Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
62-A/1999.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: INVENTÁRIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
DÍVIDA
PROVAS
MÚTUO
Data do Acordão: 10/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: J. FAMÍLIA E MENORES O. BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1356.º E 1355.º DO CPC E ARTIGO 1143.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1) Havendo divergências entre os interessados sobre a aprovação das dívidas, deve o juiz conhecer da sua existência, nos termos dos artigos 1356.º e 1355.º do CPC, mas só quando disponha de prova documental segura para tanto;

2) Prova segura é aquela que permite formular um juízo de certeza prática sobre a questão;

3) Invocando-se um contrato de mútuo como fonte do crédito alegado, é imperioso que, na sua celebração, se tenham observado as regras formais prescritas no artigo 1143.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            Transitada em julgado a sentença que decretou o divórcio, por mútuo consentimento, do casal constituído por A... e B...., requereu esta inventário para partilha dos bens, nos termos do artigo 1404.º do Código de Processo Civil, tendo indicado para exercer as funções de cabeça de casal o seu ex-marido.

            Apresentada a relação de bens, que incluía activo e passivo, veio a requerente reclamar da mesma, tanto por excesso, como por defeito, reclamação que obteve resposta por parte do cabeça de casal.

            O litígio foi resolvido por acordo, numa parte, e por decisão judicial, noutra parte. No que para aqui interessa, o tribunal determinou a eliminação de uma dívida, relacionada pelo montante de 1.000.000$00, e manteve o relacionamento de três outras dívidas, nos valores de 475.000$00, 140.000$00 e 721.604$00, de que seria credora C....

            Esta Relação, na sequência de recurso interposto pela requerente, decidiu pela manutenção do relacionamento daquelas três dívidas, esclarecendo, porém, que as mesmas teriam de ser submetidas à conferência de interessados e não sendo aprovadas, por ambos os interessados ou só por um deles, haveria o tribunal de conhecer da sua existência, em função da prova documental produzida.

            Na conferência de interessados os ex-cônjuges acordaram quanto à divisão do activo, mas não no que tange ao passivo, que foi aprovado, tão-somente, pelo cabeça de casal.

            Foi proferida, então, decisão que julgou verificadas as dívidas, em relação à quota-parte do cabeça de casal, por as ter aprovado, e quanto à quota da requerente, por via da prova documental junta aos autos.

            Inconformada com o decidido, no segmento da verificação da sua quota-parte das dívidas, interpôs a requerente recurso (admitido como agravo, para subir em diferido e com efeito devolutivo), alegou e formulou 21 conclusões, que se resumem, sem dificuldade alguma, a, apenas, cinco:

            1) O juiz só pode conhecer da existência das dívidas quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados;

            2) Dos documentos apresentados (letras em que figuram como aceitantes os dois cônjuges ou só o cabeça de casal e como sacador terceira pessoa, cheques sacados pela pretensa credora a favor desse mesmo terceiro, livrança em branco subscrita pelo casal a um banco, duas cartas desse banco dirigidas ao cabeça de casal, dois cheques sacados pela alegada credora a favor do cabeça de casal, seu filho, um talão de depósito bancário e uma declaração do banco acerca do valor do financiamento concedido ao casal) não é possível concluir pela existência de uma dívida a favor do alegado credor.

            3) Só existe dívida se houver obrigação de reembolso, o que não resulta dos apontados documentos;

            4) Mas, ainda que dívida existisse, não se demonstra que seja do casal;

            5) A decisão recorrida violou as disposições dos artigos 1354.º e 1356.º do Código de Processo Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que remeta as partes para os meios comuns no que se refere à quota-parte da recorrente.

            O recorrido respondeu à alegação da recorrente, afirmando que os documentos comprovam suficientemente a existência das dívidas relacionadas, que, de resto, nunca foram postas em causa por aquela.

            O ex.mo juiz sustentou a decisão recorrida.

            Entretanto, foi proferido despacho determinativo da forma da partilha, elaborado o correspondente mapa e exarada sentença, que, para além de homologar a partilha, condenou cada um dos interessados no pagamento das dívidas passivas reconhecidas, na respectiva quota-parte.

            Ainda inconformada, a requerente interpôs recurso (recebida como apelação e efeito devolutivo) e apresentou a sua alegação, que concluiu de forma praticamente igual à anterior.

