Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2351/03.3TBTVD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: COSTA FERNANDES
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
Data do Acordão: 01/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: 342.º 913.º, 918, 921.º, 905, 911. DO CC. DEC. LEI 247/94 DE 31/07
Sumário: Na compra de veículo automóvel a quem não exerce esse comércio, é ao comprador que cabe o ónus de provar que o defeito decorreu de vício que o veículo já apresentava, na data em que lhe foi entregue, por se tratar de um facto constitutivo do direito à reparação.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:
A....., contribuinte fiscal nº 163 339 627, resi- dente na Rua da Associação de Moradores, nº 18, Ereira, 2565-432 Maxial, Torres Ve- dras, propôs a presente acção declarativa, com processo sumário, contra:
B......, contribuinte fiscal nº 125 301 464, e mulher, C...., contribuinte fiscal nº 124 423 868, residentes no Bairro Nossa Senhora da Conceição, Lote 37, 2495 Fátima;
D....., residente no prédio dos Correios, 2º Esqº, Santana, 2970 Sesimbra; e
E....., com sede na Estrada Nacio- nal nº 10, Km 44,4, Rua Alto da Guerra, nº 20, 2910-515 Setúbal,
Petecionando a condenação dos réus a pagarem-lhe a quantia de 8.113,91 €, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação .
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- Adquiriu ao primeiro réu um veículo automóvel, pelo preço de 5.000,00 €, tendo-lhe ele garantido a sua boa funcionalidade e o seu bom estado mecânico;
- A referida viatura veio a apresentar diversos problemas mecânicos, algumas semanas após o negócio, com cuja reparação despendeu 5.553,91 €;
- O mau estado do veículo existia antes da celebração do negócio, tendo-lhe os dois primeiros réus escondido tal facto;
- Estes agiram a mando do segundo e terceira réus;
- Em virtude da reparação, esteve sem poder usar a viatura entre 10 de Ju- nho e 28 de Agosto de 2003, facto que lhe causou um dano de 1.560,00 €;
- Sofreu danos não patrimoniais, cuja indemnização calculou em 1.000,00 €.
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Os primeiros réus contestaram, alegando a incompetência territorial do Tribunal Judicial de Torres Vedras e sustentando que:
- O réu marido vendeu o referido veículo ao autor, aceitando-o este no estado em que se encontrava e sem qualquer garantia, após tê-lo examinado e experimenta- do;
- Desconhecem se o veículo tinha os problemas mecânicos que o autor alega, os quais, a existirem, foram causados posteriormente à sua venda;
- Não são comerciantes de automóveis, pelo que não tinham obrigação legal de dar garantia de bom funcionamento do veículo.
O segundo réu contestou, afirmando ser totalmente alheio ao negócio.
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Por despacho de fls. 95 e 96, foi julgada procedente a excepção dilatória de incompetência do Tribunal Judicial de Torres Vedras, sendo a competência deferida ao Tribunal Judicial de Ourém.
No saneador foram os segundo e terceira réus absolvidos da instância, por ilegitimidade passiva.
Por sentença de fls. 200 a 208, a acção foi julgada improcedente.
