO CRIMINAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 86.º, N.º 1 DA LEI 5/2006, DE 23.02.
Sumário: I. – Uma navalha cuja lâmina tenha um comprimento inferior a 10 cm, ainda que ela se encontre recolhida no cabo e deste possa ser extraída de forma instantânea, através do simples accionamento de uma mola sob pressão, não preenche o conceito de faca de ponta e mola para efeitos de preenchimento do tipo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, d), do RJAM.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.

No 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Aveiro, sob acusação do Ministério Público, que lhe imputava a prática de um crime detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, nº 1, d), 90º e 91º, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, com referência aos arts. 2º, nº 1, ar), 3º, nº 2, e), e 4º, nº 1, da mesma lei, foi o arguido N..., solteiro, estudante, nascido em Peso da Régua e aí residente, submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular.
Realizado o julgamento, por sentença de 25 de Setembro de 2008, foi o arguido condenado, pela prática do imputado crime, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 5, perfazendo a multa global de € 300.
Inconformado com a decisão, dela recorre o arguido, formulando no termo da respectiva motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1. Não havendo dúvida de que o arguido/recorrente agiu sem consciência da ilicitude do facto que lhe foi imputado, não se aceita que o erro em que incorreu lhe possa ser censurado, nos termos do regime consignado no art. 17º/2, do Código Penal (CP), devendo ter sido absolvido, por aplicação do disposto no art. 17º/1, do mesmo CP.
2. A fundamentação aduzida na sentença recorrida, para sustento do juízo de censurabilidade do erro sobre a ilicitude, não se mostra consistente nem aceitável, uma vez que não passa de um mero juízo conclusivo, sem qualquer dado objectivo que o suporte, designadamente, que mostre a bondade da afirmação, dessa forma gratuita, de que qualquer cidadão, muito mais quando licenciado, teria obrigação de conhecer a ilicitude da detenção de uma navalha como a dos autos.
3. Aos invés, constam do texto da sentença elementos que permitem apontar para a aceitação ético-jurídica do erro, não sendo, assim, censurável, como é o caso de a navalha em questão se vender, franqueadamente e em exposição pública, perante os olhares de todos, mesmo das autoridades, em feiras, mercados e lojas.
4. Não é por ser licenciado que o arguido, tendo acabado os seus estudos recentemente, sendo jovem, teria dever reforçado de se aperceber da ilicitude do facto, não explicando a sentença como chegou a essa ideia, contrapondo-se que os ambientes frequentados pelo recorrente menos propícios teriam sido para ajudar à consciência do facto como ilícito.
5. O facto de o arguido ter dito, logo na altura da apreensão, que detinha as navalhas, e o comportamento que assumiu aí e no Tribunal, referindo a razão de deter as navalhas, conjugado com o que já se disse, só abonam a favor da sua formação ética e do seu acervo axiológico, não se tendo ficado a dever a falta de consciência da ilicitude a uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade do recorrente, que, de todo, não resultou dos autos, nem a sentença recorrida foi capaz de, com um mínimo de consistência, deixar demonstrada
6. De acordo com o exposto, a sentença recorrida traduz incorrecta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, designadamente, do comando legal do art. 17º, do Código Penal.
Pelo que, no provimento do presente recurso, deve revogar-se a sentença recorrida, e, em sua substituição, proferir-se outra que declare o erro sobre a ilicitude do facto em que incorreu não censurável, e absolva o arguido/recorrente da prática do crime por que vinha acusado, parecendo-nos que, assim se decidindo, resultará mais bem aplicada a lei e realizada a JUSTIÇA.
(…)”.
Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, alegando ter sido efectuada uma correcta apreciação da prova, estar a sentença devidamente fundamentada, e ter sido efectuada uma correcta subsunção jurídico-penal, concluindo pela manutenção da sentença.
Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual se pronunciou pela procedência do recurso.
Foi cumprido ao disposto no art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a única questão por si suscitada é a de saber se o erro sobre a ilicitude lhe deve ou não, ser censurado.
Como questão prévia, há que conhecer do preenchimento do tipo em questão.
Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:
A) Na sentença foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
1. No dia 13 de Fevereiro de 2007, cerca das 12 horas e 15 minutos, no parque de estacionamento da Universidade de Aveiro em Aveiro, o arguido N... tinha na sua posse um canivete, composto por cabo com o comprimento de 11 centímetros e lâmina cortante com o comprimento de, pelo menos, 6 centímetros e uma navalha, dotada de lâmina cortante com 9 (nove) centímetros de comprimento e de um cabo que encerra tal lâmina, sendo que esta é armada e exibida, de modo instantâneo, por meio de accionamento de uma mola sob tensão, através da pressão de um botão – tratando-se de uma navalha de abertura automática ou de ponta e mola.
