Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
112/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: PENHORA
BEM HIPOTECADO
EMBARGOS DE TERCEIRO
CREDOR HIPOTECÁRIO
ILEGITIMIDADE
Data do Acordão: 03/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 351º DO CPC .
Sumário: I – O regime dos embargos de terceiro, que antes da reforma de 1995 se encontrava regulado nos artºs 1037º e segs. do CPC, encontra-se actualmente regulamentado nos artºs 351º e ss do CPC, constituindo uma modalidade especial de oposição espontânea .
II - Com a referida reforma estabeleceu-se que só a posse ou o direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial ordenada é que legitima os embargos .

III – A existência de um (ou mais) direito real de garantia sobre o bem penhorado não impede a sua venda (que será efectuada a favor do seu futuro adquirente, livre de quaisquer ónus garantísticos) e, por outro lado, esse direito caduca com a venda do bem, transferindo-se aquele direito para o produto obtido com a venda do bem .

IV – O direito hipotecário não se mostra incompatível com a penhora dos bens hipotecados, pelo que o credor hipotecário não pode lançar mão do incidente de embargos de terceiro, sendo parte ilegítima para o efeito .

Decisão Texto Integral:
Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. Por apenso aos autos de execução de execução ordinária, para pagamento de quantia certa, autuados sob o nº 1498/03, que correm termos no 2º juízo do tribunal judicial da comarca da Covilhã nos quais figuram, como exequente, A..., e, como executados, B... e C..., veio a D... deduzir os presentes autos de embargos de terceiro, pedindo, a final, que seja ordenado o levantamento da penhora levada a efeito naquela execução sobre os prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial sob os nºs 01866 e 01867 e, em consequência, bem assim o cancelamento dos respectivos registos.
Como fundamento de tal pretensão alegou para o efeito, e em síntese, o seguinte:
A embargante constituiu, por escritura pública outorgada em 30/9/97, uma hipoteca voluntária sobre o prédio urbano identificado no artº 1º da pi e que actualmente passou a ter a composição e identificação referidas no artº 3º desse seu articulado, encontrando-se inscrito na matriz sob os artºs 2099 e 2100 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o nº 00759.
Prédio esse que, na realidade, corresponde àquele que veio a ser penhorado nos sobreditos autos de execução, muito embora, devido a uma conduta ardilosa da exequente, aparecendo descrito na Conservatória sob os nºs 01866 e 01867.
Ora tal penhora ofende o direito da embargante, atenta a sua qualidade de credora com garantia hipotecária sobre o(s) bem(s) objecto da mesma, que é totalmente alheia à execução que foi movida.

2. Após ter sido proferido despacho liminar a receber tais embargos, e notificadas as partes primitivas da execução para os contestarem, apenas a exequente o veio fazer.
Para o efeito, a exequente defendeu-se por excepção e por impugnação.
No que concerne à 1ª defesa, a exequente-ora embargada invocou a ilegitimidade da embargante para deduzir este incidente, pedindo, em consequência, que fosse absolvida da instância. Excepção essa que, em síntese, fundamentou no facto de - ainda que por hipótese se admitisse que o bem imóvel sobre o qual a embargante detem a sobredita garantia hipotecária corresponde àqueles que foram objecto de penhora - o direito da última não ser incompatível com a referida penhora, tal como constitui exigência legal do referido incidente de que lançou mão.
No que concerne à 2ª defesa, negou, em síntese, que os bens imóveis objecto das referidas penhora e hipoteca sejam os mesmos.
Pelo que, para o caso de não ser julgada procedente a referida excepção dilatória, pediu sempre a improcedência dos embargos, com a manutenção da penhora aqui posta em crise.

3. No seu articulado de resposta, a embargante pugnou pela improcedência da aludida excepção deduzida pela exequente.

4. A srª juiz a quo, no despacho saneador, proferiu então decisão em que - por entender não existir qualquer incompatibilidade entre o direito das embargante e a penhora em causa -, considerando a que dedução de embargos de terceiro pela embargante, enquanto titular de um direito real de garantia, constitui uma excepção dilatória insuprível, por falta de interesse processual, acabou, com base nessa excepção, por absolver os embargados da instância.

5. Não se tendo conformado com tal decisão a embargante dela interpôs recurso, que foi admitido como agravo e com subida imediata e nos próprios autos.

