Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2236/04.6TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: SERVIDÃO
CONSTITUIÇÃO
USUCAPIÃO
PRAZO PARA A INVOCAÇÃO DA USUCAPIÃO
PRAZO DE EXTINÇÃO DAS SERVIDÕES
Data do Acordão: 04/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 1287º; 1297º; 1547º, Nº 1; 1548º; 1569º; E 1574º, TODOS DO C.CIV.
Sumário: I – As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família – artº 1547º, nº 1, C. Civ.

II – Contudo, as servidões não aparentes – assim sendo consideradas as que não se revelem por sinais visíveis e permanentes – não podem ser constituídas por usucapião – artº 1548º C.C.

III – A usucapião é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, baseada na posse pública e pacífica por certo lapso de tempo – artºs 1287º e 1297º C. Civ.; uma vez invocada, os seus efeitos retroagem à data do início da posse – artº 1288º C. Civ.

IV – A lei não estabelece qualquer prazo para o possuidor invocar a usucapião, ainda que seja, entretanto, desapossado do bem.

V – O limite para a passividade do possuidor da servidão de passagem é-nos dado pelos artºs 1569º e segs. do C. Civ., ou seja, a servidão extingue-se, entre outras razões, pelo não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo (nº 1, al. b)) e pela aquisição, por usucapião, da liberdade do prédio (nº 1, al. c), e artº 1574º).

Decisão Texto Integral:

         Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A... e esposa B..., ele médico e ela empregada agrícola, residentes na Rua Miguel Torga, 358, 8º Dtº, 3030-165 Coimbra, intentaram acção declarativa, com processo comum e forma sumária, contra C..., viúvo, D... e marido E..., F... e marido G... e H... e mulher I..., todos residentes em Rebordinho, freguesia de S. João de Lourosa, Viseu, pedindo a condenação dos RR. a:

         a) Reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio identificado no artigo 1º;

         b) Reconhecerem que o seu prédio se acha onerado com uma servidão de passagem de pé e carro a favor do prédio dos AA., nos termos referidos na petição inicial;

         c) Retirarem todos os objectos que colocaram no leito da passagem;

         d) Absterem-se de por qualquer modo dificultar ou impedir o livre exercício do direito de servidão referido.

         Para tanto, os AA. alegaram, em síntese, que, por o terem adquirido por usucapião, são donos e legítimos possuidores de um terreno de cultura, vinha, oliveiras e outras árvores de fruto com mato e pinhal, sito à Quinta de Vilela, freguesia de S. João de Lourosa, Viseu, a confrontar do norte, sul e poente com o caminho público e nascente com os RR. e caminho, inscrito na matriz sob o artigo 3413; que os RR., mais concretamente, a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de J..., falecida mulher, mãe e sogra dos RR. e da qual estes são em conjunto os seus únicos titulares, é dona de um prédio que confronta do lado nascente com o prédio dos AA., constituído por uma casa de habitação com rés do chão e 1º andar, pátio, dependências e logradouro, que confronta do nascente e sul com a rua, do poente com os AA. e do norte com os próprios e se acha inscrita na matriz sob o artigo 553; que o prédio dos AA. goza de uma servidão de passagem de pé e carro a onerar o referido prédio dos RR., constituída por usucapião; que os RR., em particular o 1º R. e, ao tempo, a sua falecida esposa, resolveram bloquear o acesso dos AA. ao seu prédio através da dita servidão, colocando no respectivo leito objectos vários; e que tal situação é mantida pelos actuais RR., em claro desrespeito pelo direito de servidão invocado.

         Os RR. C..., F... e marido G... e H... e mulher I... contestaram por excepção e por impugnação. Por excepção arguíram a ilegitimidade da A. mulher e a verificação de caso julgado. Por impugnação negaram a existência da invocada servidão de passagem e, caso tenha existido, a extinção da mesma por não uso.

         Os AA. responderam pugnando pela improcedência das excepções e concluindo como na petição inicial.

