Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
470/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA BAPTISTA
Descritores: DESPACHO PROFERIDO PELO JUIZ DE CIRCULO E PELO JUIZ DA COMARCA
Data do Acordão: 03/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ART.º 115.º N.º 2 C.P.C.
Sumário:

1. O Juiz de Círculo, como presidente do Tribunal Colectivo, não pode declarar o seu Tribunal incompetente para conhecer da matéria dos autos, cabendo antes tal decisão ao próprio Tribunal Colectivo - órgão colegial - a que ele presidirá.
Mas, não arguida tal irregularidade, que não é de conhecimento oficioso, está a mesma sanada.
2. Fazendo-se a distinção entre o tribunal singular e o tribunal colectivo no plano interno do tribunal competente, estaremos, in casu, não perante uma incompetência em razão da matéria, mas sim em sede de competência funcional ou em razão da estrutura.
3. Estando-se, de qualquer modo, perante um caso de incompetência relativa, embora de conhecimento oficioso.
4. Assim, a decisão primeiramente transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que de conhecimento oficioso. Ficando o outro Tribunal a ela vinculado.
5. E, mesmo que se entenda que se estará perante um conflito aparente de decisões, entre a primeiramente proferida e primeiramente transitada em julgado e a outra, que não deveria sequer ter tido lugar - devendo ter acatado a primeira - deverá esta ceder segundo o regime legal dos casos julgados contraditórios.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


Veio o M.P., visando a resolução de um conflito negativo de competência instalado entre o senhor Juiz (auxiliar) do Círculo Judicial da Figueira da Foz e o senhor Juiz do 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Cantanhede, os quais, por despachos, respectivamente de 21/10/2003 e 21/11/2003, transitados em julgado, negaram a competência própria, afirmando a do outro para conhecer de uns autos de expropriação que com o nº 621/2001 foram instaurados naquele Tribunal de Cantanhede, intentar o presente processo.
Os senhores Juízes em conflitos, quando notificados, produziram as suas alegações, nelas mantendo as suas posições iniciais.
O Exmo Magistrado do M.P. junto desta Relação é de parecer que o conflito deve ser resolvido no sentido de ser atribuída competência ao senhor Juiz do Tribunal Judicial de Cantanhede.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

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Determina o art. 115º, nº 2 do CPC que há conflito negativo de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram incompetentes para conhecer da mesma questão.
Acrescentando o nº 3 do mesmo preceito legal que não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.
Embora não se trate, in casu, de despachos proferidos por tribunais judiciais diferentes, o certo é que ambas as autoridades ditas em conflito pertencem, sem dúvida, à mesma ordem jurisdicional hierarquizada - cfr LOFTJ (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro), e, designadamente, arts 67º e 104º e ss.
As decisões em apreço transitaram em julgado.

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Questão prévia:

Em causa, e na origem do alegado conflito, estará, afinal a correcta interpretação e aplicação do preceituado no art. 58º do Código das Expropriações, aprovado pelo DL 168/99, de 18 de Setembro.
Prescrevendo o mesmo:
"No requerimento da interposição de recurso da decisão arbitral, o requerente deve expor logo as razões da discordân-
cia, oferecer todos os documentos, requerer as demais provas incluindo a prova testemunhal, requerer a intervenção do tribunal colectivo, designar o seu perito e dar cumprimento ao disposto no art. 577º do Código do Processo Civil" (o destaque é nosso).
Correndo os autos seus termos no Tribunal Judicial de Cantanhede e com vista ao agendamento de uma audiência de julgamento, já que havia sido requerido, pelo expropriado recorrente a intervenção do tribunal colectivo, julgou-se o senhor Juiz de Círculo "incompetente para conhecer da causa, sendo competente antes o Sr. Juiz do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede".
Tendo este magistrado, por seu turno, julgado o seu Tribunal incompetente para conhecer da causa, sendo competente para o efeito o Colectivo de Juizes.
Vejamos:
Antes de se entrar na análise da correcta qualificação da incompetência suscitada, já que a mesma não é suscitada, propriamente, entre dois tribunais diferentes, mas sim entre o 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede e o senhor Juiz de Circulo, atentemos no seguinte:
Para que possa ser suscitada a resolução de um conflito de incompetência, seja ela em razão da matéria - que parece in casu se não verificar - seja por qualquer outra causa legalmente prevista, necessário é, desde logo, que haja dois despachos judiciais, transitados em julgado, a declararem os respectivos tribunais - ou o Tribunal singular ou colectivo (a chamada competência intrajudicial - Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. I, p. 124 e 139 ou a competência funcional - Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, p. 49) - incompetentes para conhecerem da questão que esteja em apreço.
Ora, os tribunais de 1ª instância funcionam, consoante os casos, e na parte que aqui interessa, como tribunal singular ou como tribunal colectivo - art. 67º da LOFTJ.
Sendo o tribunal colectivo composto por três juizes, sendo o mesmo constituído, no tribunal de comarca, salvo disposição em contrário, por dois juizes de círculo e pelo juiz do processo - art. 105º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal.
Competindo ao presidente do tribunal colectivo, na parte que também aqui pode interessar:
"a) dirigir as audiências de discussão e julgamento;
b) .............................................
c) proferir a sentença final nas acções cíveis;
d) suprir as deficiências das sentenças e dos acórdãos referidos nas alíneas anteriores, esclarecê-los, reformá-los e sustentá-los, nos termos da lei do processo;
e) exercer as demais funções atribuídas por lei" - nº 1 do art. 108º, ainda da citada LOFTJ.
Assim sendo, fácil é verificar - salvo o devido respeito - que o senhor Juiz de Círculo, na qualidade de presidente do tribunal colectivo, não tem competência, só por si, para proferir o despacho em apreço.
Tal competência caberá apenas ao próprio Tribunal - a que ele presidirá - como órgão colegial - arts 58º do C. Expropria-
ções, eventualmente conjugado com o art. 106º, al. b) e 108º, nº 1 já citado (a contrario).
E não ao senhor Juiz de Círculo.
Contudo, a irregularidade verificada não foi arguida, pelo que, não podendo ser oficiosamente conhecida, ter-se-á por sanada - arts 201º, nº 1 e 202º do CPC.