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O autor recorreu da sentença, pretendendo a sua revogação, com a conse- quente condenação dos réus a pagarem-lhe o valor global peticionado, tendo alegado e retirado as seguintes conclusões úteis:
1ª Comprou aos réus, por 5.000,00, a viatura da marca Nissan, modelo Pa- trol, matrícula 64-09-BN, com a qual circulou cerca de 2000 Km, entre 11 de Março e princípios de Junho de 2003;
2ª O réu marido garantiu a boa funcionalidade do veículo;
3ª Em 10 de Junho de 2003, a viatura começou a lançar fumos e cheiros a gasóleo não habituais, tendo-se constatado que tinha a cabeça do motor imprópria para circular;
4ª Os réus não mandaram reparar o veículo;
5ª Mandou reparar a viatura à sociedade PIPICAR, Ldª, tendo pago pela re-
paração 5.553,91 €;
6ª A reparação era indispensável para que o veículo circulasse;
7ª Comprou essa viatura, desconhecendo a avaria que veio a verificar e só a adquiriu, porque os réus garantiram a boa funcionalidade da mesma;
8ª As regras da experiência comum determinam que ninguém despende mais de 5.000,00 € com um veículo - garantida que foi a sua funcionalidade - que circula apenas 2.000 Km;
9ª A sentença recorrida está ao arrepio das regras da experiência comum, pois ninguém compra uma viatura para circular apenas 2.000 Km e é forçado a pagar uma reparação de 5.553,91 € - mais cara que o valor daquela;
10ª O comprador de um automóvel em segunda mão tem o direito de exigir do vendedor a reparação do mesmo, se afectado de defeitos graves e relevantes para o fim a que se destinava, que comprometem a sua segurança e estabilidade, impedindo o comprador de o utilizar normalmente – in sentença de 23-06-1997, proferida pelo Dr. António Guerra Banha do Tribunal de Círculo de Chaves, publicada na Causas/SbJu- dice, 1999 -14;
11ª O réu ao garantir a funcionalidade do veículo, garantiu que este podia funcionar, circular, servir muito tempo;
12ª Uma viatura com «boa funcionalidade» não é só um veículo em boas condições mecânicas, tem de poder circular longas dezenas de milhares de quilóme- tros e não apenas 2.000 Km;
13ª Garantir a «boa funcionalidade» equivale a garantir que funciona, que tra- balha e que serve para viajar, circular milhares e milhares de quilómetros, por alguns anos, e nunca 2.000 Km, em dois ou três meses;
14ª A sentença recorrida contradiz-se nos fundamentos de facto e na decisão, pelo que é nula – art. 668º, 1, c), do Código de Processo Civil;
15ª Existe presunção de culpa imputável ao vendedor, pois vendeu um bem que não foi adequado ao fim a que se destina;
16ª O tribunal «a quo» violou os arts. 342º, 2, 762º, 763º, 798º, 799º, 1207º, 1218º a 1223º do Código Civil, 4º, 2, e 12º da Lei nº 24/96.
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Os recorridos não apresentaram contra-alegações.
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O recurso foi admitido como apelação, com efeito devolutivo.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II. Questões a equacionar:
Uma vez que o âmbito dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 690º, 1, 684º, 3, do Código de Processo Civil), importa apreci-ar as questões que delas fluem. Assim, «in casu», há que equacionar as seguintes:
a) Da invocada nulidade da sentença;
b) Da procedência ou improcedência da pretensão do autor.
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III. Fundamentação:
A) Factos provados:
No que respeita à fundamentação de facto tento o disposto no art. 712º, 1, a), e 4, do Cód. Proc. Civil, impõem-se a correcção e os aditamentos seguintes:
a) No nº 24 do elenco de factos assentes, onde consta «O Réu marido garantiu a boa funcionalidade do veículo», deve constar: «O réu marido disse ao autor que o veículo estava em boas condições de funcionamento». Na verdade, é isso que consta da resposta restritiva dada ao artigo 22º da base instrutória;
b) Incluir a factualidade decorrente das respostas aos artigos 28º, 31º e 32º da base instrutória, que, estranhamente, foi omitida;
c) Incluir a factualidade que resulta do documento de fls. 148, atinente à ins- peção periódica do veículo, a qual foi alegada pelos réus e tem interesse, embora resi- dual, para a boa decisão da causa (como, implicitamente, foi entendido nos despa- chos de fls. 126 a 129 e 136), tendo aquele sido requisitado pelo tribunal, nos termos do art. 531º do Cód. Proc. Civil – cfr. o despacho de fls. 136.
