Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3213/04.2TJCBR-AL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 10/16/2007
Nº Único do Processo: 3213/04.2TJCBR-AL.C1
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 152° DO CPEREF, 10° Nº 1 DO DL 53/2004 DE 18/03, 12° Nº 1 E 2 DO C. CIVIL E 97° N° 1 ALÍNEAS A) E B); 129.º, 1, C); 129.º DO CIRE; ARTIGO 377.º DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: 1. De conformidade com o princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão, o juiz pode, por sua iniciativa, admitir e reconhecer certos créditos como privilegiados.

2. O benefício do privilégio imobiliário especial dos trabalhadores da insolvente não depende da identificação, por banda destes, dos imóveis cujo produto da venda deva responder pelos seus créditos

3. Não ser forçoso concluir, em face da al. b) do artigo 377º do Código do Trabalho, que o privilégio ali consagrado apenas abrange, relativamente a cada trabalhador, o preciso ou concreto imóvel onde o mesmo vinha desenvolvendo o seu múnus laboral, perfilando-se por isso como facto constitutivo de tal privilégio a prova, naturalmente a cargo do reclamante, dessa factualidade, pelo que a falta de tal indicação não o atira para o campo do privilégio mobiliário geral

4. Do objecto do privilégio imobiliário geral apenas se exclui o património do empregador não afecto à sua organização empresarial, notadamente os imóveis exclusivamente destinados à fruição pessoal do empregador – tratando-se de pessoa singular -, ou de qualquer modo integrados em estabelecimento diverso daquele em que o reclamante desempenhou o seu trabalho.

5. A lei que regula em novos termos a garantia patrimonial de determinados créditos, criando a seu favor um privilégio creditório, deve aplicar-se retroactivamente. Daí que tenham aplicação imediata as disposições ínsitas das als. a) e b), do nº 1, art.º 97º, do C.I.R.E, aplicáveis aos créditos das Repartições de Finanças e Segurança Social
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I – RELATÓRIO
1. Decretada a insolvência da sociedade A..., por douta sentença proferida em 21-12-2004, oportunamente transitada em julgado, e após aberto o competente Concurso de Credores, vieram, entre outros, reclamar a verificação e graduação dos respectivos créditos, como privilegiados, a D.G.I./Direcção de Finanças de Coimbra e o I.S.S./IP – Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra.
Igual reclamação também apresentaram outrora Trabalhadores da Insolvente, em numero de 56, uns referenciando os respectivos créditos, expressamente, como assistidos de privilégio creditório, outros a tal respeito manifestando completa omissão.
De posse de tais reclamações, o Exmº Administrador procedeu à elaboração da competente Lista de Credores, na qual, a respeito dos apontados créditos, os reconheceu a todos como privilegiados, ainda que excluindo desse reconhecimento, quanto a alguns desses créditos laborais, importâncias meramente parcelares.
Seguindo-se os ulteriores termos, foram deduzidas impugnações em relação a vários créditos, entre eles, e no que para aqui releva, ao reclamado pelo I.S.S./IP – Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra.
Realizada a tentativa de conciliação prevista no art.º 136º, nº 1, do C.I.R.E., sem qualquer positivo resultado no concernente aos créditos impugnados, foram os autos conclusos ao Mm.º Juiz para emissão do despacho de saneamento do processo.
Neste, o Exmº Magistrado, reportando-se aos créditos não objecto de contestação/impugnação, declarou-os desde logo e sem mais reconhecidos, dizendo fazê-lo –e passamos a citar , “nos precisos termos e parciais em que o foram pelo Sr. Administrador, sendo caso disso”.
Quanto ao crédito reclamado pelo I.S.S./IP, ponderando que o mesmo, apesar de no seu todo reconhecido pelo Exmº Administrador, havia sido impugnado em termos de inviabilizar qualquer reconhecimento quantitativamente seguro, relegou para momento ulterior o respectivo e integral conhecimento.
E prosseguindo, com vista ao conhecimento e dilucidação das impugnações, passou à selecção da matéria de facto pertinente, assim encerrando o seu douto despacho.