2. O arguido N... não tinha qualquer motivo válido e legítimo para trazer consigo tais instrumentos, nomeadamente a navalha de abertura automática mencionada.
3. Na circunstância descrita, o arguido agiu livre e conscientemente desconhecendo, contudo, que a sua conduta era ilícita e punida pela lei penal.
4. Na ocasião referida em 1. o arguido tinha consigo os objectos ali mencionados porque se sentia perseguido e ameaçado por outro indivíduo e assim intimidado, muniu-se daqueles objectos para a eventualidade de ter de se defender.
5. O arguido não tem antecedentes criminais.
6. O arguido vive com os pais. É Técnico Oficial de Contas, recém licenciado e à procura de trabalho, não dispondo, de momento, de qualquer rendimento próprio.
(…)”.
B) Foram considerados não provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
Não resultaram provados quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, nomeadamente que na circunstância descrita, o arguido soubesse que não lhe era permitido deter a navalha apreendida, por ser de uso proibido por lei e que, ainda assim a tenha querido deter, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
(…)”.
C) E quanto à fundamentação de direito, dela consta (transcrição):
“ (…).
Existe, pois, em nosso entender erro sobre a ilicitude do facto, nos termos previstos no artigo 17º do Código Penal, nos termos do qual:
“1 – Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2 – Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada".
Em nosso entender, o arguido actuou com erro sobre a ilicitude do facto, na medida em que efectivamente não tinha consciência de que a sua conduta era ilícita, contudo, consideramos que o seu erro é censurável, aplicando-se o disposto no nº 2 do artigo 17º do Código Penal.
Com efeito, o arguido, tal como qualquer outro cidadão de mediano entendimento e formação, como é o arguido, sendo certo que o arguido é licenciado e, portanto, com uma formação acima da média, sabe, deveria saber que o uso daquela arma é proibido.
Aliás, é o próprio arguido quem admite que transportava essa arma para se servir dela, caso sentisse necessidade, como arma de agressão contra um indivíduo que o perseguia e ameaçava.
A Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro entrou recentemente em vigor, mas a verdade é que, já em face da anterior legislação sobre uso e porte de armas a arma em causa era considerada de uso e porte proibido por ser arma branca com disfarce.
Assim, o arguido como pessoa de mediana capacidade e preocupação com a licitude das actividades que desenvolve, deveria conhecer a ilicitude da sua conduta e, não a conhecendo, não pode tal desconhecimento deixar de lhe ser censurável.
Atento o exposto, verifica-se que o arguido actuou sem dolo, mas sendo o erro sobre a ilicitude censurável, nos termos do disposto no art. 17º nº 2 do Código Penal, será punido com a pena supra referida especialmente atenuada.
(…)”.
Do preenchimento do tipo do crime detenção de arma proibida
1. O arguido foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, nº 1, d), 90º e 91º, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, com referência aos arts. 2º, nº 1, ar), 3º, nº 2, e), e 4º, nº 1, da mesma lei.
Na sentença recorrida considerou-se estar preenchido o tipo objectivo deste crime, com base na seguinte factualidade provada:
- No dia 13 de Fevereiro de 2007, pelas 12 horas e 15 minutos, no parque de estacionamento da Universidade de Aveiro, em Aveiro, o arguido tinha na sua posse uma navalha dotada de lâmina cortante com 9 cm de comprimento e de um cabo que encerra tal lâmina, sendo esta [lâmina] armada e exibida de modo instantâneo, através do accionamento de uma mola sob tensão, através da pressão de um botão, navalha esta designada por navalha de abertura automática ou de ponta e mola;
- O arguido não tinha qualquer motivo válido e legítimo para trazer consigo esta navalha.
1.1. O Regime Jurídico das Armas e suas Munições, que passaremos a designar por RJAM, foi aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, e entrou em vigor 180 dias após a sua publicação (art. 120º).
O RJAM tem por âmbito o fabrico, montagem, reparação, importação, exportação, transferência, armazenamento, circulação, comércio, aquisição, cedência, detenção, manifesto, guarda, segurança, uso e porte de armas, seus componentes e munições, bem como o enquadramento legal das operações especiais de prevenção criminal (art. 1º, nº 1).
Numa tentativa de uniformização de conceitos com vista a eliminar as dúvidas a que havia dado lugar a anterior e fragmentada legislação sobre armas e munições, o RJAM estabelece no art. 2º uma lista de definições legais, a ser observada quer na sua aplicação, quer na sua regulamentação.
