Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
392/07.0TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS
Data do Acordão: 09/30/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 152º CP
Sumário: O crime de maus tratos não demanda a prática habitual dos actos ou a repetitividade das condutas, o normativo prevê tanto situações repetitivas ou plurimas como situações de natureza una.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferida sentença que julgou procedente a acusação deduzida pelo Mº Pº contra o arguido:
R..., natural da freguesia e concelho de Pombal, casado, militar da GNR, e residente na rua da … Pombal,
Sendo decidido:
a) Condenar o arguido como autor material de um crime de maus tratos, p. e p. no art. 152º, 1 e 2 do C. Penal, na pena de 18 meses de prisão.
b) Substituir a pena de prisão aplicada ao arguido pela suspensão da sua execução por um período de 18 meses.
c) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pela ofendida parcialmente procedente e, assim, condenar o arguido no pagamento da quantia de €3 000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por aquela, a que acrescerão juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da presente sentença. Improcede o restante PIC deduzido pela demandante.
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Inconformada interpôs recurso o arguido.
São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do seu recurso, e que delimitam o objecto do mesmo:
1. Tendo em conta as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador, da análise e exame crítico-reflexivo das provas produzidas, declarações orais prestadas em audiência, documentadas em acta, através de registo por gravação magnetofónica, na parte respectiva e especificada e, após a necessária transcrição, os pontos de facto considerados incorrectamente julgados, designados por pontos três, quatro, cinco, seis, sete, nove, dez, catorze, quinze, dezasseis, dezassete e dezoito da douta sentença recorrida, devem, à luz desta reanálise e exame crítico das provas, ser considerados não provados;
2. O tribunal formou a sua convicção com base, fundamentalmente, nas declarações da ofendida, cujo depoimento, enquanto parte interessada na causa, não pode nunca ser valorado como se de uma normal testemunha se tratasse;
3. Não se provou em audiência de discussão e julgamento, e como resulta da prova documentada, que o arguido tivesse maltratado a ofendida por diversas vezes, frequentemente, desde há mais de 10 anos;
4. A douta sentença recorrida, ao referir que "Deve desde logo dizer-se que o arguido não prestou declarações. Assim, foram determinantes as declarações prestadas pela ofendida, que relatou de forma credível, porque o fez de um modo muito sentido e real apenas podendo tal tipo de depoimento ser efectuado por alguém que vivenciou as experiências relatadas na acusação, o modo como o arguido a agrediu física e psiquicamente durante os anos em que foram casados, tendo concretizado as situações descritas na acusação." (sublinhado nosso),
não deixa dúvidas que o facto de o arguido não ter prestado declarações o prejudicou em sede de formação da convicção do julgador sobre a matéria de facto considerada provada, resultando assim violada a norma legal contida no n° 1 do art. 343° do Código de Processo Penal;
5. O Tribunal a quo, ao condenar o arguido tendo em consideração exclusivamente que "a ofendida relatou de forma credível, e porque o fez de um modo muito sentido e real apenas podendo tal tipo de depoimento ser efectuado por alguém que vivenciou as experiências relatadas na acusação", quando essas declarações não são corroboradas por nenhuma testemunha ou por qualquer outro meio de prova, está a violar o princípio constitucionalmente consagrado do in dubio pro reo (art. 32, n° 2 da CRP);
