Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1552/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VITOR
Descritores: SEGURO DE CRÉDITOS
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 10/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 429.º DO CÓDIGO COMERCIAL; DECRETO-LEI N.º 183/88 DE 24/05;
Sumário: 1) O seguro de crédito entre nós regulado pelo DL 183/88 de 24 de Maio, visa proteger o credor num contrato do não cumprimento por parte do devedor.
2) Decorrido o período de mora do devedor – prazo de carência – indicado nas Condições Particulares da Apólice e feito a prova do não pagamento, considera-se verificado o risco coberto pela apólice.

3) Ao seguro aplicam-se também os princípios gerais de direito com relevo especial para o da boa-fé, quer nos preliminares da contratação quer na respectiva vigência.

4) Tratando-se de um contrato aleatório em que a entidade seguradora assume um risco, terá este de ser ponderado por aquela; conta para tal fim com a sua experiência e com os elementos que lhe deve fornecer o proponente através da "declaração de risco".

5) As falsas declarações reticências ou omissões que se verifiquem naquela "declaração" são susceptíveis de conduzir à anulação do seguro, de harmonia com o disposto no artigo 429º do Código Comercial.

6) Todavia não é qualquer declaração inexacta ou reticente que poderá influir sobre a existência ou condições do contrato; torna-se ainda necessário apurar se no caso concreto, a verificarem-se a seguradora não aceitaria contratar, ou o faria apenas com agravamento do prémio aplicável.

7) A prova daquele circunstancialismo constitui facto impeditivo a provar pela Ré seguradora, sem o que o seguro permanecerá válido.

Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.
A... sociedade comercial com sede na Rua Paulo VI nº 79 em Leiria, veio intentar contra a B..., sucursal Portuguesa sita na Av. Duque de Ávila nº 185 6º B, 1050-082 Lisboa, a presente acção com processo ordinário, tendo pedido que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia total de € 337.385,28, sendo € 323.524,89 relativos à indemnização devida e a quantia de € 14.359,18 referente a juros de mora vencidos, calculados à taxa de juro supletiva de 12% ao ano, calculados desde 22 de Novembro de 2001 até à data de entrada desta acção, bem como a pagar-lhe os juros vincendos, até integral e efectivo pagamento.
Alega para tanto e em resumo, que para se proteger do não cumprimento por parte dos seus clientes devedores, celebrou com a Ré um contrato de seguro de crédito, relativo ao mercado interno, em 4 de Fevereiro de 2000, titulado pela apólice nº 61583, pelo qual esta lhe garantiu, na percentagem estabelecida nas condições particulares, a indemnização pelos prejuízos definitivos sofridos em consequência da falta de pagamento dos seus créditos seguros e especificados no mesmo.
A Autora prestou serviços de grua e outros equipamentos à C..., titulados por facturas, daí tendo resultado um saldo credor de € 404.406,11. A Autora diligenciou, sem sucesso, pela obtenção do pagamento deste valor. Em Julho de 2000 tomou conhecimento do encerramento do negócio e das instalações da C....
Os valores deste crédito estão segurados pelo contrato antes mencionado, pelo que comunicou à Ré o valor do crédito, através de aviso de ameaça de sinistro.
A Ré não procedeu no entanto à liquidação do pagamento da indemnização devida à Autora, apesar de interpelada para o efeito.
Contestando, a Ré sustenta que a pretensão da Autora não pode proceder, dado que se verificam causas de exclusão da garantia do seguro por falta de cumprimento do contrato por parte da Autora: a mesma prestou falsas informações na data de celebração do contrato e após a celebração do mesmo; não fez comunicação sobre pagamentos efectuados pelo cliente, bem como não comunicou reforma de letras; incumpriu a cláusula contratual que impunha a duração máxima de pagamento dos créditos a noventa dias; transferências registadas no extracto de conta do cliente, superando a facturação compreendida no período da apólice; falta de pagamento de prémio de seguro vencido em 1 de Agosto de 2000.
Impugna os factos alegados pela Autora.
Deduz reconvenção, sustentando, por um lado, a nulidade parcial do contrato, por forma a excluir do mesmo a garantia prestada em relação ao cliente C..., no montante de € 448.613,00 e, por outro, a falta de pagamento de prémio.
No primeiro caso, afirma a existência de má-fé da Autora, traduzida na omissão culposa do dever de informar e dar a conhecer elementos essenciais à decisão de contratar em relação ao referido cliente, ou pelo menos, à decisão de contratar nos termos em que o fez, o que confere à Ré o direito ao prémio correspondente ao montante do crédito seguro.
No segundo caso, afirma a falta de pagamento do prémio referente à anuidade de 2001.
Conclui defendendo que a acção deve ser julgada improcedente, com a consequente absolvição do pedido.
Em reconvenção, pede que se declare a nulidade parcial do contrato de seguro e a consequente redução do mesmo, mantendo-se a sua validade até à data da rescisão relativamente às restantes garantias por ele cobertas.
Ainda em reconvenção, pede que a Autora seja condenada no pagamento da quantia de € 14.140,92 a título de prémio de seguro em dívida, acrescida de juros de mora vencidos no montante de € 1.200,00 e nos vincendos até efectivo e integral pagamento.
A Autora veio responder à contestação, refutando a alegada má-fé negocial e afirmando que sempre prestou as informações e forneceu os elementos contratualmente impostos, bem como os suplementares, exigidos pela Ré, dentro dos prazos solicitados e acordados com esta.
Na data de celebração do contrato, a Ré teve conhecimento e analisou a relação comercial da Autora com a C....
Refuta a existência de saldo credor nos termos pretendidos pela Ré e afirma a improcedência dos fundamentos de oposição por esta suscitadas.
Defende a inexistência de fundamento para a pretendida nulidade parcial do contrato.
Refuta que a Ré tenha rescindido o contrato de seguro, afirmando que foi a própria Autora quem o denunciou.
Conclui reiterando os fundamentos da pretensão que deduz e defendendo a improcedência da contestação e do pedido reconvencional.
No saneador conheceu-se da validade e regularidade da instância, tendo sido elencados os factos provados e elaborada a BI sem que se tivesse verificado qualquer reclamação.
Procedeu-se a julgamento e acabou por ser proferida sentença que julgou a acção e reconvenção parcialmente procedentes por provadas e assim:
- Condenou a Ré, B..., a pagar à Autora, A..., a quantia que vier a ser liquidada, referente a indemnização devida pelos prejuízos tidos com o sinistro, por força do seguro a que se reportam os autos e ao cliente C..., até ao montante de € 323.524,89 (trezentos e vinte e três mil quinhentos e vinte e quatro curas e oitenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa supletiva sucessivamente em vigor, actualmente de 12% ao ano, a contar da data de liquidação e até efectivo pagamento.
- Absolveu a Ré do pedido, relativamente ao remanescente que era pretendido pela Autora.
- Condenou a Autora a pagar à Ré a quantia de € 15.340,92 (quinze mil trezentos e quarenta curas e noventa e dois cêntimos, acrescida de juros de mora, calculados sobre o montante de 6 14.140,92 (catorze mil cento e quarenta curas e noventa e dois cêntimos), desde a data de dedução da reconvenção e até integral pagamento, à taxa supletiva sucessivamente em vigor, actualmente de 12% ao ano.
- Absolveu a Autora do pedido relativamente ao remanescente pretendido pela Ré, em reconvenção.
Daí o presente recurso de Apelação interposto pela Ré B..., a qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a Sentença recorrida na parte em que condenou a Apelante a pagar à Apelada indemnização devida pelos prejuízos tidos com o sinistro por força do seguro a que se reportam os autos e ao cliente C... até ao montante segurado e a liquidar, substituindo-a por outra que declare a nulidade parcial do contrato de seguro em apreço e absolva a Apelante do pagamento da indemnização
Apresentou para tanto as seguintes,

Conclusões.