Estão, assim, assentes os seguintes factos:
1. Em 09-03-2003, um domingo, o autor deslocou-se a Fátima com familiares e amigos - alínea A) da matéria assente;
2. Nessa ocasião, foi-lhe dado a ver o veículo usado Nissan Patrol, com a matrícula 64-09-BN, do ano de 1993, pelo réu Adelino - alínea B) da matéria assente;
3. O réu Adelino pediu ao autor a quantia de 5.000,00 € pelo referido veículo - alínea C) da matéria assente;
4. O autor aceitou pagar o referido preço, tendo sido acordado proceder a tal pagamento no dia 11-03-2003 - alínea D) da matéria assente;
5. Em 11-03-2003, o autor procedeu à transferência da aludida quantia de 5.000,00 € da conta nº 0822 052559 800, de que é titular na Caixa Geral de Depósitos, para a conta nº 0304005818300, pertencente à ré C.....- alínea E) da matéria assente;
6. O autor recebeu dos réus a declaração de venda e o veículo - alínea F) da matéria assente;
7. Os réus informaram o autor de que o veículo estava titulado em nome de ....... - alínea G) da matéria assente;
8. Em 18-03-2003, o autor procedeu à transferência da propriedade para o seu nome, tendo contactado a Agência Automobilística ........ para esse fim - alínea H) da matéria assente;
9. Entre 11-03-2003 e os princípios de Junho de 2003, o autor circulou cerca de 2.000 quilómetros - resp. dada ao artigo 1º da base instrutória;
10. Em 10-06-2003, o veículo lançou fumos e cheiros a gasóleo não habituais - resp. dada ao artigo 2º da base instrutória;
11. Tendo-se constatado que tinha a cabeça do motor imprópria para o fazer circular - resp. dada ao artigo 3º da base instrutória;
12. O autor constatou tal avaria após a vistoria em oficina efectuada em Ju- nho de 2003 - resp. dada ao artigo 5º da base instrutória;
13. O autor, após o facto referido no nº 12, deslocou-se à oficina do réu mari- do - resp. dada ao artigo 6º da base instrutória;
14. O autor tentou junto do réu que este procedesse à reparação do veículo - resp. dada ao artigo 8º da base instrutória;
15. Em 07-07-2003, o autor dirigiu aos réus uma carta registada, com aviso de recepção, a solicitar que assumissem a reparação do veículo e o pagamento da mesma - resp. dada ao artigo 9º da base instrutória;
16. Os réus não responderam a tal pedido - resp. dada ao artigo 10º da base instrutória;
17. O autor mandou proceder à reparação da viatura - resp. dada ao artigo 11º da base instrutória;
18. Tendo-a entregue, no dia 10-06-2006, à sociedade PIPICAR – Reparação e Manutenção de Veículos, Unipessoal, Ldª, sita em Delgada, Caldas da Rainha - resp. dada ao artigo 12º da base instrutória;
19. A qual ali permaneceu até ao dia 28-08-2003 - resp. dada ao artigo 13º da base instrutória;
20. A sociedade PIPICAR, Ldª, procedeu à reparação da viatura, tendo exe-
cutado os trabalhos de mecânica, substituição e colocação, discriminados no docu- mento de fls. 16 e 17, cujo teor se dá aqui por reproduzido, designadamente substitui- ção do bloco do motor, correia de distribuição, segmentos, retentor da cambota, junta do colector, junta da cabeça (do motor), «tuches» das válvulas e cabeça do motor - resp. dada ao artigo 14º da base instrutória e factura de fls. 16 e 17;
21. Tendo o autor pago à PIPICAR, Ld.ª, a quantia global de 5.553,91 € pelo referido serviço, através de cheque no mesmo montante passado sobre a CGD, com o nº 5718786625 - resp. dada ao artigo 15º da base instrutória;
22. Em 28-08-2003 - resp. dada ao artigo 16º da base instrutória;
23. Tal reparação era indispensável a fazer circular o veículo - resp. dada ao artigo 17º da base instrutória;
24. O réu marido disse ao autor que o veículo estava em boas condições de funcionamento - resp. dada ao artigo 22º da base instrutória;
25. O réu Adelino disse ao autor que, se estivesse interessado, lhe venderia o «Jeep», no estado em que se encontrava e sem qualquer garantia - resp. dada ao ar- tigo 23º da base instrutória;
26. Nesse mesmo dia, 09-03-2003, o autor, com mais dois indivíduos, viu o «Jeep» - resp. dada ao artigo 24º da base instrutória;