         Foi proferido despacho saneador-sentença em que se julgou procedentes as excepções arguidas na contestação – ilegitimidade da A. e caso julgado – e se absolveu os RR. da instância.

         Inconformados, os AA. recorreram, tendo logrado êxito no recurso, pois, pelo acórdão desta Relação de fls. 142 a 146 foi julgada improcedente a excepção de caso julgado e revogado – e mandado substituir por outro que assegurasse os ulteriores termos do processo – o despacho recorrido.

         Saneada, condensada e instruída a acção, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 270 a 277 decidindo a matéria de facto controvertida.

         Foi depois emitida a sentença de fls. 280 a 293 condenando os Réus a reconhecerem o direito de propriedade do Autor e absolvendo-os do demais pedido.

         Irresignado, o A.[1] interpôs recurso e, tendo-as omitido na alegação, formulou, após convite nesse sentido, as conclusões seguintes:

         1) Foram provados factos suficientes susceptíveis de configurar a aquisição por usucapião (invocada no artigo 13 da p.i.), a favor do prédio dos ora recorrentes, de uma servidão de passagem de pé e de carro, a onerar o prédio dos recorridos.

         2) Não existem nos autos, porque não foram provados, actos praticados pelos recorridos susceptíveis de permitir a conclusão de que a servidão a favor do prédio dos recorrentes não foi usada durante 20 anos, não podendo, assim, ter aplicação o disposto no artigo 1569 nº 1 b) do Código Civil.

         3) A actuação dos recorridos, in casu, foi de mera turbação do exercício do constituído direito de servidão de passagem pelos recorrentes, nunca tendo impedido estes totalmente de passar e muito menos durante o período de 20 anos.

         4) Os recorrentes nunca perderam efectivamente a posse da servidão, apenas viram restringido o seu pleno e irrestrito exercício.

         5) Os recorrentes sempre demonstraram, ao longo dos anos, através das vicissitudes das acções que propuseram e dos actos de posse de passagem contra a actuação dos recorridos, que nunca esteve no seu espírito nem na sua conduta, a possibilidade de deixarem de exercer a servidão e muito menos pelo apontado período de 20 anos.

         Os apelados não responderam.

         Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se, face à factualidade provada nos autos, deviam ou não ter sido os RR. condenados na totalidade do pedido, maxime, a reconhecerem que sobre o seu prédio se encontra constituída, por usucapião, uma servidão de passagem de pé e de carro a favor do prédio do A.


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         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se assente a factualidade dada como provada na 1ª instância e que é a seguinte:

         2.1.1. Inscrito na matriz sob o art. 3413 encontra-se um terreno de cultura, vinha, oliveiras e outras árvores de fruto com mato e pinhal, sito à Quinta de Vilela, freguesia de S. João de Lourosa, Viseu, a confrontar do norte poente[2] com o caminho público e nascente com os Réus e caminho [al. A) da factualidade assente logo após os articulados].

2.1.2. Por si e antecessores, o autor habita, melhora o prédio referido em a) e paga a contribuição, o que faz de forma consecutiva há mais de 20 e 50 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, sempre agindo na convicção de exercer um direito [al. B) da factualidade assente logo após os articulados].

2.1.3. Inscrito na matriz sob o art. 553 encontra-se uma casa de 1º andar, loja, pátio, dependências de construção antiga com 164 m2 que confronta do norte com o proprietário, sul caminho, nascente caminho, e poente proprietário[3], tendo como nome do titular C... [al. C) da factualidade assente logo após os articulados].

2.1.4. O Réu C... e mulher habitam tal prédio, conservam-no, nele criaram a prole, o que acontece durante mais de 20 anos, de forma pública, pacífica e contínua com animo domini [al. D) da factualidade assente logo após os articulados].