6. No entender do arguido, ora recorrente, a conduta deste não se subsume no tipo legal de crime p. e p. pelo art. 152°, n° 2 do Código Penal (redacção anterior à revisão operada pela Lei n.º 59/2007 de 04.09), por não se encontrar preenchido o elemento objectivo do tipo (a reiteração da respectiva conduta);
7. Não se provou, em sede de audiência de discussão e julgamento, que o arguido tenha infligido maus tratos à ofendida por diversas vezes e, ainda que, por mera hipótese de raciocínio, se pudesse conceber esse cenário, não foi nunca referenciada, à excepção de uma situação, a data dos alegados maus tratos, o que nos impediria de os localizar no tempo e verificar o espaço temporal decorrido entre os mesmos;
8. Numa e noutra situação, sempre ficará por preencher o elemento objectivo do tipo - a reiteração da conduta -, não se podendo nunca, subsumir a conduta do arguido no tipo legal de crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152, n° 2 do Código Penal (redacção anterior à revisão operada pela Lei n. ° 59/2007 de 04.09);
9. Caso se não entenda de acordo com o vertido na conclusão 8ª, sempre a medida da pena de prisão aplicada pecaria por excessiva;
10. Entende o arguido, ora recorrente, no tocante à medida da pena a que foi condenado, concretamente quanto ao tempo de prisão que lhe foi aplicado, ainda que suspensa a sua execução, que a mesma é excessiva, tendo em atenção toda a factualidade dada como assente, ainda que a mesma se mantenha inalterada, uma vez que em abono do arguido temos que os alegados maus tratos por parte do arguido, ocorriam muitas vezes depois de ambos travarem discussões, onde o arguido era muitas vezes agredido verbalmente e fisicamente pela ofendida;
11. Entende-se como proporcional à culpa e por adequada a satisfazer as exigências de prevenção, caso se não absolva o mesmo pelo crime de maus tratos a cônjuge, a aplicação ao arguido da pena de mínima prevista na moldura penal aplicável ao crime em causa, ou seja, a uma pena de um ano de prisão, quantum que se afigura razoável e adequado, sendo que deve a execução da mesma ser suspensa, nos termos do art. 50° do Código Penal, por a censura do facto e a ameaça da prisão realizarem adequadamente as finalidades de punição;
12. Na douta sentença recorrida não se teve em conta, como se deveria ter tido, o disposto no art. 494°, ex vi 496° do Código Civil, nomeadamente quanto ao grau de culpabilidade do arguido / demandado, ao condenar este no pagamento à ofendida, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 3.000,00 (três mil euros),
13. O montante indemnizatório de € 3.000,00 (três mil euros) em que o arguido foi condenado a pagar à ofendida é manifestamente excessivo e desproporcionado face ao grau de culpabilidade do arguido / demandado;
14. Deve o montante da indemnização por danos não patrimoniais a que o arguido foi condenado a pagar à ofendida ser reduzido, tendo em conta o disposto no art. 494°, ex vi 496° do Código Civil.
15. Por erro de interpretação e/ ou aplicação foram violados, entre outros, os arts. 40°, 71° e 152°, todos do Código Penal e o art. 494°, ex vi 496° do Código Civil.
DEVE A DECISÃO SER REVOGADA NA PARTE SINDICADA E SUBSTITUÍDA POR ACÓRDÃO A JULGAR IMPROCEDENTE, POR NÃO PROVADA, A ACUSAÇÃO QUE IMPUTA AO ARGUIDO O CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE E, CONSEQUENTEMENTE, SER O ARGUIDO ABSOLVIDO DO CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE, P. E P. PELO ART. 152°, N° 2 DO CÓDIGO PENAL (REDACÇÃO ANTERIOR À REVISÃO OPERADA PELA LEI N.º 59/2007 DE 04.09).
CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, SEMPRE A MEDIDA DA PENA SE MOSTRA EXCESSIVA PELAS APONTADAS RAZÕES, DEVENDO SER REDUZIDA PARA QUANTUM INFERIOR.
DEVE, IGUALMENTE, SER REDUZIDO O MONTANTE INDEMNIZATÓRIO EM QUE O ARGUIDO FOI CONDENADO A PAGAR À OFENDIDA, TENDO EM CONTA O DISPOSTO NO ART. 494º, EX VI 496º DO CÓDIGO CIVIL.
Foi apresentada resposta, pelo magistrado do Mº Pº que conclui:
I. O Tribunal a QUO não violou o disposto no artigo 343 do Código de Processo Penal, tendo-o respeitado nos seus exactos termos.