27. Examinaram o seu motor, deitaram-se por debaixo do chassis, sentaram-
-se no seu interior e experimentaram todos os manípulos, luzes e restantes mecanis- mos - resp. dada ao artigo 26.º da base instrutória;
28. Após o que o puseram a trabalhar e o experimentaram em estradas de asfalto e em estradas de terra batida, durante cerca de 30 minutos - resp. dada ao artigo 27º da base instrutória;
29. Os indivíduos que acompanhavam o autor disseram-lhe que o veículo parecia estar em bom estado - resp. dada ao artigo 28º da base instrutória;
30. O autor aceitou adquirir o veículo nas condições referidas em 25) - resp. dada ao artigo 29º da base instrutória;
31. No dia 11-03-2003, o autor levou o «Jeep» a andar desde Fátima até à sua terra - resp. dada ao artigo 30º da base instrutória;
32. Se a cabeça do motor estivesse «imprópria para fazer circular o veículo», em 09-03-2003, tal seria notório e visível, quando o autor o experimentou, e no dia 11-
-03-2003, quando o levou para sua casa - resp. dada aos artigo 31º e 32º da base ins- trutória;
33. O veículo foi submetido a inspecção periódica obrigatória, em 07-02-2003,
tendo sido aprovado.
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B) Enquadramento jurídico:
a) Da invocada nulidade da sentença:
O autor alegou que a sentença é nula, por existir contradição entre o seus fun- damentos e a decisão, violando o disposto no art. 668º, 1, c), do Cód. Proc. Civil. Em conformidade com a referida norma, a sentença é nula, quando os fundamentos este- jam em oposição com a decisão. Todavia, «in casu», não se vislumbra o mínimo des- fasamento entre a decisão e os seus fundamentos, sendo certo que o apelante não indicou nenhum.
Contudo, é provável que o apelante vislumbre essa contradição no facto de, no nº 24 do elenco de factos provados, na redacção errada, inserta na sentença, constar «O réu marido garantiu a boa funcionalidade do veículo». Como acima ficou dito, não foi isso que se provou, mas sim que «O réu marido disse ao autor que o veículo estava em boas condições de funcionamento». Talvez o apelante pretenda descortinar
aí a «garantia de bom funcionamento» a que se reporta o art. 921º, 1, do Cód. Civil. Mas, sucede que, por um lado, bem sabe que não foi isso que ficou provado, pois, em devido tempo, tomou conhecimento da resposta ao artigo correspondente da base ins- trutória, a qual não tem essa redacção, dela não tendo reclamado, e, por outro, os factos constantes dos nºs 25 e 29, impedem essa interpretação. É que, mesmo que se considerasse a aludida formulação errada, a ponderação da demais factualidade pertinente impunha a conclusão de que o réu apenas afirmou que o veículo estava em boas condições de funcionamento (boa funcionalidade actual), mas nada garantiu quanto a funcionalidade futura – está assente (cfr. o nº 25 do elenco de factos provados) que disse ao autor que vendia a viatura «no estado em que se encontrava e sem qualquer garantia».
Assim, tendo-se na sentença concluído no sentido de não ser aplicável o menci- onado art. 921º, 1, e face à ponderação de toda a factualidade provada, atinente a es-ta questão, importa concluir pela não verificação da invocada nulidade.
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b) Da procedência ou improcedência da pretensão do autor:
É evidente que entre o autor e os dois primeiros réus foi celebrado um contrato de compra e venda, tendo por objecto mediato um veículo automóvel usado.
Não se suscitam dúvidas de que o contrato foi cumprido, porquanto ocorreu a transferência da propriedade, a entrega da viatura e o pagamento do preço – cfr. os arts. 874º e 879º do Código Civil
Assim, o fundo da questão está em saber se o bem objecto mediato do contrato apresentava, quando foi entregue ao comprador, algum dos vícios indicados no art. 913º, 1, do diploma acabado de referir. É que, se assim tiver sido, estaremos perante a venda de uma coisa defeituosa, com as consequências daí advenientes.
