Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
447/2000.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 06/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRA DA FOZ – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 494º, AL.I); 497º, Nº 1, E 675º DO CPC; BASE XXXVII DA LEI Nº 2127, DE 3/08/1965
Sumário: I – O caso julgado material, enquanto efeito de um pronunciamento judicial que se projecta para além do processo concreto em que se forma, traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal, em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário.

II – A projecção do caso julgado vai, porém, mais longe que a evitação de uma subsequente decisão conflituante, indo ao ponto de, ocorrendo novo “caso julgado” contraditório, retirar a este último, fazendo subsistir o primitivo pronunciamento, a natureza de caso julgado – artº 675º CPC.

III – É jurisprudência uniforme que a indemnização por acidente de trabalho e a obtida com recurso à imputação delitual na jurisdição comum, ambas assentes no mesmo evento infortunístico, não se cumulam antes se completam.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


I – A Causa


1. A... e B... (AA. e neste recurso Apeladas) intentaram no Tribunal Judicial da Figueira da Foz a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário, demandando C... e D... (RR. e aqui Apelantes), formulando quanto a este e esta o seguinte pedido de condenação:

“[…]
[D]everá julgar-se procedente a acção, condenando-se os RR., solidariamente, a pagarem:
a) à A. A... a indemnização de 13.179.472$00,
b) à A. B... a indemnização de 9.410.000$00,
acrescendo a ambas as indemnizações juros de mora a contar da citação (artigo 805º, nº 3 do Código Civil) e juros compulsórios nos termos do nº4 do artigo 829º-A do mesmo Diploma.
[…]”
[transcrição de fls. 9 e vº]


Formularam as AA. estes pedidos, respectivamente, enquanto viúva e filha de E..., falecido no dia 24/11/1997, na sequência de um acidente de trabalho ocorrido nas instalações da D..., empresa para a qual trabalhava naquela ocasião – embora por intermédio de uma outra empresa, a F... –, estando em causa a efectivação da responsabilidade civil dos RR. na produção de tal acidente, demandando-os as AA.[1] nos termos da Base XXXVII, nº 1 da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965 (doravante referida como Lei 2127) [2] , respeitando o montante indemnizatório peticionado a danos de natureza patrimonial e não patrimonial.

Contestaram os RR., impugnando as respectivas responsabilidades na produção do acidente, invocando previamente, porém, a excepção de litispendência, relativamente ao processo especial de acidente de trabalho referente ao mesmo evento, processo que, intentado antes deste pelas aqui AA. no Tribunal de Trabalho da Figueira da Foz, pendia, então, à data da propositura da presente acção, na jurisdição laboral.

Tendo o processo alcançado a fase de saneamento, foi proferido o Despacho saneador de fls. 188/194, no qual foi ordenada a suspensão da instância, nos termos dos artigos 276º, nº 1, alínea c) e 279º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC), “[…] até ao trânsito em julgado da decisão final no processo nº 300/97 do Tribunal de Trabalho da Figueira da Foz”. Posteriormente, verificada esta condição, com o trânsito em julgado, através do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça certificado a fls. 260/273, da Sentença do Tribunal de Trabalho da Figueira da Foz certificada a fls. 200/226 [3] , prosseguiram estes autos, com a fixação dos factos então assentes e a elaboração, relativamente à matéria controvertida, da base instrutória (fls. 274/283).

Em julgamento – cuja audiência está documentada a fls. 583/586 – acordaram as partes quanto à fixação da matéria de facto, por referência à base instrutória.

1.1. Decidindo a acção, foi proferida, então, a Sentença de fls 602/611 – a Decisão objecto do presente recurso –, contendo a mesma o seguinte pronunciamento decisório:

“[…]
[J]ulgo parcialmente provada e procedente a presente acção ordinária emergente de acidente de trabalho e condeno solidariamente os RR. C... e D..., SA, a pagar às AA. a indemnização global de quarenta e um mil euros (€41.000,00) por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora às sucessivas taxas legais desde a citação até efectivo embolso.
Absolvo os RR. da instância quanto aos pedidos por danos não patrimoniais.
Absolvo os RR. do pedido por despesas de funeral.
[…]
Dê conhecimento à Companhia de seguros G...., dado o disposto na Base XXXVII da Lei 2127.
[…]”
[transcrição de fls. 611]