2. Irresignado com o de tal modo decidido, na parte de reconhecimento dos créditos em directa adesão à Lista de Credores, o também credor reclamante BANIF – Banco Internacional do Funchal., S.A., interpôs o vertente recurso de apelação, cujas alegações encerra com as seguintes conclusões:
1- O artigo 136.º, n.º 4, do C.l.R.E. deve ser entendido em conjugação com o n.º 3 do artigo 130.º do mesmo diploma legal, onde expressamente se prevê que, se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação de créditos, em que, sa1vo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista.
2- Embora o artigo 136.º, n.º 4, do C.I.R.E., imponha que se considerem sempre reconhecidos os créditos incluídos na respectiva lista e não impugnados, tal não deverá .já ser assim sempre que essa lista padeça de erro manifesto.
3- Respeitando o erro às qualidades reconhecidas aos créditos incluídos nessa lista, eles devem então ser considerados como reconhecidos no despacho saneador/sentença pelas qualidades correctas que lhes inerem ou correspondem.
4- Do artigo 129.º, n.º 2, do C.I.R.E. resulta que, para que a lista de credores reconhecidos não padeça de erro, não basta que dela conste, sobre o mais, a natureza do crédito reclamado, nos diversos termos em que esta é enunciada pelos artigos 47.º e 128.º, n.º 1, alínea c), do C.I.R.E. garantidos, privilegiados, subordinados ou comuns -, sendo além disso, necessário ainda, e designadamente, que da mesma ressaltem devidamente identificados os concretos privilégios de que tais créditos beneficiam.
5- Resultando da lista de credores reconhecidos que, relativamente aos créditos aí considerados genericamente como privilegiados, nada mais consta que permita identificar em que se traduzem tais privilégios, nomeadamente se eles são mobiliários ou imobiliários, gerais ou especiais e, nesta última hipótese, qual o concreto bem objecto dessa garantia, a mesma padece de erro manifesto, não podendo os créditos não impugnados serem reconhecidos em sede do despacho saneador/sentença, previsto no artigo 136.º do C.I.R.E., nos exactos termos de tal lista, mas, inversamente, devem ser reconhecidos com o concreto privilégio que a cada um respeita, se for caso disso, identificando o bem ou os bens onerados com esses direitos, o que acarreta a revogação do douto saneador/sentença, em específico no que concerne aos créditos idel1tificados nos pontos 119 a 174 do douto saneador/sentença.
6- Aliás, não poderia reconhecê-los dessa forma genérica de privilegiados quando, como é o caso dos créditos identificados nos pontos 119, 134, 146, 148 e 151 do douto saneador/sentença, nem sequer foram reclamados como tal e, como consta do relatório do Sr. Administrador de Insolvência, a lista baseia-se nas reclamações de créditos face à infiabilidade da contabilidade da insolvente.
7- Uma vez que o douto despacho saneador/sentença reconheceu como privilegiados os créditos dos ex-trabalhadores da Insolvente, sem concretizar em que consiste este privilégio, face à legislação actualmente em vigor quanto aos privilégios creditórios aplicáveis a esta classe de credores, aqueles apenas poderão ser, em abstracto, hierarquizados na fase da graduação como beneficiários de privilégio mobiliário geral e imobiliário especial ou como beneficiários de privilégio mobiliário e imobiliário geral, caso não se aplique o actual C. do Trabalho, quer porque foram reconhecidos como privilegiados, quer porque o foram com base numa lista que remete exclusivamente para as reclamações de créditos, dada a afirmada infiabilidade da contabi1idade da devedora.
8- Destarte, dependendo a existência de um privilégio imobiliário a favor dos trabalhadores do exercício da actividade profissional no bem imóvel a que tal benefício se reporta, ao trabalhador que almeje beneficiar deste privilégio imobiliário não chega alegar a proveniência laboral do seu crédito, à data do respectivo vencimento e a sua natureza privilegiada, sujeitando-o o artigo 377.º, n.º 1, alínea b) do Código do Trabalho, conjugado com o artigo l28.º, n.º 1, alínea c) do C.I.R.E., ao ónus da alegação do bem objecto da garantia, de que nele exercia a sua actividade profissional e, porque de imóveis se trata, dos respectivos dados de identificação registral, juntando aos autos todos os documentos probatórios de que disponha.
9- Não tendo nenhum dos trabalhadores cumprido aquela imposição legal, a ter sido considerado que na natureza privilegiada com que genericamente foram reconhecidos os créditos laborais na lista elaborada pelo administrador da insolvência, está incluído um privilégio imobiliário especial, tal configura um erro manifesto quanto às qualidades desses mesmos créditos, certo como é que nada consta dos autos susceptível de permitir reconhecê-los como beneficiários daquela garantia, nem sequer por presunção judicial, já que dos autos constam elementos no sentido oposto.