II. O Tribunal decidiu em conformidade com o princípio fundamental sobre a regra da livre apreciação da prova, que se acha consignada no artigo 127.° do Código de Processo Penal.
IIl. Face a prova produzida em audiência de julgamento - contrariamente ao peticionado pelo recorrente - estão reunidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de maus tratos em o recorrente veio a ser condenado.
IV. Assim sendo, consideramos que a pena imposta ao recorrente foi justa e adequada face à moldura penal abstractamente aplicável ao crime pelo qual este foi condenado.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.
Nesta Instância, a Ex.mª Procuradora Geral Adjunta, em parecer fundamentado, sustenta a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
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Mostra-se apurada, a seguinte matéria de facto e fundamentação da mesma:
FUNDAMENTAÇÃO:
FACTOS PROVADOS:
1- O arguido e a ofendida M… são entre si casados há cerca de 26 anos e residiam na Rua … –Pombal, onde ocorreram os factos a seguir relatados.
2- Desde há mais de dez anos que o arguido começou a tratar mal a ofendida sua esposa, discutindo com ela frequentemente, agredindo-a e insultando-a dirigindo-lhe nomes ofensivos da sua honra, dignidade e consideração.
3- No dia 03 de Dezembro de 1999 agrediu-a de tal modo que lhe fracturou o osso do nariz.
4- As agressões físicas repetiram-se inúmeras vezes até ao ano de 2006.
5- Nessa altura as agressões passaram a ser mais frequentes e no dia 30 de Março de 2006 – porque o arguido não concordava com o divórcio por mútuo consentimento – ameaçou-a de morte, chegando a correr atrás de si com uma faca e dizendo-lhe que se não desistisse do divórcio a matava.
6- Em 29 de Março de 2007, cerca das 20H30m, ameaçou que a matava, chegando mesmo a exibir-lhe uma arma de fogo de características e natureza que não foi possível determinar ao certo.
7- Várias vezes lhe disse a matava.
8- Frequentemente a apelidava de “puta” e “vaca”.
9- No dia 29 de Abril de 2007, estando a ofendida deitada na sua cama, na residência de ambos, o arguido começou a puxar-lhe os cabelos e desferiu-lhe empurrões vários que fizeram com que esta batesse com a cabeça na parede.
10- No dia 30 de Abril de 2007, voltou a agredi-la, sempre no interior da habitação de ambos, segurando-a pelos cabelos e empurrando-a para o chão.
11- Nessa ocasião apoderou-se das chaves da habitação que pertenciam à queixosa e de 3 cartões “Multibanco” desta.
12- Em virtude de tais agressões sofreu a ofendida hematoma do couro cabeludo e escoriações a nível do antebraço esquerdo, face lateral; equimose de 1 cm de diâmetro de cor amarelada, dores na palpação da região paravertebral, sem alterações da mobilidade, equimose de 3 cm de comprimento na face postero-interna do antebraço na sua porção média, que lhe determinaram directa e necessariamente 21 dias de doença, 10 dos quais com incapacidade para o trabalho profissional.
13- Após, os filhos da ofendida compraram um apartamento na Urbanização …em Pombal, onde por vezes pernoita.
14- Todavia, mesmo aí o arguido a persegue no caminho do trabalho desta para tal apartamento, dizendo que a há-de matar.
15-O arguido agiu sempre voluntária, livre e conscientemente, com intenção de molestar fisicamente a ofendida sua esposa, do modo descrito - como fez - bem sabendo que dessa forma provocava ofensas no corpo e na saúde daquela como pretendia e conseguiu.
16- Conhecia bem que a ofendida era sua esposa e sempre que a agrediu física e psiquicamente - do modo descrito - agiu com o conseguido propósito de a ofender e maltratar, o que fez de forma contínua e reiterada, de molde a atingir a sua dignidade humana e saúde física e mental, como visou e conseguiu.