2.1.5. Na parte nascente do prédio referido em A) e à extrema com o prédio referido em C) a deitar directamente para este existe uma saída/entrada constituída por uma porta, com 2,5 metros de largura, ladeada por duas ombreiras de pedra trabalhada e encimada com um telhado de duas águas, para nascente e poente coberto de telhas [al. E) da factualidade assente logo após os articulados].

2.1.6. No leito do trato de terreno referido em E), os Réus colocaram chapas metálicas e madeiras debaixo da cobertura da porteira, chegando a ocupar o prédio referido em A) [al. F) da factualidade assente logo após os articulados].

2.1.7. O que impede a passagem [al. G) da factualidade assente logo após os articulados].

2.1.8. Sob a saída/entrada referida em E) acha-se um terreno limpo e batido de passagem de pessoas e carros (resposta ao quesito 1º da base instrutória).

2.1.9. Vestígios esses que se iniciam e prolongam para dentro e ao longo do prédio referido em C) até atingir o caminho público que se situa para nascente (resposta ao quesito 2º da base instrutória).

2.1.10. A factualidade referida na resposta ao quesito 1º, nos termos mencionados na resposta ao quesito 2º, supra, existe no local de forma consecutiva há pelo menos 50 anos (resposta ao quesito 3º da base instrutória).

2.1.11. O telhado aludido em E) tem as águas salientes para ambos os lados da passagem e foi construído pelos antecessores do Autor (resposta ao quesito 4º da base instrutória).

2.1.12. Por si e pelos seus antecessores o autor passava pelo trato de terreno referido em E) de pé, para a rua com carros de mão, de bois e tractores para a rua pública e desta para o prédio referido em A), até ao ano de 2000, data em que a passagem ficou definitivamente bloqueada (resposta ao quesito 5º da base instrutória).

2.1.13. O facto referido na resposta ao quesito 5º ocorria quando era necessário e de forma esporádica (resposta ao quesito 6º da base instrutória).

2.1.14. E desde o período mencionado em B) até ao ano de 2000 (resposta ao quesito 7º da base instrutória).

2.1.15. À vista de toda a gente mas apenas desde o período mencionado em B) até ao ano de 2000 (resposta ao quesito 8º da base instrutória).  

2.1.16. Sem oposição mas apenas desde o período mencionado em B) até ao ano de 2000 (resposta ao quesito 9º da base instrutória).

2.1.17. E na convicção de exercer um direito próprio mas apenas desde o período mencionado em B) até ao ano de 2000 (resposta ao quesito 10º da base instrutória).

2.1.18. Desde 2000 que o autor não transita pelo espaço referido em E) (resposta ao quesito 11º da base instrutória).

2.1.19. Desde há vinte anos que os Réus têm vindo a ocupar progressivamente o trato de terreno que medeia entre a parede da casa e o muro que delimita o prédio referido em A) com lenhas, matos, alfaias agrícolas (resposta ao quesito 12º da base instrutória).

2.1.20. Cultivam as videiras que ladeiam aquele trato de terreno, podando-as, velando pela sua conservação, colhendo as uvas por elas geradas (resposta ao quesito 13º da base instrutória).

2.1.21. Desde o ano de 2000 que apenas os Réus, com exclusão de qualquer que seja, por ali transitam para as dependências da casa, de pé e de carro (resposta ao quesito 14º da base instrutória).

Nos termos dos artºs 713º, nº 2 e 659º, nº 3 do Cód. Proc. Civil, por se encontrarem provados por documento e por poderem mostrar-se relevantes para a decisão, considero ainda assentes os factos seguintes:

2.1.22. Em 13/01/1987, o A. A... intentou no Tribunal Judicial da comarca de Viseu acção declarativa, com processo comum e forma sumária, à qual coube o nº 10/87, contra o R. C... e sua mulher;

2.1.23. Na qual pedia a condenação dos RR., além do mais, a reconhecerem a existência de servidão de passagem constituída sobre (o prédio dos RR.) e a favor do prédio do A., bem como a demolirem o “barraco” construído, permitindo assim a passagem e acesso à quinta do A. por aquele local.