            Também o recorrido se limitou, na sua contra-alegação, a reproduzir a peça apresentada para o agravo.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Vistos os termos das conclusões da alegação de ambos os recursos, é uma só a questão a requerer solução: saber se os documentos apresentados para o efeito fazem prova segura da dívida reclamada.

            Ora, sendo a questão decidenda comum aos dois recursos, conhecer-se-á, apenas, do agravo, porque o que se decidir para ele vale, igualmente, para a apelação, que, aliás, perderá utilidade, caso o agravo logre procedência.

            II. Os factos com interesse para a decisão do recurso são os seguintes:

            A) Recorrente e recorrido casaram entre si em 5 de Janeiro de 1985, em primeiras núpcias de ambos e segundo o regime da comunhão de adquiridos.

            B) Em 11 de Fevereiro de 1999, foi intentada acção de divórcio litigioso pela recorrente contra o recorrido, posteriormente convertido em divórcio por mútuo consentimento, onde veio a ser decretado o divórcio e a dissolução do casamento, por sentença proferida a 15.12.1999, transitada em julgado em 07.01.2000.

            C) No presente inventário o cabeça de casal relacionou as seguintes dívidas a sua mãe, C....:

            a) 475.000$00, que a credora emprestou ao dissolvido casal, para este liquidar parte de um empréstimo que havia contraído junto de D..., titulado por uma letra aceite;

            b) 140.000$00, que a credora emprestou ao casal, para este liquidar parte de um empréstimo contraído junto do Banco F... para aquisição de um computador;

            c) 721.604$00, que a credora emprestou ao casal, para este liquidar parte de um empréstimo de 2.000.000$00 contraído junto do Banco G....

            D) A recorrente reclamou da relação de bens, impugnando as dívidas relacionadas;

            E) Para prova da dívida de 475.000$00, apresentou o cabeça de casal os seguintes documentos:

1) Uma letra de câmbio no valor de 750.000$00, com a data de emissão de 24.08.97 e a data de vencimento de 24.11.97, sacada por D... sobre si próprio, aceite pelo recorrido e pela recorrente e endossada pelo sacador/sacado ao Banco E...;

2) Uma letra de câmbio no valor de 450.000$00, com a data de emissão de 24.02.98 e a data de vencimento de 24.05.98, sacada por D... sobre o cabeça de casal, aceite por este e endossada pelo sacador na Banco E...;

3) Cópia do rosto de um cheque no valor de 25.000$00, datado de 16.10.98, com o n.º 0853338057, emitido à ordem de D..., sacado por C... sobre uma conta colectiva de que é primeiro titular A.. , existente na agência de Anadia do Banco G... (n.º 222/03970/000.7); nessa cópia consta a seguinte declaração: “este cheque serviu para pagamento das despesas da minha conta caucionada sobre a letra de 450.000$00 paga pelo cheque n.º 222/5333804.9 do Banco G.... de Anadia” e uma assinatura com o nome de D....

4) Cópia do rosto de um cheque no valor de 450.000$00, datado de 16.10.98, com o n.º 8053338049, emitido à ordem de D..., sacado por C... sobre a conta referida no número anterior. Nessa cópia consta a seguinte declaração: “este cheque foi para pagamento da letra de 450.000$00 descontada sobre o Banco E... Ifeito n.º 0024.0165.20006622456.81. e a assinatura D....

            F) Para prova da dívida de 140.000$00, foram apresentados pelo cabeça de casal estes documentos:

            1) Uma livrança em branco, à ordem do Banco F..., subscrita pelos ex-cônjuges, tendo inserta a cláusula “não à ordem”, com aval ao subscritor dado por H... ;

            2) Cópia de um ofício dirigido pela agência de Oliveira do Bairro do Banco F...ao cabeça de casal, datado de 15 de Março de 1999, com o seguinte teor: ”Junto enviamos livrança em branco, que se encontra a caucionar o empréstimo relativo ao crédito pessoal”;

            3) Uma declaração do Banco F..., datada de 20 de Janeiro de 1997, da qual consta que o cabeça de casal liquidou ao Banco, em 1996, 190.000$00, sendo 95.604$00 de amortizações, 88.820$00 de juros e 5.576$00 de imposto, respeitante a empréstimo concedido para aquisição de meios informáticos;

            4) Cópia de um cheque no valor de 140.000$00, datado de 16.10.98, emitido à ordem do cabeça de casal, sacado por C... sobre a conta referida em E.3). Nessa cópia consta uma declaração da agência de Oliveira do Bairro do Banco F...com os seguintes dizeres: “o cheque reproduzido acima, destina-se à liquidação do empréstimo n.º 20008687670, contraído para aquisição de material informático”.