17- Determinou-se, durante todo o lapso de tempo referenciado, reiterando sucessivamente os mesmos propósitos, cometendo de forma homogénea os repetidos actos criminosos, favorecido pelas mesmas circunstâncias exteriores (o facto de viverem juntos) e servindo-se dos mesmos métodos que sucessiva e repetidamente se foram revelando aptos para atingir os seus fins.
18- Conhecia bem que, desse modo, praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis.
19- Em consequência da actuação do arguido a ofendida sentiu dores, vivendo aterrorizada com as ameaças que ele proferia, tendo-se tornado uma pessoa triste, desconfiada e amedrontada.
20- O arguido foi internado em Maio de 2007 apresentando um diagnóstico de Depressão Major Grave com ideação suicida e um défice cognitivo moderado.
21- Na data da prática dos factos o arguido não apresentava alterações psicopatológicas que o impedissem de avaliar a ilicitude dos mesmos.
22- O arguido, em tal data, apresentava um quadro de deterioração cognitiva em fase inicial que condicionava ligeiramente a capacidade de controlar os seus impulsos.
23- O arguido tem a 4ª classe de escolaridade.
24- Aos 26 anos o arguido ingressou na GNR, encontrando, actualmente, na situação de reserva.
25- O arguido é respeitado por aqueles que o conhecem.
FACTOS NÃO PROVADOS:
1- Várias vezes lhe exibiu facas, dizendo que eram para a matar.
2- Que a ofendida tivesse comprado um apartamento sito na Urbanização das Courelas.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
Para formar a sua convicção sobre a matéria de facto provada, baseou-se o tribunal na análise crítica da prova produzida.
Deve desde logo dizer-se que o arguido não prestou declarações.
Assim, foram determinantes as declarações prestadas pela ofendida, que relatou de forma credível, porque o fez de um modo muito sentido e real apenas podendo tal tipo de depoimento ser efectuado por alguém que vivenciou as experiências relatadas na acusação, o modo como o arguido a agrediu física e psiquicamente durante os anos em que foram casados, tendo concretizado as situações descritas na acusação.
O seu depoimento, no que diz respeito aos factos ocorridos em finais de Abril de 2007, foi corroborado, no que toca ás lesões sofridas pelo teor do relatório do IML de fls. 13 a 16 e 61 a 62 do apenso.
Por outro lado, as declarações da ofendida foram, igualmente, confirmadas, ainda que parcialmente, pelo depoimento do filho de ofendida e arguido, Bruno Santos Barros, que igualmente fez um depoimento ao mesmo tempo emotivo e contido e que confirmou que o pai maltratava a mãe dirigindo-lhe expressões ofensivas, sendo bruto e mal educado.
Por outro lado, também confirmou que o pai agredia a mãe fisicamente se bem que apenas tenha conseguido concretizar, datando-o, um episódio – precisamente aquele ocorrido em finais de Abril de 2007 em que socorreu a mãe quando o pai a arrastava pelos cabelos.
Tal testemunha relatou ainda que o seu pai ameaçava a sua mãe e lhe dirigia expressões injuriosas com regularidade.
É certo que foram ouvidas testemunhas de defesa que referiram que nunca assistiram a qualquer episódio de violência estando convencidos de que se tratava de um casal normal. Contudo, tal nada significa uma vez que as agressões em causa eram perpetradas dentro da casa de morada de família sendo certo que as pessoas em causa não estavam presentes para assistirem a tais episódios.
Os factos ditos em 19) resultaram do depoimento credível da ofendida tendo sido corroborados pelos depoimentos das testemunhas seu filho e pai que estiveram com ela nos dias a seguir as factos e que a têm acompanhado, tendo conhecimento dos sentimentos e modos de estar que a mesma tem experimentado.
Os factos ditos de 20 a 22 resultaram do teor do relatório de exame psiquiátrico de fls. 170 e segs.