10- Ao invés de reconhecer esses créditos ( os identificados nos pontos 119 a 174) nos precisos termos em os mesmos o foram pelo Sr. Administrador da Insolvência, deveria antes o Mtm.º Juiz a quo ter conhecido da existência desse erro, julgando-os reconhecidos com a natureza correcta, isto é, como beneficiários apenas de um privilégio mobiliário geral.
11- Não o fazendo, violou o despacho saneador/sentença, por errada interpretação, o disposto nos artigos 128.º, n.º 1, alínea c ), 130.º, n.º 3, e 136.º, n.º 4, do C.I.R.E., e 377.º, n.º 1, alínea b ), do Código do Trabalho, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que especifique os concretos privi1égios creditórios que lhe inerem.
12- Para além disso foram também reconhecidos no douto despacho saneador./sentença os créditos reclamados pela DGI / Direcção de Finanças de Coimbra e ISS/IP Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra (pontos 1 e 3 da douta sentença) em ambos os casos como privilegiados, como consta da lista elaborada pelo Sr. Administrador, sendo que também em relação a estes ocorre erro manifesto que inquina a douta sentença.
13- Efectivamente, sendo pacífico que o presente processo de insolvência teve início após a entrada em vigor do CIRE .já não o é, na perspectiva do recorrente, a aplicação de todas as normas legais deste diploma, visto que nele se contam não só normas adjectivas mas também normas substantivas.
14- Ora, o disposto no ali. 97° n° 1 do CIRE, em específico na alíneas a) e b ) são normas de natureza substantiva, as quais dispondo sobre a extinção de privilégios creditórios gerais e especiais só regem para o futuro, isto para relações jurídicas creditícias que se constituam ou se vençam após a entrada em vigor desse diploma legal - 15/09/2004- nos termos do art. 12° n° 1 do C. Civi1.
15- Os créditos considerados reconhecidos e identificados nos pontos 1 a 3 da douta sentença não se constituíram no decurso do processo de insolvência, mas no período de 12 meses antecedentes, pelo que se for inaplicável, como se afigura ao Recorrente que é, a esses créditos o disposto no art. 97° nº1 a) e b) do CIRE tais créditos não podem ser havidos como privilegiados, tal como foram considerados na lista de credores elaborada pelo Sr. Administrador de Insolvência e de acordo com as reclamações apresentadas, a qual padece de erro manifesto que o douto saneador/sentença não apreciou
16- Efectivamente, tais privilégios creditórios legais que inerem aos créditos reclamados constituídos e ou vencidos até 15/09/2004 devem considerar-se extintos nos termos do art. 152° do CPEREF, por ser esta a norma substantiva que vigorava ao tempo da sua constituição, efectuando-se, se necessário for entendido, interpretação abrogatória da norma revogatória geral constante do art. 10 nº 1 do DL 53/2004 de 18 de Março.
17- Na verdade, mantendo-se há mais de uma década a solução legislativa no sentido da extinção dos privilégios creditórios, excepcionada sucessivamente aos que se constituírem no decurso do processo de falência e aos constituídos ou vencidos para além dos 12 meses anteriores ao início do processo, não faz sentido que na sucessão dos regimes legais falenciais possa defender-se que os privilégios constituídos antes da entrada em vigor do CIRE se mantenham por inexistir norma legal que determina a sua extinção, face à revogação geral e total do CPEREF .
18- Só a interpretação do art. 10° n° 1 do DL n° 53/2004 de 18 de Março no sentido de que o disposto no art. 152° do CPEREF deve aplicar-se aos créditos privilegiados do Estado e Segurança Social anteriores ao início da vigência do CIRE, mesmo aos processos de insolvência que se iniciarem já no domínio deste diploma, permite uma solução que salvaguarda a unidade, coerência e lógica da ordem jurídica.
19- Se assim for, e pelas razões e argumentos já acima explanados não deveria, como sucedeu, terem sido reconhecidos tais créditos como privilegiados, dado que os privilégios creditórios foram extintos com a declaração da insolvência, e nesta perspectiva o erro manifesto de que padece a lista de credores deveria ter sido declarado no douto saneador/sentença, que por isso violou o disposto nos arts.. 152° do CPEREF, 10° nº 1 do DL 53/2004 de 18/03, 12° nº 1 do C. Civil e 97° n° 1 alíneas a) e b) do CIRE, ao considerar tais créditos como privilegiados.