5. Nas respectivas alegações de recurso que apresentou, a embargante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
“1º - O prosseguimento dos autos executivos sem que se apure da veracidade dos factos alegados pela ora Agravante em sede de Embargos de Terceiro, levarão a evidente e irrecuperável prejuízo para a Agravante.
2º - Tem a Agravante interesse próprio e processualmente legitimo na dedução dos Embargos em apreciação.
3º - A penhora de que a Agravante foi notificada e que deu origem à dedução dos Embargos de Terceiro, ora em apreciação, ofende direitos da Agravante incompatíveis com a sua realização.
4º - O douto despacho de que ora se recorre viola o disposto no artº 351º do C.P.C., na medida em que não reconhece que os Embargos de Terceiro podem ser deduzidos em caso de ofensa de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, tal como resulta dos autos.”

6. A embargada-exequente contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e pela, consequente, manutenção da decisão recorrida.

7. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II. Fundamentação

1. Os factos
Com interesse para a apreciação e decisão do recurso deve atender-se aos factos supra descritos, nomeadamente os enunciados sob os nºs 1, 2 e 4 do ponto I, sendo certo que, com base nos documentos, juntos aos autos, o tribunal a quo considerou ainda como assentes os seguintes:
- A ora embargante, por escritura pública lavrada em 30 de Setembro de 1977, a fls. 62 do Livro 147-D do Cartório Notarial da Covilhã, constituiu hipoteca sobre o prédio urbano composto de edifício de rés do chão, e 1.º andar com a superfície coberta de 850 m2 e logradouro com a área de 2150 m2, sito em Varge, freguesia do Teixoso, concelho da Covilhã, descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o n.º 00759.
- Em 20.05.2003 foi efectuado o arresto do prédio supra referido no âmbito da providência cautelar apensa a estes autos, tendo o seu registo sido recusado em 25.02.2004.
- Na execução apensa a exequente requereu a conversão do arresto em penhora relativamente ao referido prédio, a qual veio a ser recusada na respectiva Conservatória em 25.02.2004.
- Veio, então, a exequente requerer a penhora dos prédios inscritos na matriz com os nºs. 2100 e 2099 e não descritos na Conservatória do Registo Predial da Covilhã, a qual veio a ser ordenada em 30.09.2004 e efectivada em 30.10.2004, não tendo, ainda, sido junta aos autos de execução a respectiva certidão demonstrativa do registo da referida penhora.
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2. O direito
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto dos mesmos (cfr. disposições conjugadas dos artºs 664, 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, todos do CPC).
Ora, calcorreando as conclusões do presente recurso e tal como decorre de tudo o atrás exarado, a única questão que importa aqui apreciar e decidir traduz-se, no fundo, em saber se a penhora levada a efeito nos autos de execução acima identificados se mostra ou não incompatível com o direito hipotecário que a embargante alega ter sobre os imóveis que foram objecto da mesma (e isto partindo mesmo do princípio que o imóvel sobre qual a ora embargante fez constituir a sobredita hipoteca corresponde àqueles que foram objecto da penhora em causa – questão essa que, pelo que acima se deixou exarado, a exequente-ora embargada também não aceita pacificamente).
Como é sabido, o regime dos embargos de terceiro, que antes das reforma do CPC/95 se encontrava regulado nos artºs 1037 e ss, encontra-se actualmente, após tal reforma, regulamentado nos artºs 351 e ss (inserido no capítulo dos incidentes da instância - secção da intervenção de terceiros).
Como escreve o prof. Miguel Teixeira de Sousa (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 187”) “os embargos de terceiro constituem uma modalidade especial de oposição espontânea. Esses embargos destinam-se a permitir a reacção de um terceiro contra um acto judicial que ordena a apreensão ou entrega de bens e que ofende a sua posse ou qualquer direito incompatível com a realização do âmbito da diligência (artº 351, nº 1, )”.
Do confronto dos dois regimes, importa, desde logo, ressaltar as seguintes alterações introduzidas pelo actual regime no que concerne à legitimidade para embargar:
Por um lado, os embargos deixaram (como sucedia até então) de se poder basear exclusivamente na posse para se poderem também fundar na titularidade do direito de fundo, e, por outro, estabeleceu-se que só a posse ou o direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial ordenada é que legitima os embargos (vidé, neste sentido, entre outos, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil, Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, pág. 514e o Ac. do STJ de 19/9/2002, in “Rec. Agravo, nº 20011/02, 7ª sec., Sumários, 9/2002”).