Para os restantes factos referentes às condições de vida do arguido e suas habilitações literárias foi relevante o teor do relatório já referido, bem como o depoimento das testemunhas de defesa que conhecem o arguido há vários anos.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais foi relevante o teor do CRC de fls. 46.
No que toca aos factos dados como não provados nenhuma prova foi efectuada uma vez que nem a própria ofendida referiu que o arguido a ameaçasse com facas.
Por outro lado quer ela quer o seu filho B… referiram que quem comprou o apartamento foram os filhos do casal e não a ofendida.
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Conhecendo:
O recorrente insurge-se contra a matéria de facto apurada, alegando que houve deficiente valoração da prova produzida.
Devem ser julgados não provados os factos 3 a 7, 9, 10,14 a 18.
É insuficiente o depoimento da ofendida/assistente, pelo que deveria gerar-se a dúvida no julgador e aplicar-se o princípio in dúbio pró reo.
Que foi violado o art. 343 do CPP e o arguido prejudicado por ter usado do seu direito ao silêncio.
Falta o elemento objectivo do tipo de crime.
A pena aplicada é excessiva, assim como excessiva é a indemnização arbitrada.
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Matéria de facto:
A matéria de facto apurada (factos provados e não provados) há-de resultar da prova produzida (depoimentos, pareceres documentos) conjugada com as regras da experiência comum.
Também, se dirá que o recurso não tem como funcionalidade reexaminar a matéria de facto, e o recurso não serve para um novo julgamento.
Não há que reexaminar toda a prova produzida, mas apenas aquela que (concretizando-a) o recorrente tem como deficientemente apreciada.
O recurso sobre a matéria de facto é um remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre matéria apontada pelo recorrente e tendo por base a sua argumentação que pode levar a decisão diversa e apenas isso.
O recorrente questiona a matéria de facto, colocando em causa a prova e a apreciação da mesma, relativamente a pontos concretos (pontos 3 a 7, 9, 10, 14 a 18 dos provados e que entende deveriam ser não provados).
O fundamento apresentado pelo arguido é de que se deram como provados tais factos, apenas com base no depoimento da ofendida/assistente, o que no seu entender é manifestamente insuficiente por não haver outra prova a corroborar o depoimento
Na motivação se diz, de forma justificada (análise crítica da prova) que a decisão se baseou na conjugação dos elementos probatórios, considerados na sua globalidade, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova.
Aí se refere que ”foram determinantes as declarações prestadas pela ofendida, que relatou de forma credível, porque o fez de um modo muito sentido e real apenas podendo tal tipo de depoimento ser efectuado por alguém que vivenciou as experiências relatadas na acusação, o modo como o arguido a agrediu física e psiquicamente durante os anos em que foram casados, tendo concretizado as situações descritas na acusação” (sublinhado nosso).
Trata-se de depoimento que para o julgador se mostrou credível e coerente, o qual não foi contraditado pois o arguido declarou não desejar prestar declarações.
Face ao exposto, e conforme as regras da experiência, o julgador só poderia convencer-se nos termos em que se convenceu, indicando-se como foi formada a convicção e dando como provados os factos.
A prova é valorada tal qual é produzida em audiência, sendo a prova testemunhal perante os depoimentos orais e a imediação.
No nosso ordenamento jurídico/processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, sendo esta valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador -, art. 127°do C. P. Penal.
Face aos elementos fácticos fornecidos pela ofendida (e em pequenos pontos circunstanciais corroborados por depoimentos de testemunhas), apenas se podia concluir pela autoria daqueles factos pelo arguido/recorrente.
E, não se trata de apreciação arbitrária, antes tendo como pressupostos valorativos os critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica.
O princípio da livre apreciação da prova está intimamente ligado à obrigatoriedade de motivação ou fundamentação fáctica das sentenças criminais, com consagração no art. 374°/2 do Código de Processo Penal.
E não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte do julgador mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções baseadas na correcção de raciocino mediante a utilização das regras de experiência.