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Da questão suscitada:

Não estamos, in casu - salvo o devido respeito pelo alegado pelo M.P. requerente - perante uma incompetência em razão da matéria (art. 66º do CPC), mas sim perante uma incompetência que está antes relacionada com aquilo que se vem chamando de competência intrajudicial (a distinção entre tribunal singular e tribunal colectivo faz-se no plano interno do tribunal competente), de competência funcional ou de competência em razão da estrutura (Ac. de Tribunal Arbitral, de 14/4/98, CJ S. Ano VI, T. 2, p. 17.
Estando-se, de qualquer modo, segundo bem pensamos, perante um caso de incompetência relativa, embora de conhecimento oficioso - art. 110º, nºs 2 e 4 do CPC.
Determinando o art. 111º, nº 2 seguinte, sobre o julgamento da excepção da incompetência relativa, que "A decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada" - o destaque é nosso.
Circunscrevendo tal resolução definitiva da questão pelo Tribunal da causa a sua eficácia no âmbito do processo em que é proferida, constituindo caso julgado formal, por se tratar de decisão sobre a relação jurídica processual (art. 672º do mesmo CPC). Sendo tal decisão vinculativa para o tribunal que por ela for julgado competente - Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. I, p. 205.
Também a propósito escrevendo Teixeira de Sousa: "Como a remessa do processo para o tribunal competente não extingue a instância (cfr. arts 288º, nº 2 e 287º, al. a)), e, portanto, o processo continua pendente, a decisão da remessa é vinculativa para o tribunal para o qual ele é remetido (art. 111º, nº 3) - "Estudos sobre o novo processo civil", p. 133. Sendo de idêntica opinião, ao que tudo leva a crer, A. Varela e outros, Manual do Processo Civil, p. 226 e Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. I, p. 177, nota 2.
E, já no domínio do CPC de 1939, A. Reis, sobre o então proémio do art. 111º, parte final, que igualmente dizia, em relação à incompetência relativa, que a decisão que decidir qual o tribunal competente para a causa, após trânsito, resolve definitivamente a questão de competência, escrevia que o valor da decisão sobre a incompetência relativa "tem de ser acatado pelo novo tribunal a que a causa seja afecta." - Comentário ao CPC, I, p. 323. Não tendo havido alteração essencial do tratamento desta questão no direito actual.
Sendo certo que a solução já preconizada por A. Reis não tem sofrido contestação e tem sido, no geral, sustentada, para além dos autores já citados, por A. Castro, Lições de Processo Civil, II, pags 517 a 520, por Castro Mendes, Manual do Processo Civil, p. 207 e por Elias da Costa, CPC Anotado e Comentado, II, p. 335.
E, assim, competente para o julgamento da causa em questão será o 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, por ter ficado vinculado à decisão proferida, e transitada em julgado, pelo Juiz de Círculo respectivo - cfr., neste mesmo sentido, embora para situação de incompetência suscitada entre diferentes tribunais, Acs do STJ de 9/1/97, Procs 156/96 e 606/96, de 30/1/97, Proc. 666/96, de 5/11/98, Proc. 548/98, de 9/12/99, Proc. 555/99, de 6/1/2000, Proc. 917/99, de 2/2/2000, Bol. 494, p. 251, de 5/12/2000, Proc. 2928/2000, de 18/10/2001, Proc. 2230/2001, de 23/10/2001, Proc. 1909/01, de 21/2/2002, Proc. 209/2002, de 5/3/2002, Proc. nº 4200/01, de 25/6/2002, Proc. 1180/2002, de 27/6/2002, Proc. nº 1768/02 e de 26/11/2002, Proc. 3055/2002, o qual, acolhendo esta jurisprudência acabou por decidir o conflito, entrando no mérito, por razões específicas que nele constam (exercício ilegítimo por banda do senhor Juiz que primeiramente proferiu a decisão transitada em julgado), constando toda este elenco de decisões do parecer do MP exarado nesses mesmos autos.
E, mesmo que se entenda que, embora se esteja perante um conflito aparente de decisões, entre a primeiramente proferida pelo senhor Juiz do Círculo Judicial da Figueira da Foz e também primeiramente transitada em julgado e a outra, proferida pelo senhor Juiz do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhe-
de, que não deveria sequer ter tido lugar, por, em princípio, dever ser acatada aquela, haverá, por isto, e de qualquer modo, um conflito que tem de ser resolvido, face ao trânsito que esta última de igual modo logrou obter.
Não se devendo, contudo, apreciar o mérito, decidindo-se qual das duas soluções melhor corresponde à mais correcta interpretação da lei, aplicável em matéria de competência em razão do território.
Devendo, in casu, a segunda decisão ceder, de qualquer modo à outra, face ao disposto no art. 675º, nºs 1 e 2 do CPC (regime dos casos julgados contraditórios) - neste mesmo sentido, Ac. do STJ de 2/7/92, Bol. 419, p. 626.

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Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação, solucio-
nando-se o presente conflito, em atribuir a competência ora em causa ao 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede.
Sem custas.