            G) Para prova da dívida de 721.604$00, o cabeça de casal juntou aos autos os seguintes documentos:

            1) Uma declaração da agência de Anadia do Banco G..., datada de 23 de Outubro de 1998, da qual consta que o cabeça de casal   e a recorrente possuem um crédito individual em tal agência, que apresenta os seguintes valores:

            - Data de início … 27.08.96

            - Data do fim …... 27.08.99

            - Capital inicial ………………2.000.000$00

            - Capital em dívida nesta data….721.604$00

            -Valor das prestações ……………71.800$00

            2) Cópia de um talão de depósito da quantia de 721.604$00, datado de 02.11.98, efectuado pelo cabeça de casal a seu favor, na agência de Anadia do Banco G..., para crédito da conta n.º 222263390008, através da entrega do cheque n.º 8053338146, referente à mesma agência.

            3) Cópia de um cheque no valor de 721.604$00, datado de 02.11.98, emitido à ordem do cabeça de casal, sacado por C... sobre a conta referida em E.3.

            H) A reclamação foi decidida no sentido de se manter o relacionamento das dívidas, com fundamento nos documentos juntos e nas declarações da credora, que disse serem as dívidas do cabeça de casal e que nada recebeu desses montantes.

            I) Interposto recurso da decisão pela ora recorrente, foi a mesma confirmada por esta Relação, que, além do mais, ordenou a citação da credora, o que foi cumprido.

            J) Na conferência de interessados a que se procedeu, o cabeça de casal aceitou as dívidas relacionadas.

            L) A recorrente não aprovou o passivo.

            M) Foi, então, proferida decisão que declarou reconhecidas as dívidas, na quota-parte respeitante ao cabeça de casal, por este as ter aprovado, e, na parte referente à ora recorrente com a seguinte fundamentação: “Todavia, conforme já referido no despacho anteriormente proferido sobre a reclamação contra a relação de bens, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido, existem elementos probatórios documentais, maxime cópias de cheques emitidos a favor do cabeça de casal que permitem solucionar a questão com segurança (por identidade de razões à solução dada para a aludida reclamação)”.

            N) A forma determinativa da partilha é do seguinte teor: “Toma-se o valor dos bens descritos na relação de bens conforme determinado no acordo em conferência de interessados. Este divide-se em duas partes iguais, cabendo cada uma delas a cada um dos interessados. Quanto ao preenchimento dos quinhões, atender-se-á ao já decidido em conferência de interessados. Em relação ao passivo, será dado pagamento de acordo com o que vier a ser decidido na sentença que julgar a partilha”.

            O) Na sentença homologou-se a partilha constante do mapa e decidiu-se assim quanto às dívidas passivas: “Tendo em consideração o teor da decisão proferida em 10.10.2008, a folhas 310 e 311 dos autos, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido, condeno cada um dos interessados no pagamento das dívidas passivas reconhecidas, nas respectivas quotas-partes”.

           

            III. O direito:

            Em causa está, como supra se referiu, a verificação de dívidas relacionadas pelo cabeça de casal e por ele aprovadas, mas não pela recorrente.

            A aprovação das dívidas é da competência da conferência de interessados (artigo1353.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, diploma de que serão os demais preceitos legais que venham a ser citados sem menção de origem), como, aliás, decidiu esta Relação no acórdão mencionado na alínea I) da matéria de facto assente.

            Se todos os interessados as aprovarem, são tidas por judicialmente reconhecidas, a menos que haja interessados menores ou equiparados e a lei exija certa espécie de prova documental para a demonstração da sua existência, caso em que se torna necessária a junção ou a exibição dessa prova (artigo 1354.º); protegem-se, assim, como ensina João António Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, volume II, 3.ª edição, páginas 129 e seguintes), os interesses dos incapazes contra os abusos a que a ignorância ou a negligência dos seus representantes legais dava incentivo.

            Na hipótese inversa, ou seja, se os interessados forem contrários à aprovação da dívida, o juiz conhecerá da sua existência quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados (artigo 1355.º).

            Se houver, finalmente, divergências sobre a aprovação da dívida, isto é, se alguns interessados a aceitarem e outros não, considera-se a mesma reconhecida na quota-parte relativa aos interessados que a aprovaram e o juiz conhecerá da parte restante, quando exista prova documental segura sobre a sua existência (artigo 1356.º).