         2.1.24. Essa acção foi julgada improcedente por saneador-sentença de 13/10/1988, por insuficiência da factualidade alegada para conduzir à pedida constituição da servidão de passagem por usucapião;

         2.1.25. Correu também termos pelo Tribunal Judicial da comarca de Viseu a acção sumária nº 17/91, em que figuravam como A. A... e como RR. C... e mulher;

         2.1.26. Na qual era pedida a condenação dos RR. a, além do mais, reconhecerem o direito de propriedade do A. sobre o “caminho de acesso à Quinta” e a demolirem o abrigo de traves, cimento e chapa que ali edificaram, assim permitindo o acesso à Quinta por aquele local.

         2.1.27. Essa acção foi julgada improcedente por sentença de 22/05/1995.


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         2.2. De direito

         Há que começar por afirmar que, tal como foi decidido na sentença recorrida, decorre sem quaisquer dúvidas da factualidade provada que o A. é dono e possuidor do prédio rústico composto de terreno de cultura, vinha, oliveiras e outras árvores de fruto, com mato e pinhal, sito à Quinta de Vilela, freguesia de S. João de Lourosa, Viseu, a confrontar do norte, sul e poente com o caminho público e nascente com os Réus e caminho, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3413.

         Com efeito, tendo em atenção os factos constantes dos pontos 2.1.1. e 2.1.2., supra e o disposto nos artºs 1251º, 1256º, 1261º, 1262º, 1287º, 1288º e 1296º do Cód. Civil, forçoso se mostra concluir que o A., porque, por si e antepossuidores, tem a posse pacífica e pública daquele prédio há mais de vinte e cinquenta anos consecutivamente, o adquiriu originariamente por usucapião.

         O A. goza também da presunção de propriedade prevista no artº 7º do Cód. Reg. Predial, uma vez que, como resulta das certidões constantes de fls. 111/112 e 162/163, o aludido prédio se encontra inscrito a seu favor, desde 23/06/1992, na 1ª Conservatória do Registo Predial de Viseu.

         A apontada propriedade do A., reconhecida na sentença recorrida, não é sequer contestada pelos RR.

         O que os RR. contestam, contrariando a pretensão do A. nesse sentido, é a constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem de pé e carro, beneficiando o indicado prédio do A. e onerando o prédio dos RR. composto de casa de 1º andar, loja, pátio e dependências de construção antiga, a confrontar do norte com o proprietário, sul e nascente caminho e poente A., inscrito na matriz respectiva sob o artigo 553.

         Na sentença recorrida deu-se, nessa parte, razão aos RR., os quais foram absolvidos “do pedido de reconhecimento que o prédio destes se encontra onerado com uma servidão de passagem de pé e de carro a favor do prédio do Autor, assim como a retirarem todos os objectos que colocaram no leito de passagem e de se absterem por qualquer modo de dificultar ou impedir o livre exercício do direito de servidão referido”.

         Considerou-se, para tanto, que, apesar de estarem reunidos, antes do ano de 2000, os requisitos legalmente exigidos para o A. adquirir por usucapião a servidão de passagem em litígio, as circunstâncias de não ter invocado essa forma de aquisição originária de direitos reais enquanto era possuidor e de entretanto ter perdido a posse, torna inoperável a usucapião a seu favor.

         O A. discorda, entendendo que o Mº Juiz “a quo”, “não obstante o seu esforço e todo o cuidado posto na fundamentação da sua decisão, acabou por se deixar, no final, enredar em equívocos jurídicos e por distorcer a verdadeira equação do problema sub judice”.

         Vejamos, então.