3. Apenas o Recorrido I.S.S./IP – Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra apresentou contra-alegações, pugnando pelo improvimento do recurso.
Colhidos que se mostram os competentes vistos legais, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Como é sabido, e flui do disposto nos arts. 684º, nº3 e 690º, nº 1, ambos do Cód. Proc. Civil, o âmbito do recurso é fixado em função das conclusões das alegações do Recorrente, circunscrevendo-se, exceptuadas as de conhecimento oficioso, às questões aí equacionadas.
Nessa medida, e tendo em conta o quadro de proposições acima reproduzido, cuidemos das questões nesse acervo suscitadas.

2. Sustenta, antes de mais, o Recorrente que, resultando da Lista de credores reconhecidos –elaborada pelo Exmº Administrador da Insolvência, nos termos do art.º 129º do C.I.R.E.E que relativamente aos créditos ai considerados como genericamente privilegiados, nada mais consta que permita identificar em que se traduzem tais privilégios, designadamente se eles são mobiliários ou imobiliários e gerais ou especiais e, nesta última hipótese e fundamentalmente, qual o concreto bem objecto de tal garantia, a mesma padece de erro manifesto.
Assim –prossegue , os créditos não impugnados, apesar dessa não oposição, não podiam ser reconhecidos em sede do douto saneador/sentença ora em crise como ocorreu , nos exactos termos de tal Lista, ou seja, com a simples menção de “privilegiados”, e desacompanhada de qualquer outra referência a respeito desse proclamado benefício patrimonial.
E mais: quanto aos créditos objecto de reclamação por parte dos Trabalhadores da Insolvente identificados sob os itens 119, 134, 146, 148 e 151 de tal peça processual, na medida em que tais créditos nem sequer foram reclamados pelos respectivos titulares como privilegiados, não podiam os mesmos –ainda segundo o Recorrente serem reconhecidos com essa sobressaliente qualidade.
Antes mesmo de prosseguirmos no desenvolvimento e análise desta questão, surge pertinente, por evidentes razões de lógica, enfrentar desde já este último reparo, a que de imediato nos remetemos.
Assim,

2.1. Atentando nos doutos requerimentos de reclamação aduzidos pelos Trabalhadores mencionados sob os cinco apontados itens, constatamos que, tal como o Recorrente afirma, os mesmos não referenciam nessas peças qualquer garantia especial, designadamente privilégio creditório, nas respectivas ópticas outorgante de algum especial tratamento em relação aos créditos por eles reclamados. Limitaram-se a indicar as importâncias desses créditos, as atinentes fontes, rematando com o pedido da respectiva verificação e graduação.
Ora –pergunta-se , ante o específico teor desses requerimentos, terá o Mm.º Juiz incorrido no vício da extra-petição, o que determinaria a nulidade do respectivo veredicto –art.º 668º, nº 1, als. d) e e), do CPC , ao admitir e reconhecer esses créditos, por sua única iniciativa, como privilegiados?
Salvo o muito respeito, pensamos que a resposta se evidencia negativa.