Ora será que o direito que advém para a embargante resultante da hipoteca (voluntária) que constituiu sobre os prédios que foram objecto de penhora fica incompatibilizado com a realização desta, ou melhor, será que a referida penhora se mostra incompatível com aquele direito da embargante?
Vejamos.
A determinação do direito incompatível deve ser feita tendo em conta a função e a finalidade concreta quer do direito pretensamente ofendido, quer da diligência ou acto judicial que alegadamente o ofende.
Como é sabido, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artº 686, nº 1, do CC).
Direito hipotecário esse que, como é pacificamente aceite, é, assim, um verdadeiro direito real, não de gozo, mas de garantia (vidé, a propósito, e por todos, o prof. A. Varela, in “RLJ, nº 124, págs. 350 e 352”).
No artigo 817 do CC consagra-se o princípio geral de que o exequente pode executar todo o património do executado, com vista a alcançar o pagamento dos seus créditos, não pagos voluntariamente por aquele.
A penhora em causa foi efectuada num processo de execução, visando, como fim último, proceder à venda dos bens sobre os quais incidiu, para, desse modo, com o produto da sua venda, proceder ao pagamento dos credores do executado.
A esse propósito, e sobre a epígrafe “venda em execução”, dispõe o artº 824 do CC que “a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida” (nº 1), que “os bens são transmitidos livres dos direitos que os onerarem....” (nº 2), e, por fim, que “os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos referidos bens” (nº 3) – sublinhado nosso.
Ora resulta, desde logo, do exposto que a existência de um (ou mais) direito real de garantia sobre o bem penhorado não impede a sua venda (que será efectuada, a favor do seu futuro adquirente, livre de quaisquer ónus garantísticos), e, por outro lado, que esse direito, que caduca com a tal venda do bem, se transfere para o produto obtido com a venda do mesmo.
Direito esse que ali, no que concerne ao processo de execução, deverá a ser exercido nas condições legalmente previstas para o efeito, quer no que concerne ao seu reconhecimento, quer no que concerne à satisfação do direito de crédito que lhe está subjacente e que o mesmo (consubstanciado, neste caso, na hipoteca) visa garantir, nomeadamente na fase de graduação dos créditos concorrentes, e entre os quais se encontra também o “garantido” pela penhora (cfr., nomeadamente, artºs 864, nº 3 als. b), 865, nº 1, do CPC, e 686 – já acima citado -,745, 746 e 748 a 751, 759, nº 2, e 822 do CC).
Aliás nesse mesmo sentido vai, entre outros que aqui se poderiam citar, o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 616”), ao afirmar que “são incompatíveis com a penhora...o direito de propriedade e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, viriam a extinguir-se com a venda executiva (art. 824-2 CC)....mas não o são os direitos reais ...de garantia que, como normalmente acontece, encontrem sastisfação no esquema das acção executiva.” (sublinhado nosso)
Ora, face ao exposto, ter-se-á de concluir (tal como o fez a srª juiz a quo) que o direito (hipotecário) da embargante - no caso de verificar-se a coincidência total entre os bens que acima se deu nota – não se mostra incompatível com a penhora dos bens em causa levada a efeito na sobredita execução.
Incompatibilidade essa que, como supra se deixou expresso, constituía, no caso em apreço, um pressuposto essencial para que a D... pudesse lançar mão do referido incidente de embargos, ou seja, para que a mesma tivesse legitimidade para embargar, ou, melhor ainda, deduzir embargos (de terceiro) à penhora efectuada nos autos de execução acima identificados.
Logo, afigura-se-nos ser mais correcto que a questão deva ser colocada mais ao nível do plano da falta de legitimidade para embargar (excepção dilatória nominada) do que (como fez a srª juiz a quo) ao nível da falta do interesse processual em agir (excepção dilatória inominada), sendo que, de todo o modo, sempre em qualquer uma delas levaria à absolvição da instância dos embargados (cfr. artº 494 do CPC) – neste sentido afigura-se-nos ir o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit. págs. 614 e 617”) e o acordão do STJ acima citado.
Termos em que, sem mais, se decide julgar improcedente o recurso, confirmando-se a despacho recorrido (muito embora, e quanto à questão em último lugar focada, por razões não inteiramente coincidentes).
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida de absolvição dos embargados da instância.
Custas pela embargante-agravante.

Coimbra, 2006/03/08