Assentou este pronunciamento nos seguintes trechos da fundamentação (transcrevem-se aqui aqueles que contêm o resumo dessa fundamentação):

“[…]
Constata-se […] que se verificam as três identidades para a existência de caso julgado quanto à R. D... perante os pedidos de danos não patrimoniais, pelo que esta terá de ser absolvida da instância quanto a essa parte da questão sub judice – artigo 288º, nº 1, alínea e) do CPC.
[…]
Como as AA. não provaram ter movido execução sem êxito contra a D... para serem ressarcidas dos danos não patrimoniais, verifica-se uma excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, na medida em que a parte final do nº 1 do artº 519º do Código Civil não impede que tal compensação venha a ser pedida ao Réu C..., mas isso só acontecerá se houver insolvência ou risco de insolvência da D..., ou se, por outra causa atendível, as AA. tiverem dificuldade em obter dessa empresa a dita compensação. Por ora, estão inibidas de accionar o R. C... para esse efeito, tendo este de ser absolvido da instância no que respeita aos pedidos por danos não patrimoniais (arts. 493º, nº 2, 494º, 1ª parte e 288º, nº 1, e), do Cód. Proc. Civil).
Tendo em vista os danos patrimoniais, aqui já não se coloca a questão do caso julgado, porque as lesadas dispõem dos dois tipos de acção – a laboral e a comum – para obterem o ressarcimento desses danos nos casos em que o acidente de trabalho é da responsabilidade de terceiro ou de companheiro da vítima, com fundamento na Base XXXVII da lei nº 2.127 de 3/8/65.
[…]
Mas tais indemnizações não se cumulam, antes se completam, pois o recebimento de duas indemnizações pelos mesmos danos representaria um enriquecimento sem causa.
Obtendo ganho de causa em ambas as acções, as AA. terão de optar pela indemnização por danos patrimoniais que mais lhes convenha, não podendo somá-las.
[…]”
[transcrição de fls. 608 e vº]


Considerando os RR. investidos na obrigação de indemnizar, por verificação da previsão do artigo 483º do Código Civil (CC), fixou a Sentença o dano patrimonial em causa, correspondente à privação do contributo do sinistrado, através do seu salário, para as AA., nos €41.000,00 constantes da condenação.

1.2. Inconformadas, apelaram a fls. 616 ambas as RR. (Despacho de admissão a fls. 619), formulando a rematar as alegações de fls. 623 [4]
a seguinte conclusão:

“[…]
Face a duas decisões cujo fundamento de facto é o mesmo, cumpre-se a que transitou em julgado em primeiro lugar.
Norma violada: artigo 675º, nº 1 do [CPC].
[…]”
[transcrição de fls. 623 vº]


As AA. não contra-alegaram.

III – Fundamentação


2. Delimitado o objecto do recurso por referência à conclusão antes transcrita, com correspondência na norma indicada como violada, constata-se que a apelação se cinge à questão do relacionamento, em termos de produção de caso julgado, entre a Decisão proferida neste processo – que constitui a Sentença aqui apelada – e a outra decisão, cronologicamente anterior, proferida na jurisdição laboral: a Sentença certificada a fls. 200/226, cujo trânsito em julgado ocorreu em sede de recurso que veio a cobrir o seu pronunciamento decisório original. Tudo isto no pressuposto – e traduz-se este num facto indiscutível – de o evento infortunístico gerador da imputação delitual em causa neste processo (o acidente ocorrido em 24/11/1997, que vitimou o marido e pai das AA.) ser o mesmo que esteve em causa na jurisdição laboral, embora nesta, sublinha-se desde já, tenha tal evento sido tratado enquanto elemento gerador, directo ou por conexão [5] , das prestações emergentes da Lei 2127.

Embora a questão do caso julgado, se ela viesse a ser decidida por esta Relação nos termos propugnadas pelos Apelantes, constituísse obstáculo à produção de quaisquer efeitos pelos pronunciamentos decisórios constantes da Sentença apelada, ocorre aqui sublinhar que os Apelantes não discutem neste recurso qualquer outra questão que extravase a da possível contradição de casos julgados, designadamente aquelas que se traduziram – e são as que interessam aos Apelantes – na fixação do concreto montante indemnizatório respeitante aos danos patrimoniais.