Obviamente que ao deduzirem a reclamação dos créditos a que se arrogam, os referidos Trabalhadores, no tocante à respectiva graduação, tiveram em vista que essa mesma graduação fosse aquela que, nos termos legalmente estabelecidos, lhes corresponde. Nem mais, nem menos, sendo certo que no tocante a este última alternativa nada mencionaram indiciador de assumida opção no sentido de concretização da mesma, o que vale dizer, de renúncia aos eventuais benefícios decorrentes desse imperante regime legal.
E sendo a estrita aplicação da lei que tiveram em mente, da regulamentação definidora da almejada graduação, é sabido que nesse plano a soberania pertence ao juiz, de conformidade com o princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão e que habitualmente se exprime com a máxima latina “jura novit cura”.
De tal sorte, e havendo os Trabalhadores em apreço indicado, como dissemos, as importâncias consubstanciadoras dos seus arrogados créditos e as correspectivas origens –os factos , nada impedia antes pelo contrário se impunha , ao Mm.º Juiz oficiosamente considerar, em ordem às ulteriores operações de graduação, o quadro normativo eventualmente instituidor de especiais condições de preferência de pagamento desses mesmos créditos. O que no essencial significava atender ao universo dos privilégios creditórios abstractamente existentes, sendo certo que este tipo de garantias tem exacta e exclusivamente na lei a sua génese constitutiva, como iniludivelmente decorre da respectiva definição conceitual, plasmada no art.º 733º do CC. –cfr., no mesmo pendor, Pires de Lima e Antunes Varela, in Cód. Civil – Anotado, Vol. I, 4ª ed., C. Editora, pág. 754.
Neste termos, e como avançámos, em nenhuma deficiência –ao nível formal, entenda-se , incorreu o Exmº Julgador ao conhecer “ex officio” do regime pertinente aos créditos em foco, e assim estatuir sobre a sua qualidade de privilegiados, desacompanhado de qualquer explícito pronunciamento nesse sentido por parte dos respectivos titulares.
A vertente objecção recursória queda-se, pois, improcedente.

2.2. Mas independentemente dessa omissão, verdade é que –mais alega o Recorrente (com o que retomamos o fio da questão deixado em suspenso) , não só os referidos Trabalhadores, mas também aqueles outros elencados sob os itens 119 a 174 do douto saneador, não deram devido cumprimento ao disposto no art.º 128º, nº 1, al. c), do C.I.R.E., disposição esta onde se determina que no requerimento onde reclame a verificação dos créditos deve o credor da insolvência indicar, entre o mais, no tocante a tais créditos, ”a sua natureza comum, subordinada, privilegiada, ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável”.
Como assim, quadrando-se aos créditos laborais em apreço a norma que se contém no art.º 377º do Código do Trabalho, à mesma corresponde o teor que segue:
“1. Os créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
(...) “
Ora, perante esta normação –continua o Recorrente , pretendendo cada um dos Trabalhadores em presença aproveitar do privilégio especial previsto na supra-transcrita alínea b), estava o mesmo indispensavelmente vinculado a indicar o bem imóvel a que tal benefício se reporta, que o mesmo é dizer, aquele concreto prédio da Insolvente em que exercia a sua actividade profissional, complementando essa indicação com os respectivos dados de identificação registal, acompanhada de todos os elementos probatórios disponíveis.
Indicação essa tanto mais necessária –acrescenta o Recorrente , quanto é certo que existindo mais de um imóvel apreendido no património da Insolvente, não é possível presumir, sem mais, que um ou todos correspondem ao local onde cada um desses Trabalhadores prestava a sua actividade, sendo seguro que no concernente a muitos de entre eles tal actividade decorria em obras da empresa disseminadas por todo o país.
Assim –conclui o mesmo , inexistindo nos autos elementos que possibilitem reconhecer os enfocados Trabalhadores como beneficiários da ora ventilada garantia, apenas a título de assistidos do remanescente privilégio mobiliário geral os mesmos podiam e podem ser reconhecidos, impondo-se a correspondente correcção ao douto saneador em causa.
Que dizer neste conspecto? Vejamos uma vez mais, desde já se podendo no entanto adiantar –sempre ressalvando o muito respeito-, que em nosso modesto entender não assiste, uma vez mais, razão ao aqui Recorrente.