         Encontra-se provado que na parte nascente do prédio do A. e à extrema com o prédio dos RR., a deitar directamente para este, existe uma saída/entrada constituída por uma porta, com 2,5 metros de largura, ladeada por duas ombreiras de pedra trabalhada e encimada com um telhado de duas águas, para nascente e poente, coberto de telhas, sob a qual se acha, de forma consecutiva, há pelo menos cinquenta anos, um terreno limpo e batido de passagem de pessoas e carros, o qual se inicia e prolonga para dentro e ao longo do prédio dos RR. até atingir o caminho público que se situa para nascente; o telhado referido tem as águas salientes para ambos os lados da passagem e foi construído pelos antecessores do Autor, o qual, por si e pelos seus antecessores, desde há mais de 20 e 50 anos e até ao ano 2000, quando era necessário e de forma esporádica, passava pelo tracto de terreno aludido, a pé, com carros de mão, de bois e tractores, para a rua pública e desta para o seu prédio, à vista de toda a gente, sem oposição, e na convicção de exercer um direito próprio; os RR., desde há vinte anos têm vindo a ocupar progressivamente o tracto de terreno que medeia entre a parede da casa e o muro que delimita o prédio do A. com lenhas, matos e alfaias agrícolas, cultivando as videiras que ladeiam aquele tracto de terreno, podando-as, velando pela sua conservação, colhendo as uvas por elas geradas; no tracto de terreno mencionado, os Réus colocaram chapas metálicas e madeiras debaixo da cobertura da porteira, chegando a ocupar o prédio do A., o que impede a passagem, motivo pelo qual o A. não transita, desde o ano de 2000, pelo espaço referido, por onde, desde aquela data, apenas os Réus, com exclusão de quem quer que seja, transitam, de pé e de carro, para as dependências da casa.

As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família (artº 1547º, nº 1 do CC). Contudo, as servidões não aparentes – assim sendo consideradas as que não se revelem por sinais visíveis e permanentes – não podem ser constituídas por usucapião (artº 1548º do CC).

A servidão de passagem reivindicada pelo A. é aparente, constituindo sinais visíveis e permanentes dela reveladores a saída/entrada constituída por uma porta com 2,5 metros de largura, ladeada por duas ombreiras de pedra trabalhada e encimada com um telhado de duas águas, para nascente e poente, a deitar directamente para o prédio dos RR., bem como o tracto de terreno limpo e batido da passagem de pessoas e carros que, passando pelo prédio dos RR., liga essa porta ao caminho público que se situa a nascente.

Nada obsta, portanto, a que a mesma possa, como sustenta o A., ter-se constituído por usucapião.

A usucapião é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, baseada na posse pública e pacífica por certo lapso de tempo (artºs 1287º e 1297º do CC). Invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (artº 1288º do CC).

         Face à factualidade provada, já acima transcrita e que nos dispensamos de aqui transcrever novamente, tem de concluir-se que o A., por si e antepossuidores, teve a posse contínua, pública e pacífica desde há mais de 20 e 50 anos, até 2000, da passagem de pé e carro que liga o seu prédio, através da porta mencionada no ponto 2.1.5., supra, ao caminho público situado a nascente e cujo leito integra o prédio dos RR.

         A tal não obsta, como decorre do artº 1572º do Cód. Civil, a circunstância de, desde há vinte anos, os RR. virem a ocupar progressivamente o leito da passagem com lenhas, matos e alfaias agrícolas, cultivando, podando, velando pela conservação e colhendo os frutos das videiras que o ladeiam e de, a partir do ano 2000, o A. ter deixado de por ele transitar, só os RR. o fazendo.

Aqui chegados, a pergunta que se coloca é a de saber se, em tais circunstâncias, o A. adquiriu ou não, por usucapião, com efeitos desde o início da posse, a pretendida servidão.

Na sentença recorrida entendeu-se que não porquanto a usucapião não actua automaticamente, necessitando de ser invocada (artºs 1292º e 303º do CC) e o A. não a invocou até 2000, enquanto tinha a posse, não lhe valendo a invocação feita nesta acção, quando já a perdera a favor dos RR. [artº 1267º, nº 1, al. d) do CC].