Mas, antes de se apurar se houve ou não venda de coisa defeituosa, importa indagar qual o regime jurídico aplicável, «in casu», se o decorrente das dos arts. 913º a 918º, 921º, 905º, 908º, 909º e 911º do Cód. Civil, se o resultante da legislação ati- nente a defesa do consumidor: Lei nº 24/96, de 31/VII, rectificada pela Declaração de rectificação nº 16/96, DR, I S-A, de 13-11-1996, com alterações introduzidas pela Lei nº 85/98, de 16/XII, e pelo Dec.-Lei nº 67/2003, de 8/IV.
Sucede que o art. 2º, 1, da mencionada Lei nº 24/96 define como consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça, com carácter profissional, uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios. Como se refere no Ac. do STJ, de 09-03-2006, Proc. 06B066, o direito do consumo e a Lei nº 24/96 respeitam, tão-só, a uma categoria particular de actos: os de consumo que ligam um consumidor final e um profissional que actue no quadro da sua profissão ou actividade.
No caso dos autos, podendo concluir-se que o autor destinou o veículo a um uso não profissional, o certo é que aquele não logrou provar que os réus (ou algum deles) lho tivessem vendido na qualidade de comerciante de automóveis – aliás, nem sequer alegou isso. Ora, tratando-se de facto constitutivo do direito a ver o contrato regulado pelo regime mais favorável concernente à defesa do consumidor, teria de ser alegado e provado pelo autor.
Assim, importa concluir que não é aplicável este último regime, sendo o caso regulado pelas indicadas disposições do Cód. Civil.
No âmbito deste, cabe apurar se deve ou não aplicar-se o art. 921º, 1, ou seja, se o autor beneficia da «garantia de bom funcionamento».
Estatui o mencionado art. 921º, 1, que «se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do compra- dor». Por seu turno, o nº 2 do mesmo artigo prescreve que «no silêncio do contrato, o prazo de garantia expira seis meses após a entrega da coisa, se os usos não estabe- lecerem prazo maior».
O autor/apelante sustenta que o réu marido garantiu a boa funcionalidade do veículo – cfr. a 2ª conclusão. Porém, apenas se provou que o mencionado réu lhe disse que o automóvel «estava em boas condições de funcionamento» - cfr. o nº 24 do elenco de factos provados. Ora, desta afirmação não pode jamais concluir-se que o réu garantiu «o bom funcionamento» da viatura. É que essa garantia tem uma pro- jecção futura e dizer que o veículo está funcional no momento da venda é coisa bem diferente de garantir o seu bom funcionamento futuro. Aliás, o réu logrou provar que, na altura, «disse ao autor que, se estivesse interessado, lhe venderia o «Jeep», no estado em que se encontrava e sem qualquer garantia» - cfr. o nº 25 do elenco de factos provados.
Quanto a esta questão, importa vincar que no nº 24 do elenco de factos provados da sentença recorrida ficou a constar que «O réu marido garantiu a boa funcionalidade do veículo», o que pode ter induzido o autor em erro. Só que não foi esse o teor da resposta ao artigo 22º da base instrutória, donde proveio esse facto, co-mo acima ficou dito, sendo patente o erro na transcrição para a sentença do texto dessa resposta.
Em face do que fica dito, impõe-se concluir que não houve convenção das partes no sentido de os réus (vendedores) garantirem o bom funcionamento (futuro) do veículo que venderam ao autor.
Assim, importa apurar se, por força dos usos, os réus ficaram obrigados a garantir o bom funcionamento dessa viatura.
Quanto a esta questão, pode adiantar-se que, no âmbito do comércio de veícu- los automóveis, em regra, os vendedores prestam essa garantia. Porém, isso sucede, quando o vendedor exerce profissionalmente esse comércio. Já quando no contrato de compra e venda de viatura automóvel usada figura como vendedor um não comer- ciante, a prática é precisamente a inversa, ou seja, o alienante não garante o bom funcionamento futuro do veículo, limitando-se a informar o comprador do seu estado actual, podendo prestar outras indicações atinentes ao uso que lhe foi dado, ao local em que habitualmente era parqueado, etc. - note-se que o autor nem sequer alegou que qualquer dos réus fosse comerciante de automóveis.
