Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3215/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
INTERVENÇÃO PROVOCADA
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 12/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 325.º, 1 E 3, 326.º, N.º 1 E 323.º, 1 E 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. O fundamento do incidente de intervenção de terceiro é o direito do interveniente se associar com uma das partes, autor ou réu.
2. Reconhecido o direito de retenção a uma das partes sobre uma fracção autónoma de prédio urbano, em consequência de incumprimento de contrato promessa por banda do promitente vendedor e construtor, tem o credor hipotecário deste, estranho à causa, legitimidade para nela intervir.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de acção declarativa com processo ordinário que A... intentou no 2º Juízo da comarca de Alcobaça contra B... e C... veio aquele, através do nº 2 do art.º 325 do CPC, requerer a intervenção principal provocada, como associada das Rés, da D..., invocando que, em conformidade com o pedido formulado na acção, o seu direito de retenção sobre determinada fracção autónoma que lhe foi prometida vender pela 1ª Ré, em contrato por ela incumprido, faz justificar o chamamento à lide da requerida, dado o interesse em contradizer que a esta assiste pela circunstância de o crédito hipotecário de que ela é titular sobre a dita fracção poder vir a ser afectado pela prioridade de pagamento inerente ao aludido direito real de garantia do A..
Não tendo havido oposição das Rés, o M.mo Juiz, estribando-se no argumento da inexistência de uma fonte de legitimidade passiva que autorizasse o litisconsórcio, necessário ou voluntário, ou a coligação entre a requerida e as Rés, proferiu despacho indeferindo a peticionada intervenção.
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Inconformado agravou o A. e requerente, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
1 – A interveniente é parte legítima porque tem interesse directo em responder.
2 - Este interesse está no facto de o pedido do recorrente ser, além de outro, o reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio ou prédios dos quais a Caixa Agrícola é detentora do crédito hipotecário.
3 – A ser concedido o direito de retenção ao recorrente, tal direito confere ao recorrente o direito de receber o seu crédito primeiro que a Caixa Agrícola, pelo que esta tem interesse em contradizer.
4 – Sobre o prédio identificado em 1, 2 e 3 da p. i., nomeadamente sob as inscrições C 1, C 2, C 3 e C 4 da descrição sob o nº 3359, as inscrições C 1, C 2, C 3 e C 4 da descrição sob o nº 3390; e as inscrições C 1, C 2, C 3 e C 4 da descrição sob o nº 3391 todas da freguesia de Pataias e da Conservatória do Registo Predial de Alcobaça, existem hipotecas voluntárias das quais a Caixa Agrícola é credora que podem colidir com o direito de retenção do recorrente pedido na acção;
5 – O direito de retenção do recorrente nos termos do nº 2 do art.º 759 do CC prevalece sobre as hipotecas pelo que a Caixa Agrícola poderá, querendo, pronunciar-se sobre esse direito de retenção, tendo assim interesse directo em contradizer, como o recorrente tem interesse directo em demandar a Caixa Agrícola.
6 – Como julgou o Acórdão de 02.03.2004 da Relação de Coimbra, Col. de Jurisprudência 2004, II, pág. 8, a sentença que reconheça um direito de retenção sobre fracção objecto de um contrato promessa definitivamente incumprido não é juridicamente indiferente, face à preferência concedida pelo direito de retenção, ao titular de uma hipoteca sobre tal fracção.
7 – O direito de retenção concedido ao promitente comprador para quem tiver havido tradição do bem, constitui um prejuízo jurídico para o titular do crédito hipotecário (no caso a Caixa Agrícola) pois este vê colocar-se-lhe à frente um outro crédito com prioridade de pagamento.
8 – Havendo necessidade de em relação à Caixa Agrícola se dar a hipótese de se pronunciar sobre o direito de retenção visto o prejuízo jurídico que para si decorrerá, isto é, ver o crédito garantido pelo direito de retenção ficar à frente do crédito hipotecário, e, para o recorrente, a intervenção da Caixa Agrícola assegurará que a sentença faz caso julgado em relação a esta.
10 – O recorrente pretende acautelar o seu direito de crédito por incumprimento do contrato promessa, por parte do responsável a apurar em audiência, o qual poderá ser, além da Ré B..., também a Caixa Agrícola, bem como, e mais importante, salvaguardar o seu direito de retenção, faces às hipotecas registadas, de forma a que a sentença faça caso julgado em relação à Caixa Agrícola.
11 – Nos termos do art.º 325 do CPC :
«Qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.»
Na dedução do incidente «o autor do chamamento alega a causa do chamamento e justifica o interesse que, através dele, pretende acautelar» (nº 3 do citado artigo).
12 – O A. ora recorrente, alegou e justificou o interesse que através da chamada pretende acautelar, isto é, justificou tudo o que aqui atrás se alega.
13 – O tribunal «a quo» violou o preceituado no art.º 325 do CPC e restantes normas aplicáveis.
14 – Pelo que o tribunal «a quo» deveria admitir e determinar o chamamento da D....
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Não houve contra-alegações.
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O M.mo Juiz sustentou o despacho recorrido.
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Colhidos os vistos cumpre decidir.