Há que dizer, em primeiro lugar, que o A. invocou a posse anteriormente, nomeadamente na acção nº 10/87, sendo inequívoca, pelo menos desde essa altura, a sua vontade de adquirir a servidão por usucapião.

E, depois, sempre com o máximo respeito por opinião contrária, que a lei não estabelece qualquer prazo para o possuidor, ainda que entretanto desapossado, invocar a usucapião.

Aliás, se não houver qualquer perturbação ou esbulho da posse e, no caso da servidão de passagem, o trânsito pela mesma for acatado e respeitado, não se vê por que razão o titular do direito haveria de ir a tribunal pedir o reconhecimento do mesmo. O interesse em agir, nesse caso, está directa e totalmente ligado à contestação da posse ou ao desapossamento.

O limite para a passividade do possuidor da servidão de passagem é-nos dado pelos artºs 1569º e seguintes do Cód. Civil. Ou seja, a servidão extingue-se, entre outras razões que aqui não relevam, pelo não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo [nº 1, al. b)] e pela aquisição, por usucapião, da liberdade do prédio [nº 1, al. c) e artº 1574º]. E esses limites não foram, no caso, atingidos.

         A vingar a tese sustentada na sentença recorrida a “usucapio libertatis” que o artº 1574º do Cód. Civil submete aos requisitos e prazos da usucapião operaria no prazo de um ano e os RR. teriam logrado libertar o seu prédio da servidão e readquirir a plenitude do direito de propriedade sobre ele no brevíssimo prazo de um ano após o início da posse, já que, a partir daí, o possuidor da servidão estaria impedido de invocar a usucapião.

         Parece-nos notório que tal tese não pode deixar de soçobrar.

         Logram êxito, portanto, as conclusões da alegação do recorrente, o que conduz à procedência da apelação e à revogação parcial da sentença recorrida, com a consequente  procedência da acção.


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em:

         3.1. Julgar a apelação procedente;

         3.2. Revogar parcialmente a sentença recorrida;

         3.3. Julgar a acção provada e procedente e, por isso, condenar os RR. a:

                   a) Reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio rústico composto de terreno de cultura, vinha, oliveiras e outras árvores de fruto, com mato e pinhal, sito à Quinta de Vilela, freguesia de S. João de Lourosa, Viseu, a confrontar do norte, sul e poente com o caminho público e nascente com os Réus e caminho, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3413 e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o nº 1662/19920623;

                   b) Reconhecerem que o seu prédio – casa de 1º andar, loja, pátio, dependências de construção antiga com 164 m2 que confronta do norte com o proprietário, sul e caminho e poente A., inscrito na matriz sob o art. 553 – se acha onerado com uma servidão de passagem de pé e carro a favor do prédio dos AA.;                

c) Retirarem todos os objectos que colocaram no leito da passagem;

                   d) Absterem-se de por qualquer modo dificultar ou impedir o livre exercício do direito de servidão referido.

         As custas quer da acção, quer da apelação, são a cargo dos RR./apelados.


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                                                                  Coimbra,


[1] Embora o requerimento de interposição do recurso e a alegação tenham sido apresentados em nome do A. e mulher, esta não é já parte na causa, pois o despacho saneador parcialmente – na parte relativa à excepção de caso julgado – revogado pelo acórdão desta Relação de fls. 142 a 146 transitou em julgado na parte referente à excepção da ilegitimidade da A. (questão que não integrou o objecto daquele recurso).
[2] É esta a redacção constante da al. A) da matéria de facto assente após os articulados (cfr. fls. 175) e como tal foi inserida na sentença.
  Contudo, trata-se da matéria alegada no artº 1º da petição inicial e aí consta «a confrontar do norte sul e poente» e não «a confrontar do norte poente».
[3] É esta a redacção constante da al. C) da matéria de facto assente após os articulados (cfr. fls. 175) e como tal foi inserida na sentença.
  Contudo, trata-se da matéria alegada no artº 5º da petição inicial e aí consta que confronta de poente com os AA. (e não com proprietário).