Na verdade, se bem cuidamos, atentando no sentido e alcance da apontada al. b) do acima reproduzido art.º 377º, pensamos não ser forçoso concluir –em sintonia com a douta alegação em atinência , que o privilégio ali consagrado apenas abrange, relativamente a cada trabalhador, o preciso ou concreto imóvel onde o mesmo vinha desenvolvendo o seu múnus laboral, perfilando-se por isso como facto constitutivo de tal privilégio a prova, naturalmente a cargo do reclamante, dessa factualidade.
Com efeito, e tal como se decidiu no Ac. da R.G. de 25-12-2006 proferido no Proc. nº 1587/06 –1, (Rel.: Des., Dr. Proença da Costa), ITIJ/Net , afigura-se-nos que, com a formulação dessa al. b), o legislador teve em mente, não um concreto ou individualizado local de trabalho, mas os imóveis em que esteja implantado o estabelecimento para o qual o trabalhador prestou a sua actividade, independentemente de essa actividade ter sido aí desenvolvida ou no exterior. Ou seja e outrossim conforme se escreveu no Ac. desta Relação de Coimbra de 27-02-2007, Proc. nº 530/04.5TBSEI-X.C1, (Rel.: Des., Dr. Ferreira de Barros), em tal mencionada sede também disponível , “a universalidade dos bens imóveis existentes no património da falida e afectos à sua actividade industrial, e não apenas um específico prédio onde trabalham ou trabalharam, v.g., um escritório, um armazém, um prédio destinado à produção, etc., supondo que o património da empresa é constituído por vários prédios.” E como assim –e apelando de novo ao mesmo aresto , “o trabalhador do escritório, de armazém, e da produção não gozam apenas de privilégio creditório, respectivamente, sobre o escritório, sobre o armazém e sobre o pavilhão de produção...”, sendo que tal solução “carece de qualquer sentido, nem é essa a ´ratio legis´, pois conduziria a uma injustificada discriminação entre os trabalhadores de uma mesma empresa.”
E tal como na enfocada decisão se questiona: “O que restaria, por exemplo, para um motorista?”
Nestes termos, e na linha do que se estatui em ambos os referenciados acórdãos, do objecto do privilégio em presença apenas se exclui o património do empregador não afecto à sua organização empresarial, notadamente os imóveis exclusivamente destinados à fruição pessoal do empregador tratando-se de pessoa singular , ou de qualquer modo integrados em estabelecimento diverso daquele em que o reclamante desempenhou o seu trabalho.

Ora assim sendo, como se nos afigura, temos que no caso dos Trabalhadores dos autos a todos eles assiste, a garantir a prioritária graduação dos respectivos créditos, o privilégio imobiliário que vimos considerando, incidente sobre o conjunto dos imóveis apreendidos.
Com efeito, em consonância com o alegado pelo Recorrente e, bem assim, expendido no Relatório elaborado pelo Exmº Administrador (fls. 1084 e 1088), objecto de apreensão para a massa foi um lote de terreno, utilizado como estaleiro da Insolvente, e cinco fracções autónomas, sendo uma destinada a garagem, durante anos afectas aos antigos escritórios da mesma. Estes escritórios, por seu turno, encontravam-se, ao presente, instalados num espaço arrendado também comum à respectiva sede.
Atentando neste complexo de bens, logo se é levado a concluir que todos eles se achavam afectos à actividade da Insolvente –construção e obras públicas , e logo à actividade de todos e cada um dos seus trabalhadores, independentemente da concreta função pessoal exercida e da específica localização palco da mesma. Na realidade, todos esses imóveis faziam parte integrante da unidade empresarial a que esses Trabalhadores pertenciam, sendo nela, e conseguintemente tendo por base esse acervo predial, que os mesmos desenvolviam a sua actividade profissional. Todo esse acervo estava umbilicalmente ligado a tal actividade, irrelevando por completo apurar em que espaço físico correspondente, ou não, a elementos desse acervo se achava o posto de trabalho de cada um dos assalariados da outrora proprietária dos mesmos.
Sobre todos os imóveis apreendidos –do conjunto dos quais, como se fazia mister, foi excluído o local da sede, na medida que apenas tomado de arrendamento , recai, pois, o privilégio creditório especial relativo aos créditos ora ventilados, a respeito de todos eles se verificando o elemento de conexão que é típico de tais privilégios, a saber, a especial relação intercedente entre o crédito e a coisa garante, ou seja, entre o exercício da actividade profissional do trabalhador e o património imobiliário do empregador em função do qual a mesma se desenvolveu e concretizou.