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São os seguintes os pressupostos de facto relevantes a ter em consideração:
1 – Por contrato promessa de compra e venda de 2 de Outubro de 2001 a 1ª Ré prometeu vender ao A., livre de ónus ou encargos, e este prometeu comprar, a seguinte fracção urbana: «Apartamento topo T2, no Bloco D R/C esquerdo, composto por dois quartos, 2 WC, sala, cozinha, hall de entrada com um lugar de parqueamento na garagem», parte integrante de um edifício construído por aquela nos lotes para construção sitos em Paredes da Vitória, Pataias, Alcobaça, descritos na respectiva Conservatória do Registo Predial sob os nºs 3359, 3390 e 3391;
2 – O preço da prometida venda foi de € 109.735,53, tendo o A. entregue já à referida Ré € 74.819,68.
3 – A 1ª Ré obrigou-se no contrato a celebrar e a marcar a escritura até ao mês de Maio de 2002;
4 – No entanto, por escritura pública de 17 de Fevereiro de 2004, lavrada no 27º Cartório Notarial de Lisboa, vendeu à 2ª Ré os lotes de terreno supra identificados onde se encontra construído o edifício de que fracção prometida vender é parte integrante;
5 – A requerida D... fez registar a seu favor várias hipotecas sobre os imóveis descritos em 1, para garantia dos seus créditos decorrentes de financiamentos feitos à 1ª Ré.
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A questão a decidir no recurso é a de saber se é possível requerer a intervenção principal de um terceiro, ao lado das Rés, pela circunstância de este ser credor hipotecário da Ré promitente vendedora e a sua garantia poder vir a ser preterida em função do direito de retenção do promitente comprador sobre a coisa (art.º 755, nº 1, al.ª f) do CC), direito esse - resultante do incumprimento definitivo do contrato promessa imputável àquela promitente - cujo reconhecimento é pedido na acção.
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Nos termos do disposto nos art.ºs 325, nºs 1 e 3, 326, nº 1 e 323 nºs 1 e 2 do CPC é possível provocar a intervenção de um terceiro na causa, seja como associado da parte requerente, seja como associado da parte contrária, desde que deduzida em articulado próprio, ou em requerimento autónomo até ao despacho saneador.
O fundamento do incidente é, pois, o direito de o interveniente se associar com uma das partes, autor ou réu. Trata-se de um direito emergente desde logo da lei processual, pelo que este preceituado deve ser articulado com as situações de pluralidade de partes reguladas nos art.ºs 26 a 31-B do CPC. Nestas situações há casos de associação derivada da existência de uma única relação material (como são os de litisconsórcio necessário ou voluntário dos art.ºs 27 e 28 do Código) e de pluralidade de relações (de que é paradigma a coligação de autores ou réus prevista no art.º 30 do mesmo Código). A razão de ser destes institutos é não apenas a de evitar futuros litígios em torno da mesma questão fáctica substancial – princípio de economia processual – mas sobretudo a de formar um só caso julgado material, coerente e alargado a todos os sujeitos de relações conexas com aquela questão.
Precisamente, uma das hipóteses em que é autorizada a coligação de autores e réus é a da presença de uma única causa de pedir direccionada com diferentes objectivos para diferentes réus (nº 1 do art.º 30 do CPC). Ocorre essa situação quando, com base nos mesmos fundamentos, a parte deduz mais do que uma pretensão, querendo interferir com a posição ou o valor jurídico relativo de um direito concorrente, como acontecerá com a declaração da verificação de um direito de crédito apenas contra um réu e de um direito real de garantia, este conflituante com a garantia de outro réu, por virtude de uma hierarquização legal, mas sendo oposto a todos os réus.
Com base nesta ideia foi produzido o Acórdão desta Relação – e Secção – de 2 de Março de 2004 (CJ Tomo II, pág. 8 – 11), de resto referido pelo agravante, segundo o qual a sentença que reconheça um direito de retenção sobre uma fracção autónoma objecto de um contrato promessa definitivamente incumprido não faz caso julgado em relação ao credor hipotecário que não teve intervenção no processo em que foi proferida.
Para determinar o alcance do caso julgado da sentença que venha a emergir da presente acção há que notar que, em caso de procedência total, o terceiro e credor hipotecário D... terá o próprio conteúdo jurídico do seu direito de garantia diminuído ou afectado, uma vez que irá sofrer o efeito da prioridade de pagamento que advirá para o A. da declaração judicial dos pressupostos do invocado direito de retenção (art.ºs 755, nº 1, al.ª f) e 759, nº 2 do CC).
Donde que, perante um tal nexo de conflitualidade e interdependência, por estar em jogo a consistência ou valor jurídico-substantivo – e não a mera viabilidade ou consistência prática - da garantia hipotecária da dita CCAM (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 311 e ss. e o Ac. do STJ de 1/02/1995 in CJ, Ano III, pág. 55) se deva aceitar a intervenção em apreço, assim se possibilitando o contraditório pleno entre os titulares dos direitos.
É claro que a requerida interveniente só poderá ser convencida na parte do pedido atinente ao incumprimento da promitente vendedora e demais requisitos que condicionam a garantia pretendida pelo A. e agravante.
São, pois, de acolher todas as conclusões do agravante.
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Pelo exposto, concedendo provimento ao agravo, revogam o despacho recorrido e admitem a requerida D... a intervir nos autos como parte principal, observando-se o disposto no art.º327 nºs 1 e 2 do CPC.
Custas do incidente na 1ª instância pelo requerente, com ½ de taxa de justiça (art.º 14, nº 1, al.ª x) do CCJ) e do recurso pela parte vencida a final.