            Interessa-nos, evidentemente, esta última situação, visto que os ex-cônjuges divergiram sobre a aprovação das dívidas.

            O conhecimento por parte do juiz não se reconduz a uma faculdade, incorporando antes uma obrigação (Lopes Cardoso, ob. cit., página 140; acórdão desta Relação, de 19.04.2005, CJ, Ano XXX, Tomo II, página 34), dependente, no entanto, da verificação de dois pressupostos: 1) que existam documentos referentes à dívida; 2) que do seu exame resulte a comprovação segura desta.

            Qual seja o exacto alcance do termo “segurança” não o diz a lei, afigurando-se, na falta do preenchimento do conceito, que deverá ser tomado pelo seu valor facial, que é como quem diz, com o significado de certeza (prática, pelo menos) ou de convicção muito profunda.

            No mínimo, será exigível a formulação de um juízo com elevado grau de certeza, como esclareceu o nosso mais alto Tribunal, a propósito da decisão sobre o incidente da reclamação contra a relação de bens (acórdão de 15.05.2001, CJ/STJ, Ano IX, Tomo II, página 75), onde as razões de segurança parecem não ser tão apertadas, vista a admissibilidade da prova testemunhal, que a verificação judicial do passivo não consente.

            A questão é, portanto, esta: os documentos apresentados fazem prova segura das dívidas relacionadas?

            Vejamos, caso a caso:

            A) Dívida de 475.000$00 que, conforme o que consta da relação, a credora teria emprestado ao cabeça de casal, para ele liquidar parte de um empréstimo contraído junto de D....

            Os documentos apresentados para prova da dívida são: a) uma letra de câmbio no valor de 750.000$00, emitida em 24.08.87 e com vencimento três meses depois, sacada por D... sobre si próprio, aceite pelo cabeça de casal e pela recorrente e endossada pelo sacador/sacado ao Banco E...; b) uma letra de câmbio no montante de 450.000$00, com data de emissão de 24.02.98 e data de vencimento de 24.05.98, sacada por D... sobre o cabeça de casal, aceite por este e endossada pelo sacador ao Banco E...; c) cópia do rosto de um cheque, com o valor aposto de 25.000$00, datado de 16.10.98, à ordem de D..., sacado pela credora, onde o beneficiário inseriu a declaração de que o título serviu para pagar as despesas de uma sua conta caucionada sobre a letra de 450.000$00, paga, esta, através do cheque 53338049, do G... de Anadia; d) cópia do rosto de um cheque no valor de 450.000.$00, datado de 16.10.98, emitido à ordem de D..., sacado pela credora, do qual consta declaração escrita do tomador, no sentido de que o cheque serviu para pagamento da letra de 450.000$00.

            Duas notas antes de proceder à análise dos documentos:

            Ao tempo da sua emissão, os interessados estavam, ainda, casados entre si; a acção de divórcio só foi instaurada 11.02.199, data em que cessaram as relações patrimoniais, uma vez que nenhuma outra foi fixada na sentença que decretou o divórcio entre ambos (artigo 1789.º do Código Civil, n.ºs 1 e 2).

            Na constância do casamento, e enquanto não cessarem as relações patrimoniais, responsabilizam ambos os cônjuges as dívidas contraídas por ambos ou só por um deles, mas com o consentimento do outro, as dívidas contraídas por qualquer deles para ocorrer aos encargos normais da vida familiar, as dívidas contraídas pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração, as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, excepto se não tiverem visado o proveito comum ou vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens, e as dívidas consideradas comunicáveis, nos termos do n.º 2 do artigo 1693 – alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil.

            No entanto, o proveito comum do casal não se presume, salvo nos casos em que a lei o declare (n.º 3 do mesmo preceito).

            Centremo-nos, agora, nos documentos.

            A primeira das mencionadas letras demonstra, sem margem para dúvidas, que a recorrente e o recorrido se constituíram na obrigação de pagar ao portador, na data do vencimento, a quantia de 750.000$00, uma vez que a aceitaram (artigo 28.º, 1.ª parte, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças).