E ao ora exposto, não se oponha –similarmente ao Recorrente , que as cinco fracções autónomas, apenas antigamente foram o local de funcionamento dos escritórios da Insolvente, o que por último já não vinha acontecendo.
Com efeito, a menos de não se saber –por falta de qualquer elemento a esse respeito nos autos , qual a destinação que lhes vinha sendo conferida pela dita firma, o certo é que essas fracções permaneciam na esfera da mesma, cabalmente disponíveis para qualquer utilização ligada à actividade económica seu objecto. Assim, ainda que porventura desactivadas, tal situação de modo algum se pode reconduzir a uma qualquer concretizada e plena desvinculação desses espaços do âmbito da sobredita actividade.
Para os efeitos em presença, essa situação apenas pode ser tida por momentânea, transitória, sem de modo algum afectar a implicação das fracções à organização de que sempre foram parte integrante.
Destarte, também no referente a tais fracções não se quadra viável qualquer intuito no sentido de as subtrair à acção do privilégio especial que, como vimos reiteradamente afirmando, assiste aos Trabalhadores da Insolvente ora reclamantes.

Nestes termos, pois, e em síntese, ainda que nessa forma sumária, o douto saneador-sentença ao reconhecer como “privilegiados” os créditos reclamados pelos ditos Trabalhadores não incorreu em qualquer grave incorrecção, e muito menos em expressão tal que esse favorável reconhecimento apenas seja possível de reportar ao privilégio mobiliário geral que, nos termos já referidos, a esses mesmos créditos assistem.
Na verdade, também quanto ao privilégio imobiliário especial nada obsta à respectiva inclusão em tal sumário reconhecimento, pois, como se expendeu, em face do regime legal convocável e da sua conjugação com os elementos constantes dos autos –“maxime” o auto de apreensão , a assistência em relação aos créditos em apreço de tal garantia surge, igualmente, como realidade insofismável.
Como assim, nada desaconselha a manutenção de tal decisão intocada, o que ora se decide, com a inerente improcedência, também ela, da douta objecção em exame.

3. Insurgindo-se ainda contra a mesma decisão, diz o Recorrente que, na sequência da já aludida adesão à Lista de credores elaborada pelo Exmº Administrador, foram também na mesma reconhecidos como privilegiados os créditos reclamados pela DGSI/Direcção de Finanças de Coimbra e ISS/IP Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra.
Ora, esse reconhecimento –segundo o mesmo , consubstancia-se em erro manifesto, pois que se fundou nas normas das als. a) e b), do art.º 97º, nº 1, do C.I.R.E., normas estas de natureza substantiva, e que dispondo sobre a extinção de privilégios creditórios gerais e especiais só regem para futuro, por isso só podendo aplicar-se às relações creditícias que se constituam ou vençam após a entrada em vigor desse Código, nos termos do art.º 12º, nº 1, do CC.
Assim, a esses créditos devia aplicar-se a norma do art.º 152º do C.P.E.R.E.F., por ser aquela que vigorava ao tempo da respectiva constituição –efectuando-se, se a tanto necessário, interpretação abrogatória da norma (art.º 10º, nº 1, do DL nº 53/2004, de 18 de Março) revogatória de tal Diploma , devendo, pois, considerar-se extintos os privilégios inerentes a tais créditos e, portanto, os mesmos como meramente comuns.
Que dizer, agora a este propósito? Vejamos mais uma vez.

3.1. Antes de mais, importa ressalvar –no seguimento do que ensejámos expor em sede do prembular relatório , que diversamente do afirmado pelo Recorrente o crédito reclamado pelo ISS/IP Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra não foi, na decisão ora em crise, objecto de qualquer reconhecimento.
Com efeito, e consoante dessa decisão claramente emerge (fls.659), tal crédito, apesar de reconhecido pelo Exmº Administrador, na medida em que alvo de impugnação por banda de alguns Trabalhadores da Insolvente, ainda que apenas de forma segmentar, viu o seu reconhecimento integral relegado para momento ulterior.
Quanto ao crédito em presença, pois, a vertente questão recursória, se bem pensamos, sempre estaria votada a insucesso, desde logo por via do disposto no nº 1, do art.º 680º, do CPC.