2.1. Não estando impugnada neste recurso a matéria de facto constante da Sentença apelada, cuja fixação ocorreu, aliás, por acordo das partes, cumpre rememorar aqui essa matéria, nos termos em que a mesma foi elencada nessa Decisão:

“[…]
A) Por contrato escrito a termo incerto, o último celebrado a 1 de Janeiro de 1997, E...., foi admitido ao serviço da “ F...., Sociedade de Limpezas Industriais, Lda.” para exercer as funções de limpeza, incluindo-se ainda no objecto do contrato de trabalho, desempenhar qualquer outro serviço que “pontualmente a entidade patronal tenha necessidade de ver executado para o bom desempenho do contrato de prestação de serviços celebrado com a D..., S.A., como também eventuais substituições imediatas por razões de urgência ou transitórias”, exercendo as suas funções nas instalações da “ D..., SA”, sob a autoridade, direcção e fiscalização da “ F....”, mediante retribuição.
B) Também por acordo escrito, haviam sido confiados pela “ D...” à “ F....”, além de serviços de limpeza e outros, o desencravamento dos sistemas de processamento de rolaria, aparas e cascas.
C) No dia 24/11/97, cerca das 03H00 horas da madrugada, dentro do respectivo período de trabalho, a conduta do sistema de tratamento de cascas da secção de preparação de madeiras da D..., onde a F.... executava serviços objecto do acordo referido em B), encravou-se, devido ao mau tempo e à chuva intensa, o que fez com que a casca ficasse compacta dentro da conduta, encravando um dos circuitos.
D) Perante a ocorrência, o sistema foi totalmente parado.
E) Nesse dia 24/11/97, no interior daquela conduta, E.... foi esmagado por uma comporta mecânica, sofrendo as lesões descritas no relatório de autópsia, as quais foram a causa adequada da sua morte, a qual ocorreu às 04H19 desse mesmo dia.
F) A “ F....” e a “ D...” foram autuadas pela Inspecção Geral de Trabalho, por infracção comparticipada do artigo 5°, conjugado com os pontos 2.3 e 2.4 do seu anexo e 8° do D.L. nº 331/93, de 25 de Setembro e, bem assim, do artigo 8°, nº 4, do D.L. nº 441/91, de 14 de Novembro, tendo sido condenadas.
G) A A. A..., nascida a 01.04.1945, à data da morte de E...., era casada com este.
H) Em 25-08-97, entre a “ F....” e a “ D...” foi celebrado o acordo do qual consta além do mais que a primeira se obrigava para com a segunda:
“(...) ao desencravamento dos sistemas de processamento de rolaria, aparas e cascas”;
“a cumprir todas as obrigações que lhe são impostas como entidade patronal, nomeadamente as relativas à segurança social e acidentes de trabalho (...)”;
“a cumprir e a fazer cumprir aos seus trabalhadores as normas de higiene e segurança no trabalho definidas...” pela D... “Sempre que solicitado … disponibilizará os seus trabalhadores para, nas instalações daquele, receberem formação nestes domínios, durante o tempo considerado necessário”.
I) Nos termos daquele acordo era à “ F....” que incumbia nomear, “para efeitos de coordenação, trabalhadores como responsáveis imediatos pela execução dos serviços, conferindo-lhes os poderes necessários à direcção técnica, funcional e hierárquica dos restantes trabalhadores envolvidos (...)”.
J) As normas de segurança da “ D...” identificadas por “NS 004 Intervenção em equipamentos” exigiam, além do mais que:
- “1.1. (…) apenas o pessoal interveniente na operação esteja presente;
- 1.2. Que todas as operações específicas sejam efectuadas por pessoal especializado (...);
- 6.1, que o equipamento se encontre completamente imobilizado;
- 6.2. que a ligação eléctrica seja cortada na origem da alimentação do equipamento (Sala Técnica de Electricidade) por um profissional plenamente qualificado.
- 6.3. que o equipamento não entre em marcha depois de accionada a botoneira de arranque local e/ou de arranque à distância(…).
L) C... foi condenado, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo comum singular nº 182/2000, pela prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artº 137º, nº l, do Código Penal na pena de dez meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de dezasseis meses e, ainda, no pagamento, ao Centro Nacional de Pensões, da importância de 257.000$00, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal desde a sua notificação para o contestar o pedido de indemnização cível.
1º. Nas circunstâncias descritas em C), a energia eléctrica não foi cortada, como deveria ter sido feito, pelo R C..., ao abrigo das normas de segurança indicadas em J).
2°. Após o descrito em C), apesar de várias tentativas não foi possível descompactar a casca pelo exterior.
3º. Por essa razão, o R. C... deu ordens a E... para que fosse ajudar a desencravar o transportador no interior da conduta.
4º. O que este fez, após ter verificado que o equipamento se encontrava parado, sob vigilância e supervisão do R. C....