A atribuição de credibilidade ou da não credibilidade a uma fonte de prova por declarações assenta numa opção motivável do julgador na base da sua imediação e oralidade que o tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum. O juiz é livre de formar a sua convicção no depoimento de um só declarante em desfavor de testemunhos contrários, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 207. E in casu não houve testemunhos contrários.
No mesmo sentido, recurso desta Relação nº 3127/99 de 2-2-2000, no qual se refere que “as declarações da ofendida, quando credíveis e inferidas de todos os outros elementos de prova, são suficientes para, segundo as regras da experiência, dar como provados os factos”.
Refere Figueiredo Dias que só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada em decisão colegial deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não afecte o princípio da imediação.
Observe-se que a decisão da primeira instância será sempre o resultado duma «convicção pessoal» nela desempenhando papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionais não explicáveis -, v. g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova -, pelo que o tribunal de recurso ao apreciar a prova por declarações deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.
Paulo Saragoça da Matta, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 253, refere que se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.
Como se refere no recurso desta Rel. nº 4172/05, de 15-03-2006, “Para respeitar os princípios da oralidade e da imediação, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das soluções possíveis segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso”.
Como se salienta no Ac. da rel. de Lx. de 12-12-2006, in col. jurisp. tomo V, pág. 136, “o local ideal para apreciar criticamente as provas é a audiência de discussão e julgamento, em que os julgadores dispõem de melhores condições para as apreciar. A conclusão que se impõe é que, perante o texto da decisão recorrida, nada ressalta que indique apreciação notoriamente errada”.
Na parte em que o recorrente discorda da convicção do tribunal este fundamentou-se em prova produzida, depoimento da ofendida conforme referido, justificando a sua convicção de modo coerente e conforme às regras da experiência.
O que o recorrente pretende é que o tribunal faça “tábua rasa” das declarações da assistente e que julgue de acordo com as suas próprias convicções, o que não é viável pois que o acto de decisão pertence ao tribunal que aprecia as provas segundo as regras de experiência e a sua livre convicção, como disciplina o art. 127 do CPP.
O alegado pelo recorrente não abala os fundamentos da convicção do julgador, que temos conformes às regras da experiência.
Assim que não há motivo ou fundamento para alteração da matéria de facto, devendo a mesma ter-se como fixada.
In dúbio pró reo:
Não foi afectado o princípio «in dubio pro reo», princípio este que só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas decidisse nessa situação contra o arguido. O que não acontece nos autos. O julgador teve como suficiente a prova produzida para dar como provados os factos.
O princípio in dubio pro reo é o correlato processual do princípio da presunção da inocência do arguido.
Gozando o arguido da presunção de inocência (artigo 32, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), toda e qualquer dúvida com que o tribunal fique reverterá a favor daquele.
O princípio in dubio pro reo, enunciado por Stubel no século XIX, constitui um princípio probatório segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto deve ser sempre valorada favoravelmente ao arguido.
Traduz o correspectivo do princípio da culpa em direito penal, ou "a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como axiológíco-normatívo da pena" - Vital Moreira e Gomes Canotilho in Constituição da República Portuguesa, anotada.
"Não adquirindo o tribunal a "certeza" (a convicção positiva ou negativa da verdade prática) sobre os factos (...), a decisão tem de ser, por virtude do princípio in dubio pro reo, a da absolvição. Neste sentido não é o princípio in dubio pro reo uma regra de ónus da prova, mas justamente o correlato processual da exclusão desse ónus" - vd. Castanheira Neves in processo criminal, 1968, 55/60.
O princípio in dubio pro reo só é desrespeitado quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido - Ac. do mesmo Supremo de 18/3/98 in Proc 1543/97.
Afigura-se-nos que ressalta, de forma límpida, do texto da sentença ter o Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obtido convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação. Na sentença recorrida o julgador o diz expressamente ao analisar criticamente os depoimentos.