            A segunda parece ser uma letra de reforma, emitida na sequência de um pagamento parcial do montante inscrito na primeira; e diz-se parece, porque, de facto, não existe a certeza de que assim seja; a lógica das coisas, mormente a identidade de sacador e de aceitante (com a ressalva de que a segunda letra só foi aceite pelo cabeça de casal), as datas de emissão e de vencimento (sempre no dia 24) e os respectivos valores apontam nesse sentido; mas nada assegura que se não trate de letras autónomas entre si.

            A ser a letra de reforma, é claro que o casal teria visto a dívida inicial reduzida para 450.000$00.

            Os cheques nos valores de 450.000$00 e de 25.000$00 indicam que a credora pagou ao sacador o montante inscrito na segunda letra, bem como despesas de operações bancárias relacionadas com a mesma.

            Suposto que tudo se tenha passado desta forma e que parte da dívida inicial (da responsabilidade de ambos os interessados, repete-se) foi liquidada pela credora, nem assim lhe assistiria o direito de haver do património comum o pagamento do que despendeu, tendo em conta a parcimónia dos elementos disponíveis.

            Vejamos porquê.

            De acordo com o teor da relação e com o que foi alegado pela credora, a dívida teria resultado de um empréstimo feito ao dissolvido casal para este liquidar parte do empréstimo contraído junto de D...; ora, o que emerge dos documentos é algo de diferente: a credora não emprestou ao casal, pagou por ele a quantia titulada pela letra de 450.000$00; mas, admitindo que o pagamento tivesse sido efectuado à sombra de um acordo de empréstimo do mesmo valor, o certo é que faltaria prova documental nesse sentido, única admissível em sede de reconhecimento judicial de dívidas em processo de inventário[1].

            Por esta via, não pode, portanto, a dívida ser reconhecida; e por força do pagamento do crédito do portador da letra?

            A resposta está em saber que direitos tem o terceiro que efectua a prestação.

            Se for sub-rogado, seja pelo credor, seja pelo devedor, transmite-se para ele a titularidade do direito (artigos 589.º e 590.º do Código Civil); o mesmo acontecerá se for sub-rogado por lei, por ter garantido o cumprimento, ou por estar, devido a outra causa, directamente interessado na satisfação do crédito (artigo 592.º do mesmo diploma) ou por se dar alguma das excepções abrangidas pela parte final do n.º 1 do artigo 477.º (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume II, 5.ª edição, páginas 28/29).

            Certo é que dos documentos apresentados não emerge qualquer das apontadas formas de sub-rogação; sub-rogação convencional não existe, desde logo, porque não foi expressamente manifestada, como é exigência dos referidos artigos 589.º e 590.º; e sub-rogação legal, também não, por falta de documentação da garantia do cumprimento ou do interesse na satisfação do crédito.

            Fora dos casos de sub-rogação, podem perfilar-se, como ensina Antunes Varela, outras hipóteses.

            Se o terceiro agiu como gestor de negócios, competir-lhe-ão os direitos previstos nos artigos 468.º e 469.º do Código Civil (reembolso ou restituição derivada do enriquecimento sem causa); se agiu como mandatário, terá os direitos correspondentes às obrigações do mandante referidas no artigo 1167.º (no essencial, reembolso das despesas); se quis beneficiar gratuitamente o devedor, o cumprimento constituirá uma liberalidade indirecta ao beneficiário, quando este a aceite, à qual serão aplicáveis as regras do contrato de doação (ob. cit., página 29).

            Só que as razões que ditaram o afastamento da sub-rogação – falta de prova documental –, ditam, igualmente, o de qualquer destas hipóteses.

            Em conclusão, a dívida de 475.000$00 não pode ser judicialmente reconhecida.

           

            B) Dívida de 140.000$00, que a credora teria emprestado ao casal, para ser liquidado parte de um empréstimo contraído junto do Banco F...( F...) com vista à aquisição de um computador.

            Os documentos apresentados foram uma livrança em branco, à ordem do F..., subscrita pelos ex-cônjuges, com a cláusula não à ordem e com aval ao subscritor dado por H..., cópia de um ofício da agência do F... de Oliveira do Bairro, datado de 15.03.99, dirigido ao casal, a acompanhar a remessa daquela livrança, que, segundo se ali diz, se encontrava a caucionar um empréstimo relativo a crédito pessoal, uma declaração do F..., datada de 20.01.97, da qual consta que o cabeça de casal, em 1996, lhe pagou a importância de 190.000.$00, sendo 95.604$00 de amortizações, 88.820$00 de juros e 5.526$00 de imposto, respeitante a empréstimo concedido para aquisição de meios informáticos, e cópia do rosto de um cheque, no montante de 140.000$00, datado de 16.10.98, emitido pela credora à ordem do cabeça de casal, com a declaração aposta pela agência do F... de Oliveira do Bairro de que se destinou à liquidação do empréstimo antes referido.