5º. A limpeza/desobstrução do equipamento em causa não requeria nenhuma formação ou habilitação específica especial.
6º. O que era do conhecimento da “ D...”.
7º. Na altura do desencravamento o R. C..., chefe de equipa do sector de preparação de madeiras da D..., dirigia os trabalhadores, inclusive os da “ F....”.
8º. Após terem conseguido descompactar parcialmente a casca, foi então o outro circuito ligado, pelo C..., antes que trabalhadores que estavam na conduta saíssem. Essa “ligação” correspondeu ao accionar de um botão que se destinava apenas a ligar o cortador de casca do circuito que não estava encravado. Para o circuito de transporte da casca funcionar, por sua vez, (colocando o sistema do circuito totalmente em operação), era necessário accionar outro botão, que punha em marcha o transporte de casca. Este segundo botão não foi accionado. O C..., bem como os outros trabalhadores que lidavam com a máquina desconheciam, por disso nunca se terem apercebido ou serem informados, que a simples ligação daquele cortador de casca, sem que o transportador estivesse a funcionar (permitindo a alimentação do sistema) fazia movimentar a comporta que faz a selecção no encaminhamento da casca para os circuitos. O mesmo estava convencido que só colocando o transportador em movimento a comporta se movimentava, pois em termos de funcionamento lógico da máquina só então era necessário e conveniente a mesma movimentação. Assim aquela movimentação da comporta, em reacção à ligação do circuito, não foi prevista.
9º. Fazendo movimentar a comporta que faz a selecção no encaminhamento da casca para os circuitos, a qual foi esmagar o E... que se encontrava no seu interior (parte superior), causando a sua morte.
10º. O equipamento de trabalho em causa não estava equipado com dispositivos de paragem de emergência.
11º. Nem a alimentação de energia dos accionadores se interrompeu, como devia, aquando da paragem do equipamento.
12º. O chefe de equipa ao tentar socorrer-se do sensor e do seccionador local (manual), para evitar o esmagamento do sinistrado, não conseguiu a paragem da comporta, por tal não ser possível, da forma como a máquina estava concebida, na posição em que então a comporta se movimentava.
13º. O que fez com que o R C... ao tentar socorrer-se do sensor e da botoneira local não conseguisse a paragem deste equipamento.
14º e 15º. Aquele equipamento de trabalho pertença da D..., S.A. não tinha antes sido ensaiado de forma a detectar aquela específica reacção da comporta, a qual era desconhecida por quem operava com a máquina, por isso, o chefe de equipa C... disse, depois, não compreender o que se tinha passado, pois o equipamento que tinha sido posto em movimento não deveria ter accionado a comporta.
16º. A R. D... era e é a dona do mencionado equipamento.
17º. Não foi a primeira vez que se verificou o encravamento da conduta e que se teve de parar o sistema.
18º. O R C... encontrava-se na altura do ocorrido no exercício das suas funções, cumprindo ordens e directivas da “ D...”.
19º. A A A... era e é doente diabética insulino-dependente, sofrendo também de depressão, a qual determina por vezes, o seu internamento hospitalar, bem como de falta de visão, o que, tudo, lhe dá uma incapacidade permanente e definitiva para o trabalho superior a 75%.
20º. A A. B..., à data da morte do sinistrado, vivia com este, que lhe fornecia gratuitamente a alimentação.
21º. É deficiente congénita, devido a paralisia cerebral, com consequências de enfraquecimento mental e motoras graves ao nível do lado esquerdo, sobretudo o inferior, assim como de ataxia, necessitando, por isso, de acompanhamento nas suas deslocações, que lhe dá uma incapacidade permanente definitiva de 60%.
22º, 23º, 24º, 25º. O salário anual do sinistrado era de 1.313.600$00 e que o sinistrado despendia consigo próprio 1/3 daquele rendimento, contribuindo com o restante para manutenção da restante família.
26º. O sinistrado cultivava ainda vários víveres para o consumo familiar.
28º, 29º, 30º. O que foi posto a funcionar, no momento, foi o cortador de casca do circuito a jusante do local onde a vítima se encontrava, e esta operação não provocava a entrada em funcionamento de qualquer equipamento a montante – a não ser, no caso, a comporta que vitimou o sinistrado – tanto assim que a passadeira a montante manteve-se parada e deste modo, o circuito accionado não foi aquele em que o sinistrado se encontrava.
31º. A “ D...” forneceu à “ F....”, para serem cumpridas, as suas normas de segurança subordinadas ao titulo “NS 004 – Intervenção em Equipamentos” indicadas em J), cujo ponto 6.2. impõe que a ligação eléctrica seja cortada na origem da alimentação do equipamento.
[…]”
[transcrição de fls. 604 vº 606 vº]