O nº 1 do art. 2º, ao longo de dezenas de alíneas, elenca os tipos de armas.
Na alínea l) encontra-se definida «arma branca» como “todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinada a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões”.
Assim, para efeitos do RJAM, são armas brancas:
- Os instrumentos dotados de lâmina de comprimento igual ou superior a 10 cm;
- Os instrumentos dotados de outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm;
- Os instrumentos com parte corto-contundente, independentemente das suas dimensões; e,
- Os instrumentos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões.
Por sua vez, na alínea ar) encontra-se definida «faca de abertura automática ou faca de ponta e mola» como “a arma branca composta por um cabo ou empunhadura que encerra uma lâmina, cuja disponibilidade pode ser obtida instantaneamente por acção de uma mola sob tensão outro sistema equivalente”.
Como se vê, a definição legal de «faca de abertura automática ou faca de ponta e mola» integra o conceito de arma branca. O cuidado de pormenorização posto pelo legislador nas definições legais contidas no art. 2º do RJAM denota a intencionalidade da colocação da expressão arma branca e portanto, do seu significado legal, na definição legal de faca de abertura automática ou faca de ponta e mola. Tal só pode pois significar que as características da arma branca terão, necessariamente, que ser encontradas na faca de ponta e mola.
1.2. Dispõe o art. 86º – com a epígrafe «Detenção de arma proibida» – nº 1, d), do RJAM:
Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer outro meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo (…): Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a), do nº 7, do artigo 3º, armas lançadoras de gases, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b), do nº 7 do artigo 3º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais de arma de fogo, munições, bem como munições com os respectivos projécteis expansivos, perfurantes, explosivos ou incendiários, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias.”.
Estamos perante um crime de perigo comum abstracto, que tutela a segurança da comunidade face ao risco que decorre da livre circulação e detenção de armas proibidas, engenhos e explosivos (cfr. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 891).
O seu tipo objectivo preenche-se, além do mais, com a simples detenção pelo agente, de uma faca de abertura automática.
Mas, como atrás vimos, a faca de abertura automática ou faca de ponta e mola é também, e antes de mais, uma arma branca, para os efeitos previstos no RJAM. Porque a arma branca exige uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm, também a faca de abertura automática ou faca de ponta e mola, para efeitos penais, tem que estar dotada de lâmina de comprimento igual ou superior a 10 cm.
Assim, se porventura, a lâmina tiver um comprimento inferior a 10 cm, ainda que ela se encontre recolhida no cabo, e deste possa ser extraída de forma instantânea, através do simples accionamento de uma mola sob pressão, não estaremos perante uma faca de ponta e mola, para os efeitos do RJAM designadamente, para efeitos de preenchimento do tipo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, d), do dito regime (cfr. Acs. da R. do Porto de 3 de Dezembro de 2008, proc. nº 0845701, e de 4 de Fevereiro de 2009, proc. nº 0817506, in, http://www.dgsi.pt).
A solução legal pode ser criticável na medida em que não existe diferença sensível no perigo criado pela detenção de uma faca de ponta e mola com uma lâmina de 10 cm de comprimento, e no perigo criado pela detenção de uma faca de ponta e mola com uma lâmina de 7, 8 ou 9 cm de comprimento. Mas neste âmbito, há que respeitar o princípio da tipicidade.
2. A navalha detida pelo arguido tem uma lâmina com 9 cm de comprimento a qual é encerrada no cabo respectivo, e armada e exibida de modo instantâneo, através do accionamento de uma mola sob tensão, através da pressão de um botão.
O seu modo de funcionamento é pois, idêntico ao de qualquer faca de abertura automática ou faca de ponta e mola. Porém, o tamanho da lâmina, porque inferior a 10 cm de comprimento, retira-lha a qualidade de arma branca e consequentemente, a qualidade de faca de abertura automática ou faca de ponta e mola, face às disposições conjugadas do art. 2º, l) e ar), do RJAM.
Desta forma, a detenção da referida navalha pelo arguido é insusceptível de preencher o tipo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, d), do RJAM.
Em conclusão, por falta de preenchimento do tipo, impõe-se a absolvição do recorrente.
Da censurabilidade do erro sobre a ilicitude
3. Era esta, como se disse, a única questão suscitada pelo arguido no recurso. Porém, face ao anteriormente decido, fica prejudicado o seu conhecimento.
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação, ainda que por outros fundamentos, em conceder provimento ao recurso.
Em consequência, decidem absolver o arguido N... da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, d), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.