            Os mencionados documentos revelam que o casal obteve um crédito pessoal junto do G..., que acabou por ser amortizado, sendo que os últimos 140.000$00 foram pagos através de cheque da ora credora, emitido à ordem do cabeça de casal.

            Tratando-se, inquestionavelmente, de dívida comum, porque contraída por ambos os cônjuges na constância do matrimónio, a única questão que se coloca é a de saber se o cheque emitido pela credora à ordem do cabeça de casal faz prova segura de que o montante nele inscrito foi objecto de empréstimo ao casal.

            A resposta não pode deixar de ser negativa, porque o contrato de mútuo pressupõe a obrigação de restituição – mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, diz o artigo 1142.º do Código Civil –, que a simples entrega de um cheque de modo nenhum comprova.  

            Apesar de o empréstimo não depender, no caso presente, de formalismo, dado o respectivo valor, nada há que nos diga que o cheque foi emitido ao abrigo de um contrato de mútuo, e não a título de liberalidade ou, quiçá, de liquidação de dívida contraída pela ora credora perante o cabeça de casal.

            Subsistindo a dúvida, falece a segurança que é postulado do reconhecimento judicial das dívidas.

            C) Dívida de 721.604$00, que a credora, alegadamente, emprestou ao casal, para este liquidar parte de um empréstimo no valor global de 2.000.000$00, contraído junto do Banco G... (G...).

            Foram estes os documentos juntos para prova da dívida: declaração da agência de Anadia do G..., datada de 23.10.98, da qual consta que o casal possui aí um crédito individual com o capital inicial de 2.000.000$00, encontrando-se em dívida a quantia de 721.604$00, cópia de um talão de depósito do valor de 721.604$00, com a data de 02.11.98, efectuado pelo ora recorrido a seu favor no G... de Anadia, através do cheque n.º 8053338146, da mesma agência, e cópia do rosto desse cheque, datado de 02.11.98, emitido pela credora à ordem do cabeça de casal.

            A análise destes documentos permite concluir que o casal contraiu uma dívida de 2.000.000$00 junto do Banco G..., entretanto reduzida para 721.604$00, montante este que veio a ser liquidado pelo cabeça de casal, através de um cheque emitido à sua ordem pela ora credora.

            No entanto, e tal como se disse para a hipótese anterior, não há elemento algum que permita atribuir à entrega do cheque ao cabeça de casal a natureza de empréstimo; não está excluída a liberalidade, como o não está o eventual pagamento de uma dívida da emitente do cheque ao respectivo beneficiário.

            Mas, ainda que, de facto, tivesse havido empréstimo, sempre a falta da sua documentação impediria o reconhecimento da dívida, posto que a verificação do passivo pelo tribunal depende de prova documental, como se esclareceu em relação à alegada dívida de 475.000$00 (a que acresce, também, a circunstância, ali aludida, de a própria celebração do contrato de empréstimo só ser válida se feita por documento assinado pelo mutuário).

            Deste modo, a dívida de 721.604$00 não pode, igualmente, ser considerada.

            IV. Em síntese:

            1) Havendo divergências entre os interessados sobre a aprovação das dívidas, deve o juiz conhecer da sua existência, nos termos dos artigos 1356.º e 1355.º do CPC, mas só quando disponha de prova documental segura para tanto;

            2) Prova segura é aquela que permite formular um juízo de certeza prática sobre a questão;

            3) Invocando-se um contrato de mútuo como fonte do crédito alegado, é imperioso que, na sua celebração, se tenham observado as regras formais prescritas no artigo 1143.º do Código Civil.

            V. Decisão:

            Em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo e em revogar a decisão agravada, que declarou verificadas as dívidas no que tange à quota-parte da agravante, que se substitui por outra, que remete os interessados para os meios comuns.

            Por via disso, declara-se a nulidade da tramitação posterior à decisão revogada, com inclusão da sentença homologatória da partilha.

            Custas pela recorrida.


[1] A ter existido empréstimo acordado por forma verbal, seria nulo, nos termos dos artigos 1143.º e 220.º do Código Civil, dado o respectivo valor exigir a formalidade de documento assinado pelo mutuário.