Além destes factos, haverá ainda que considerar, como, aliás, já sucedeu com o Tribunal a quo, o que decorre da Sentença proferida na jurisdição laboral, certificada a fls. 199/273 [6]

. Sendo que é em função desta – ou seja, do conteúdo desta que é relevante para a formação de caso julgado material – que a questão colocada pelos Apelantes pode obter esclarecimento.

É o que importa fazer no subsequente percurso argumentativo. Porém, e ainda no quadro da abordagem de questões preambulares, e embora se trate de uma asserção correctamente pressuposta por toda a tramitação deste processo bem como do que correu termos na jurisdição laboral, ocorre sublinhar que a circunstância de estar em causa um evento infortunístico ocorrido em 24/11/1997, conduz à aplicação ao mesmo, no que interessar ao seu tratamento como acidente de trabalho, da Lei 2127, sendo certo que a aplicação do Diploma que revogou esta Lei – o Decreto-Lei nº 100/97, de 13 de Setembro – só teve lugar relativamente aos acidentes de trabalho que ocorreram após a entrada em vigor do novo Diploma (artigo 41º, nº 1, alínea a) do DL 100/97), o que só ocorreu em 01/01/2000, por força do disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 382-A/99, de 22 de Setembro.

Assente tudo isto, cumpre apreciar a única questão suscitada no recurso.

2.2. O caso julgado material, enquanto efeito de um pronunciamento judicial que se projecta para além do processo concreto em que se forma, “[…] traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão [por ele coberta] por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário” [7] . Manifesta-se este efeito, desde logo, na existência de uma excepção dilatória de caso julgado (artigo 494º, alínea i) do CPC), de conhecimento oficioso (artigo 495º do CPC), sendo que este vale num processo subsequente cujo objecto seja idêntico àquele que o gerou, como excepção de caso julgado (artigos 497º, nº 1 in fine e 498, nºs 3 e 4 do CPC), obstando a que o tribunal conheça do mérito dessa segunda causa (artigo 493º, nº 2 do CPC). A projecção do caso julgado vai, porém, mais longe que a evitação, nos termos acabados de expor, de uma subsequente decisão conflituante, vai ao ponto de, ocorrendo esse novo “caso julgado” contraditório, retirar a este último, fazendo subsistir o primitivo pronunciamento, a natureza de caso julgado. É este o sentido do artigo 675º do CPC [8] ., a norma que os Apelantes consideram violada pela Decisão ora recorrida.

Os mencionados efeitos preclusivos associados ao caso julgado, refiram-se eles à ulterior discussão judicial ou à (in)eficácia de uma ulterior decisão, pressupõem a identidade do thema decidendum da subsequente acção. É aquilo a que se chama limites objectivos do caso julgado, respeitando estes “[…] à determinação do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal recebe o valor de indiscutibilidade […]” [9] .