O que, diferentemente se pretende é que o tribunal deveria ter valorado as provas à maneira do recorrente, substituindo-se ele-recorrente ao julgador, mas tal incumbência é apenas, deste - art. 127° CPP.
Violação do art. 343 do CPP:
Nos termos deste preceito, o arguido após ser informado pode optar por não prestar declarações, “sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo”.
O arguido optou pelo seu direito ao silêncio.
Foi eventualmente estratégia de defesa, da qual o arguido não pode pretender sair beneficiado (não pode é ser prejudicado).
Como já se referiu, as declarações da assistente não foram contraditadas e poderiam sê-lo, eventualmente, no caso de o arguido ter optado por prestar declarações.
Se da estratégia da defesa resultou prejuízo para o arguido, tal não se deve a violação de qualquer norma legal por parte do tribunal que se limitou a valorizar a prova produzida que teve como convincente.
Como já referimos em outros acórdãos, sendo o silêncio do arguido um direito que lhe assiste, sem que isso o possa prejudicar, não pode o mesmo esperar um benefício resultante do exercício desse direito ao silêncio.
Assim, não se pode concluir, como pretende o recorrente, que a matéria de facto foi fixada sem prova ou com prova insuficiente da qual devesse resultar a dúvida em benefício do arguido.
Não foi, pois, violado o preceito legal como invoca o recorrente.
Qualificação jurídica dos factos:
Entende o recorrente que os factos provados não preenchem os elementos típicos do crime pelo qual foi condenado. Entende que falta o elemento objectivo do tipo.
Mas, o art. 152 do CP na redacção anterior à lei 59/07 não integrava no tipo o conceito de reiteração (de modo reiterado ou reiteração da respectiva conduta).
Assim como a actual redacção dada por esta lei 59/07 não exclui a violência exercida de forma não reiterada. O preceito refere, “de modo reiterado ou não”.
O preceito não demanda a prática habitual dos actos ou a repetitividade das condutas, o normativo prevê tanto situações repetitivas ou plurimas como situações de natureza una.
O Ac. do STJ de 17-10-1996, in CJ STJ, tomo 3, pág. 170 refere que “o art. 152 do CP não exige, para verificação do crime nele previsto, uma conduta plúrima e repetitiva dos actos de crueldade”.
E o Ac. do STJ de 14-11-1997 CJSTJ, tomo 3, pág. 235, refere “só as ofensas, ainda que praticadas por uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente, é que cabem na previsão do art. 152 do CP”.
No mesmo sentido os Acs. desta Relação citados pela Ex.mª PGA, in www.dgsi.pt:
Rec. 3827/2002 : "Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal" (sublinhado nosso).
Rec. de 27-06-2007 proc. 256/05.2GCAVR.C1: "I- No tipo do ilícito previsto no art, 152 n.º 2, do CP se ubicam uma pluralidade de bens jurídicos como sejam as ameaças, as coacções, as agressões, as injúrias .II- Trata-se de um crime de maus tratos físicos ou psíquicos, o que afasta as meras ofensas à integridade física. Necessário se torna, pois, que se reitere o comportamento, em determinado período de tempo, admitindo-se que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças do acto de molestar o cônjuge ou equiparado. III- Tal crime basta-se com a consolidação no estado vivencial da vitima de um estudo de compressão na sua liberdade pessoal e de um apoucamento da dignidade que a um qualquer ser humano é devida " (sublinhado nosso).
Assim que a factualidade provada nomeadamente nos pontos 1 a 10 dos provados preenche o elemento objectivo do crime, sendo que esses mesmos factos também encerram a repetição de condutas, ou seja, o modo reiterado.
Medida da pena:
Tem o arguido como excessiva a pena que lhe foi aplicada, entendendo que devia ser aplicada a pena mínima.
Na medida da pena foram ponderados os critérios do art. 71 do Cód. Penal, sempre observando as finalidades que a pena deve ter, como preceitua o art. 40 do mesmo diploma legal.