Mas, mesmo não garantindo o bom funcionamento da viatura objecto mediado do contrato de compra e venda, o vendedor está obrigado a informar o comprador, com boa fé e de forma cabal, do seu estado actual, e, se dolosamente ou com mera culpa, não o esclarecer sobre qualquer vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou ainda, se aquela não tiver as características que haja assegurado ao adquirente ou que sejam imprescindíveis à consecução daquele fim, poderá ver o contrato anulado (a requerimento do comprador, como é óbvio), com base no dolo ou no erro, como resulta da conjugação dos arts. 913º, 254º e 251º do Cód. Civil – cfr. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Coimbra Editora, Ldª, 1968, Vol. II, p. 156.
E, em conformidade com o estatuído no art. 914º do mencionado código, o comprador pode exigir do vendedor a reparação ou mesmo a substituição (se for ne- cessária) do veículo, caso se comprove que o mesmo, quando lhe foi entregue, sofria qualquer vício ou falta de qualidade(s), como ficou assinalado no parágrafo anterior, e que o alienante não desconhecia ou desconhecia com culpa a existência desse vício ou essa falta de qualidade(s).
Como vimos, o autor sustentou, na acção, que o mau estado do veículo existia antes da celebração do negócio, tendo-lhe os réu escondido tal facto, embora não tenha levado isso às conclusões do recurso.
Sucede que a prova produzida não permite chegar a essa conclusão. Na verdade, provou-se que: a 09-03-2003, o autor experimentou esse veículo, com mais dois outro indivíduos, durante cerca de 30 minutos, em estradas asfaltadas e de terra batida, nada tendo detectado de anormal; no dia 11-03-2003, o autor conduziu essa viatura entre Fátima e a sua terra, na área do concelho de Torres Vedras; percorreu com ela cerca de 2.000 Km, entre 11-03-2003 e 10-06-2003; nesta última data, o veí- culo lançou fumos e cheiros a gasóleo não habituais.
Refere o autor que, nesta última data, se apurou que a viatura tinha «a cabeça do motor imprópria para funcionar».
Como consta da sentença recorrida, reportando-se ao depoimento da testemu- nha ……, mecânico de automóveis, se o veículo tivesse a cabeça do motor «imprópria para o fazer circular», isso seria notado pelo autor, quando o experimentou e, depois, o conduziu até sua casa, pois o mesmo ficaria sobreaqueci- do, não desenvolveria e nunca seria capaz de fazer uma viagem entre Fátima e Torres Vedras. É que, um defeito desses na cabeça do motor determina que este perca compressão e potência, situação que qualquer condutor de automóveis minimamente experimentado nota de imediato.
Por outro lado, a danificação da cabeça de qualquer motor pode ocorrer, de um momento para o outro, mesmo que seja novo, se o mesmo for sujeito a sobreaqueci- mento.
É claro que tem de admitir-se que o motor de um veículo usado possa apresen- tar desgastes que venham a potenciar a diminuição da compressão e o sobreaqueci- mento, podendo contribuir para a danificação daquele. Todavia, quando existem des- gastes, a perda de compressão e potência não surge de repente, começando, em re-gra, a notar-se paulatinamente.
No caso dos autos, está assente que, em 10-06-2003, «o veículo lançou fumos e cheiros a gasóleo não habituais», o que aponta para uma avaria que surgiu de repente.
Quem fez a reparação tinha grandes possibilidades de apurar o que efectiva- mente se passou. Mas, estranhamente, o autor não trouxe a depor quem interveio nessa reparação, nem apresentou qualquer relatório da mesma, sendo certo que lhe cabia o ónus de provar que o vício já existia à data da entrega da viatura. Como se refere no Ac. do STJ, de 11-10-2007, Proc. 07B3069, in www.dgsi.pt, a parte que, como fundamento do seu direito, invocar a venda de coisa defeituosa, tem o ónus da prova da existência do defeito em momento anterior ao da entrega. Na mesma linha de orientação, o decidiu-se no Ac. do STJ, de 23-05-2002, Proc. 02B1445, disponível na indicada base de dados, que, na venda de coisa defeituosa, cabe ao comprador provar a existência do defeito da coisa vendida, o qual é um dos factos constitutivos dos direitos que a lei lhe confere.