Encerra a determinação destes limites uma das questões fulcrais de toda a problemática atinente ao caso julgado, constituindo obra de referência no tratamento dessa questão o estudo de João de Castro Mendes, “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, já mencionado anteriormente neste Acórdão [10] e que seguiremos de perto nas considerações seguintes. Interessa-nos aqui, enquanto expressão da abrangência do caso julgado anterior, por referência a um novo processo, a chamada “função limitativa da decisão judicial”, definida por Castro Mendes nos seguintes termos:

“[…]
Designamos por esta expressão, função limitativa ou excludente, a função que desempenhará a sentença se lhe for atribuído o papel de, mais do que deixar estabelecida ou acertada determinada situação, como consequência do que se averiguou quanto às questões fundamentais do processo, deixar acertado ainda que tal situação não é só consequência mas única consequência disso.
[…]” [11]


Esta ideia, cuja essência (limitativa) é a de esgotamento temático pelo pronunciamento anterior obtido fundamentalmente no quadro de uma mesma causa de pedir, deve ser articulada com o sentido dos pedidos num e noutro caso reportados a essa causa de pedir. E, a este propósito, acrescenta Castro Mendes:

“[…]
Segundo nos parece, só a interpretação da sentença pode assegurar se ela tem ou não função limitativa ou excludente; e, in dubio, deve concluir-se pela negativa.
O pedido que está na base do processo ou da sentença pode ser apresentado ou como parcial ou como integral. A alega ter emprestado 100 contos a R; desses 100 contos pode pedir a condenação de R apenas em 40, sem renunciar aos 60 restantes. De jure condito […] está no seu direito, até em atenção ao artigo 763º, nº 2 proémio do [CC][12] . Formula então um pedido parcial. A pode pedir também a condenação de R a pagar os 100 contos, ou então a pagar apenas parte, mas em termos de com isso significar a renúncia ao excedente, ou o reconhecimento da inexistência de direito ao excedente. Formula então um pedido integral.
Se formular um pedido parcial, está no seu direito; e se a limitação disser respeito a uma parte individualizada, a sentença sobre a parte em nada afecta o seu direito ao restante.
[…][13]
Tendo-se o tribunal pronunciado sobre uma das consequências de certo facto […] pode o autor formular pedidos adicionais, referentes a outras consequências.
[…]
Assim, se A pede a condenação do réu a pagar 100 contos como indemnização pelos danos causados por certo acto, e ganhar, não fica, em princípio – salvo se o seu pedido for de interpretar-se como integral – impedido de no futuro vir sustentar que o seu direito pelos mesmos danos – quanto à possibilidade de invocar outros danos não se levantam quaisquer dúvidas – ascendia a 200 e que por isso quer a condenação do réu em mais 100. São outros 100 contos, além daqueles já individualizados pela res judicata.
[…]” [14]


2.2.1. Ora, estas considerações contribuem decisivamente – e revertemos à situação concreta – para dilucidar o relacionamento entre os dois casos julgados aqui em causa. Do primeiro, ou seja da Sentença que o forma (a Sentença proferida na jurisdição laboral), cumpre reter a seguinte passagem:

“[…]
[I]ndemnização devida nos termos da «lei geral» (para utilizar a expressão da Base XXXVII nº 1):
Já acima se disse que, nesta sede, a responsável é a R. D....
As AA. quanto a indemnizações que não sejam específicas da Lei dos Acidentes de Trabalho, pediram a condenação das RR. a pagar, na proporção de ½ para cada, a quantia de 8.000.000$00 a título de reparação dos danos não patrimoniais, incluindo o do direito à vida […].
Não pediram qualquer indemnização por danos patrimoniais.
Caí que os diferentes direitos de reparação, em relação à Seguradora e à D... sejam «cumuláveis», não cobrindo os mesmos danos concretos – e não se colocando o problema, aqui, por via da mais ampla responsabilidade da D..., de «desoneração» da Seguradora […] das prestações emergentes da Lei nº 2127 (a D..., como se viu, não responde ao abrigo desta Lei).
[…]”
[transcrição de fls. 224]


Compaginando isto com o teor da Sentença apelada, constatamos que o domínio de sobreposição das pretensões indemnizatórias nas duas acções, o dos danos não patrimoniais, não foi atendido neste processo, proferindo o Tribunal da Figueira da Foz, nessa parte, uma decisão de absolvição da instância, fundada precisamente na relevância do caso julgado anterior.