Nos termos do art. 71° n° 1 e 40° n° 1 e 2 a determinação concreta da medida da pena é, realizada em função da culpa do agente, das necessidades de prevenção geral e de prevenção especial.
No que se refere à prevenção geral, haverá que dizer que esta radica no significado que a "gravidade do facto" assume perante a comunidade, isto é, importa aferir do significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade e satisfazer as exigências de protecção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito (cfr. ANABELA RODRIGUES, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra, 1995, págs. 371 e 374) ou, por outra forma, a consideração da prevenção geral procura dar "satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em conta de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos" (Ac. STJ de 4-7-1996, CJSTJ, II, p. 225).
Atentos os factores relevantes para avaliar da medida da pena da culpa descritos, exemplificadamente, no art. 71 n° 2 do C. P., os mesmos foram considerados na sentença.
- O grau de ilicitude dos factos (o arguido tem vindo a agredir física e psiquicamente a ofendida ao longo de vários anos);
- O dolo directo (se bem que os factos ocorriam muitas vezes depois de ambos travarem discussões);
- O arguido não tem antecedentes criminais;
- As condições pessoais da vida do arguido (é respeitado por aqueles que o conhecem que o consideram trabalhador;
Acrescentaríamos nós, o facto provado de que o arguido fez carreira profissional como agente da autoridade, GNR encontrando-se na situação de reserva. Situação que lhe impunha um especial dever de cuidado, até porque no exercício das suas funções podia ser chamado a actuar em situações semelhantes.
Como se verifica, no tocante a circunstâncias atenuantes, nenhuma de relevo se provou, pelo que inexistem factos justificativos para aplicação ao arguido da pena mínima.
Tendo em conta estes considerandos, importa referir que as exigências de prevenção neste tipo de situações demandam necessidade de punição.
Há que ter em conta as finalidades da prevenção, quer geral, quer especial, incentivar nos cidadãos a convicção que comportamentos deste jaez são punidos, assim como há que dissuadir o arguido para que não volte a prevaricar.
Assim que tendo em conta estes factores (a culpa e a prevenção como determinam os arts. 40 e 71 do CP), que constituem os parâmetros que importa ter em apreço na determinação da medida da pena, conjugados com a moldura penal (prisão de 1 a 5 anos), temos como ajustada e em nada exagerada, a pena aplicada, de 18 meses de prisão.
Mantendo-se a pena de substituição, suspensão da execução da pena.
Montante da indemnização:
Tem o recorrente como exagerada a indemnização de 3.000,00€ arbitrada.
De acordo com o art. 129 do CP, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
O que significa que têm de ser chamados à colação os arts. 483, 496 e 566 do C. Civil.
No caso em apreço apenas estão em causa danos não patrimoniais que envolvem, quer os chamados danos morais – ofensas à honra e à dignidade, humilhações, vexames e desgostos de ordem afectiva – quer os sofrimentos físicos – dores corporais e padecimentos (cfr. A. Varela in RLJ 123, pág. 253, e “Das Obrigações em Geral”, 7ª ed. , vol. I, pág. 595 e segs.).
Face aos factos provados é evidente que os danos não patrimoniais peticionados são merecedores da tutela do direito, art. 496 nº 1 do Cód. Civil, sendo que o nº 3 aponta para que a indemnização nesta sede seja fixada equitativamente pelo Tribunal.
A ofendida sentiu dores, vivia aterrorizada com as ameaças de que era vítima e passou a ser pessoa triste, desconfiada e amedrontada. Sofrimento que suportou ao longo de anos.
Nestes termos, verifica-se que a indemnização de 3.000,00€ não pode considerar-se exagerada, já que se mostra justa e equitativamente quantificada.
Pelo que se mantém.
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Face ao exposto, temos como improcedentes todas as conclusões do recurso e, consequentemente a improcedência deste
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Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em:

1- Julgar não provido o recurso do arguido R...e, em consequentemente, mantém-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 Ucs.

Coimbra,
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