A lista de peças que foram empregues na reparação, vai muito para além da cabeça do motor, podendo ser compatível com o que se costuma designar por «motor gripado». Note-se que foi substituído o «bloco do motor» (estrutura onde funcionam os cilindros), a «cabeça do motor», a «junta da cabeça», os «segmentos» (embora a necessidade de substituir estes últimos também possa decorrer de simples desgaste), a «junta do colector», etc. Aliás, foram substituídas algumas peças que costumam sê-
-lo numa vulgar revisão ao veículo, v. g., o filtro de óleo e o filtro de de ar – cfr. a factura de fls. 16 a 18.
Segundo consta da referida factura, na data da reparação o veículo indicava ter já percorrido 191.755 Km. Ora, tratando-se de um motor «Diesel» (ou seja, a gasóleo), em termos de normalidade, não deveria ter desgaste que implicasse esse tipo de reparação – ainda era muito cedo para isso. Mas, tem de se reconhecer que tudo depende do uso que lhe foi dado e do modo como foi utilizado.
Está também provado que o veículo foi submetido a uma inspecção periódica obrigatória, em 07-02-2003, quando já havia percorrido 188.368 Km, não lhe tendo sido detectada qualquer anomalia de funcionamento do motor ou em outros mecanis- mos essenciais, ou importantes, de tal sorte que foi «aprovado» - cfr. fls. 148 e o nº 33 do elenco de factos provados. É claro que disto apenas se pode concluir que, à data dessa inspecção, não havia qualquer deficiência na «cabeça do motor» ou outra que implicasse diminuição da taxa de compressão e da potência e aumento da emis- são de gases poluentes. Entre tal data e a da reparação a viatura percorreu 3.387 Km, podendo, obviamente, o vício surgir em qualquer momento desse tempo de utilização.
Ainda, mesmo que a viatura apresentasse algum desgaste, na data em que foi entregue ao autor, isso só constituiria vício, se fosse para além do desgaste normal de um automóvel usado daquele tipo e com aquela quilometragem. Com efeito, como se refere no Ac. do STJ, de 27-04-2006, Proc. 06A866, in ww.dgsi.pt, sendo a coisa vendida usada, o contrato incide sobre objecto com qualidade inferior a idêntico bem novo, pelo que o regime do cumprimento defeituoso só encontra aplicação na medida em que essa falta de qualidade exceder o desgaste normal, não consubstanciando este vício para os efeitos do art. 913º do Cód. Civil.
Seja como for, reitera-se, era o autor que tinha o ónus de provar que a avaria decorreu de vício que o veículo já apresentava, na data em que lhe foi entregue, por se tratar de um facto constitutivo do direito à reparação que invocou (cfr. o art. 342º, 1, do Cód. Civil), e aquele não logrou fazer essa prova.
Importa ainda referir que o autor sustentou (cfr. a conclusão 15ª) que existe uma presunção de culpa imputável ao devedor. Ora, assim é face ao disposto no art. 799º, 1, do Cód. Civil, cabendo ao devedor (in casu, o vendedor) provar que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua, mas, em contrapartida, compete ao credor (aqui, o comprador) fazer prova da existência do defeito, como elemento constitutivo do seu direito de indemnização ou outro – cfr., neste sentido, Prof. Antu- nes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 1992, Vol. II, p. 99 e 100.
Assim, reitera-se, era o autor que tinha o ónus de provar que a avaria decorreu de vício que o veículo já apresentava, na data em que lhe foi entregue, por se tratar de um facto constitutivo do direito à reparação que invocou (cfr. o art. 342º, 1, do Cód. Civil), e aquele não logrou fazer essa prova.
Nesta conformidade, impõe-se concluir pela improcedência da apelação.
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IV. Decisão:

Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 15-01-2008