A questão, na perspectiva em que os apelantes a colocam, reduz-se, assim, aos danos patrimoniais, sendo que estes – para sermos rigorosos, o aspecto destes coberto pelo caso julgado anterior, ou seja, as prestações próprias da Lei 2127 – não tiveram como destinatários os ora Apelantes (só a Seguradora, aí demandada, foi condenada nessas prestações), faltando, desde logo, o pressuposto “entre as mesmas pessoas” (“exceptio rei judicatae obstat quotiens inter easdem personas eadem quaestio revocatur”, na expressão clássica de Ulpiano no Digesto), que, em princípio, caracteriza subjectivamente o caso julgado [15] .. Seja como for, e mantendo a nossa discussão em torno dos limites objectivos do caso julgado, constata-se a natureza caracteristicamente compaginável da indemnização fixada no foro laboral e da fixada nesta jurisdição comum. É este o sentido da Base XXXVII da Lei 2127:

1. Quando o acidente for causado por companheiros da vítima ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral.
2. Se a vítima do acidente receber de companheiros ou de terceiros indemnização superior à devida pela entidade patronal ou seguradora, esta considerar-se-á desonerada da respectiva obrigação e terá direito a ser reembolsada pela vítima das quantias que tiver pago ou despendido.
3. Se a indemnização arbitrada à vítima ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante.
4. A entidade patronal ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente terá o direito de regresso contra os responsáveis referidos no seu nº 1, se a vítima não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano, a contar da data do acidente. Também à entidade patronal ou seguradora assiste o direito de intervir como parte principal no processo em que a vítima exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que alude esta base. [16]


Daí que a jurisprudência afirme – e afirma-o invariavelmente – que a indemnização por acidente de trabalho e a obtida com recurso à imputação delitual na jurisdição comum, ambas assentes no mesmo evento infortunístico, se não cumulam antes se completam [17] , pressupondo, assim, o carácter intrinsecamente compaginável de ambos os pronunciamentos.

Note-se que o recurso se restringe à questão da suposta existência de dois casos julgados contraditórios, pugnando os Apelantes, tão-só, pela aplicação do disposto no nº 1 do artigo 675º do CPC, ou seja, pelo cumprimento em exclusivo da decisão proferida na jurisdição laboral. De todo o percurso argumentativo deste Acórdão flúi que o pressuposto da aplicação daquele nº 1, a existência de “duas decisões contraditórias”, se não verifica na presente situação: os pressupostos das duas decisões não são coincidentes; ambas são compagináveis no seu sentido decisório. Ora, o caso julgado, enquanto expressão de um valor que também pode ser caracterizado como enunciativo, exclui – só exclui – situações contraditórias ou incompatíveis com a definida na anterior decisão transitada [18] .
. Não é esse seguramente o caso em que indemnizações assentes em pressupostos diversos, são compatibilizadas por uma norma com as características da Base XXXVII da Lei 2127.

2.3. Verificada tal compatibilidade de pronunciamentos decisórios, cai pela base o pressuposto argumentativo dos Apelantes: ofensa de caso julgado anterior. Resta-nos, pois, confirmar a excelente Sentença apelada.

III – Decisão


3. Assim, tudo visto, na total improcedência da apelação, decide-se confirmar integralmente a Sentença recorrida.

Custas pelos Apelantes.

----------------------------
[1] No articulado inicial deduziram as AA. incidente de intervenção principal provocada de H...., também ele filho do Sinistrado, alegando a existência por parte dele de um interesse litisconsorcial idêntico ao delas, no que respeita aos danos não patrimoniais. Admitida a intervenção deste (Despacho de fls. 155) e tendo-se procedido à sua citação, não teve ele qualquer intervenção no processo.
[2] “Quando o acidente for causado por companheiros da vítima ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral”
[3] Nesta acção, na qual as aqui AA. demandavam a Companhia de Seguros G...., a firma F.... e a aqui R. D..., foi proferida a seguinte Decisão:

“[…]
a) [C]ondenar a R. Companhia de Seguros G...., a pagar à A. A..., uma pensão anual e vitalícia no montante de 474.784$00, a pagar em duodécimos, no domicílio daquela, acrescida de 1/12 a título de subsídio de Natal, a pagar em Dezembro de cada ano, a partir de 25/11/1997, dia seguinte ao da morte do sinistrado dos autos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada uma das prestações em causa e sobre cada um dos montantes até integral pagamento.
b) [C]ondenar a mesma R. Companhia de Seguros G..., a pagar às AA., a título de despesas de funeral, 109.472$00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da tentativa de conciliação, em 01/02/1999, até integral pagamento.
c) [C]ondenar a R. D..., SA, a pagar às AA. A... e B..., metade para cada uma, a quantia total de 6.500000$00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação, em 09/06/1999, até integral pagamento.
d) [A]bsolver a R. F..., dos pedidos.
[…]”
[transcrição de fls. 225/226]

[4] Destas apenas consta:

“[…]
O objecto do presente recurso é tão-só o de saber se há ou não caso julgado contraditório.
No Tribunal de Trabalho a Companhia de Seguros G...., foi condenada a pagar às AA. a indemnização, com base no acidente de trabalho em apreço, dos danos sofridos.
Na presente acção e com o mesmo fundamento, vêm os ora Apelantes novamente a ser condenados em indemnização em favor das mesmas AA..
Ora, salvo o devido respeito, verifica-se um caso julgado contraditório.
E, nos termos do artigo 675º, nº 1 do [CPC], cumprir-se-á a sentença que transitou em julgado em primeiro lugar, i. e., a sentença do tribunal de trabalho.
[…]”
[transcrição de fls. 623]

[5] A expressão “por conexão” refere-se à condenação respeitante a danos não patrimoniais, proferida na jurisdição laboral. Esta, com efeito, como resulta do trecho da Sentença do Tribunal de Trabalho constante de fls. 221, ocorreu por extensão da competência deste Tribunal a uma relação conexa com a laboral, nos termos do artigo 64º, alínea o) da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro (corresponde presentemente à alínea o) do artigo 85º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro).
[6] Pois, e citamos José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “[a] aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas de normas processuais, sejam de normas de direito material. Na […] decisão sobre matéria de facto (do tribunal colectivo ou do tribunal singular que presidiu à audiência final), foram dados como provados os factos cuja verificação estava sujeita à livre apreciação do julgador […]. Agora, na sentença, o juiz deve considerar, além desses, os factos cuja prova resulte da lei, isto é, da assunção de um meio de prova com força probatória pleníssima, plena ou bastante […], independentemente de terem sido ou não dados como assentes na fase de condensação […]” (Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, Coimbra, 2001, p. 643).
[7] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, p. 567. Castro Mendes fala do caso julgado material como “[o] verdadeiro e próprio, gerado ex pronuntiatione judicis, e que tem como ideia central a de indiscutibilidade judicial” (Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa s. d., mas publicado em 1967, p. 18).
[8] Como refere João de Castro Mendes, “[n]ão forma caso julgado a sentença que ofende caso julgado anterior: não pode haver no mesmo ordenamento jurídico indiscutibilidades contraditórias, Isso mesmo dizia o nosso direito antigo («he per Direito a sentença nenhuma, quando… he contra outra sentença já dada»)” (Limites Objectivos…, cit., p. 31; cfr. José Lebre de Freitas e outros, Código…, cit., p. 693)
[9] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…, cit., p. 578.
[10] Cfr. notas 7 e 8.
[11] Limites Objectivos…, cit., p. 264.
[12]“O credor tem […] a faculdade de exigir uma parte da prestação […]”.
[13] Limites Objectivos…, cit., p. 269.
[14] Limites Objectivos…, cit., p. 272.
[15] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…, cit., p. 588
[16] Cfr., relativamente à Base XXXVII, Vítor Ribeiro, Acidentes de Trabalho, Reflexões e Notas Práticas, Lisboa, 1984, pp. 225/240; cfr., relativamente ao regime substancialmente idêntico da lei actual (artigo 31º, da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro), Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., Coimbra, 2006, p. 150.
[17] Cfr., por exemplo, e seguindo uma ordem cronológica: Acórdão do STJ de 30/11/1993 (Teixeira do Carmo), na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, tomo III/1993, pp. 250/253; Acórdão da Relação de Coimbra de 10/02/2005 (Serra Leitão), na Colectânea de Jurisprudência, tomo I/2005, pp. 61/63; Acórdão do STJ de 12/09/2006 (Afonso Correia), na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, tomo III/2006, pp. 48/53.
[18] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…, cit., p. 579