3.2. Mas que assim não fosse, fatalmente valeriam em relação a ele as mesmas razões que passaremos a aduzir no tocante ao crédito reclamado DGSI/Direcção de Finanças de Coimbra, razões que, assim, e em nosso modesto ver, precludem em absoluto qualquer eventual reiteração da controvérsia mesmo relativamente a esse outro crédito.

Com efeito, proclama o Recorrente em ordem a afastar a aplicação aos créditos em foco da nova disciplina por elas introduzida, versando a eficácia temporal dos privilégios creditórios do Estado, autarquias locais e instituições de segurança social , que as normas das als. a) e b), do nº 1, art.º 97º, do C.I.R.E, só podem reger para futuro. E tal, por isso que estauindo sobre a extinção de privilégios creditórios gerais e especiais, face ao preceituado no art.º 12º, nº 1, do CC, apenas são aplicáveis às relações creditícias constituídas ou vencidas já após a entrada em vigor desse Diploma falimentar.

Porém, e ressalvando sempre o maior respeito, julgamos assim não ser.

Dispondo sobre a aplicação de leis no tempo, o art.º 12º do CC, além desse nº 1, a que o Recorrente se arrima, contém também um nº 2, onde se prescreve que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa, os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”
Atentando neste preceito –e socorrendo-nos da elucidativa exposição inserta no Ac. da R.C. de 18-03-1997, in Col., Tomo II, pág. 29 , diremos que aquelas normas das als. a) e b), do nº 1, art.º 97º, do C.I.R.E, não interferem minimamente com as situações de facto que subjazem aos créditos a que nos atemos, não contendem com os impostos e coimas –no caso da DGSI , nem com as contribuições –no caso ISS/IP , em que os mesmos se consubstanciam. Enfim, em nada põem crise as condições de validade de tais créditos.
Apenas alteram as condições de privilégio dos mesmos, alteração endereçada a um acrescido benefício dos respectivos Titulares, no confronto com o regime pretérito, art.º 152º do C.P.E.R.E.F..
Ora –e tal como se pondera nesse aresto (pág. 30) , essa situação pode ser alterada a qualquer momento.
Quem tem o poder para conceder os privilégios, tem-no por igual para os retirar, designadamente se o interesse público o justificar, sendo certo que, fazendo-o, deixa seguramente intocáveis as situações de facto criadas e os direitos daí decorrentes, apenas actuando sobre as condições de realização de tais direitos, sobre o modo em que a respectiva execução judicial poderá decorrer. Não toca, pois –insistimos , na validade ou valoração dos factos constitutivos desses mesmos direitos –nesta exacta expressão, cfr. Ac. do S.T.J. de 19-03-96, in Col./STJ, Tomo I, pág. 150.
Em tal decorrência, logo se conclui, no concernente aos créditos versados, pela aplicação da disciplina enformadora da última parte do acima reproduzido nº 2, desse art.º 12º, na linha, de resto, do ensinamento dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. cit., pág. 62, a saber, “a lei que regula em novos termos a garantia patrimonial de determinados créditos, criando, por exemplo, a seu favor, um privilégio creditório, deve aplicar-se retroactivamente.”
No mesmo sentido se pronunciou, outrossim, o Prof. J. Baptista Machado in Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Almedina, pág. 27 , não sem antes referenciar, anuentemente, o pensamento de um Autor francês, proclamando que “as leis que criam ou suprimem privilégios são relativas aos efeitos do crédito no processo de distribuição do activo do devedor e recebem efeito imediato.”. (sublinhado nosso).

Frente a todo o exposto, pois, nenhuma hermenêutica derrogatória se evidencia operável à normação do predito art.º 10º do DL. nº 53/2004, pelo que sendo as disposições ínsitas a essas als. a) e b), do nº 1, art.º 97º, do C.I.R.E, aplicáveis aos créditos em presença, nenhum censurável reparo, também no aspecto ora considerado, há que fazer ao douto saneador-sentença que, assim, nos surge “in totum” de manter inalterado.

IV – DECISÃO
Termos em que, julgando-se a vertente apelação improcedente, se confirma a douta decisão por ela adversada.
Custas pelo Recorrente.