1) O presente recurso de Apelação está limitado à parte da Decisão que veio condenar a Apelante a indemnizar a Apelada pelos prejuízos tidos com o sinistro, por força do seguro a que se reportam os autos e ao Cliente C..., até ao montante € 323.524,89.
2) Da matéria dada como provada resulta, entre outros factos, que aquando da celebração do contrato de seguro de crédito, em 04/02/2000, a Apelada não informou a Apelante de que detinha créditos sobre a C... referentes aos anos de 1998 e 1999, parte deles titulados por letras de câmbio, algumas já reformadas e outras que vieram a sê-lo posteriormente.
3) Também durante o ano de 2000, ano de vigência do contrato de seguro, foram movimentadas letras de câmbio aceites pela C... para pagamento das dívidas que tinha para com a Apelada, facto não comunicado por esta à Seguradora.
4) Também a Apelada não informou a Seguradora da prorrogação dos prazos de vencimento de algumas dessas letras que tinha em seu poder.
5) A Apelada dispunha igualmente na sua posse de um Manual de Funcionamento da Apólice de Créditos Comerciais para Operações de Comércio Externo e de Exportação da B..., fornecido por esta, aquando da celebração do contrato de seguro, e que entre outras informações claramente indicava a obrigação de comunicar à Companhia todas as situações ou circunstâncias negativas na trajectória dos clientes e bem assim todos os pagamentos em atraso originados com devolução de letras ou recibos, etc.
6) Ficou ainda demonstrado em Julgamento, que a seguradora, aquando da elaboração do contrato de seguro, não tinha qualquer informação negativa sobre a situação financeira da C...;
7) E, bem assim, nenhuma informação negativa fornecida pelas empresas de informação a que normalmente recorria para averiguar se as empresas a quem atribuía crédito estavam em situação de incumprimento.
8) Só a segurada/recorrida tinha conhecimento das letras em circulação que suportavam créditos seus dos anos de 1998 e 1999 e referentes ao cliente C....
9) A Apelante, em face dos elementos que teve conhecimento aquando da celebração do contrato de seguro, nomeadamente da existência de uma dívida acumulada da C... para com a segurada e do volume médio de facturação existente entre esta e a C..., concluiu nada mais ter de solicitar à segurada para avaliar a atribuição da garantia.
10) Os factos descritos e bem assim a natureza do contrato de seguro em causa, contrato de seguro de crédito, de carácter facultativo e que pressupõe necessariamente uma relação/comunicação permanente entre seguradora e segurado;
11) Levam-nos a defender que a interpretação do artº 429º do C. Comercial, no caso do seguro de crédito, não deve ser restritiva.
12) Assim sendo, não é necessário à seguradora provar que a omissão ou inexactidão da declaração da segurada deriva de acto que lhe é imputável em exclusivo;
13) Nem tão pouco, fazer prova da má-fé da segurada na omissão da declaração inicial;
14) Ou ainda, de que essa omissão teria podido influir sobre a existência ou condições do contrato.
15) Pugnamos pela interpretação daquele preceito, no sentido de que basta o segurado ter conhecimento de factos que podem aumentar o risco, aquando da celebração do contrato, e que sejam desconhecidos da seguradora e aquele os não declarar, para se considerar que estão preenchidos os fundamentos para a anulação do contrato.
16) A Sentença em recurso violou assim o artigo 429º do C. Comercial, na interpretação e aplicação que fez do preceito ao contrato de seguro de crédito e, bem assim as cláusulas gerais e especiais do contrato de seguro de crédito assinado pelas partes.
Contra-alegou a apelada pugnando pela confirmação da sentença.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
*
2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à transformação de alumínio e inox, bem como à prestação de serviços de grua e outros equipamentos - alínea A) da especificação.
2.1.2 Para se proteger do não cumprimento por parte dos seus clientes devedores, a Autora celebrou com a Ré um contrato de seguro de crédito, relativo ao mercado interno, em 4 de Fevereiro de 2000, titulado pela apólice nº 61.583, conforme documento junto a fls. 7 a 23 que aqui se dá por integralmente reproduzido - alínea B) da especificação.
2.1.3. No âmbito desse contrato, a Ré garantiu à Autora, na percentagem de 80%, a indemnização pelos prejuízos definitivos sofridos em consequência da falta de pagamento dos seus créditos seguros – alínea C) da especificação.
2.1.4. Por douta sentença proferida em 10 de Outubro de 2001 no seio do processo n.º 357/2000, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Santo Tirso, transitada em julgado no dia 19 de Novembro de 2001, foi declarada a falência de C... - alínea o) da especificação.
2.1.5 A Autora prestou serviços de grua e outros equipamentos à sociedade C... – resposta ao 1º quesito.
2.1.6. Das transacções comerciais efectuadas entre a Autora e a C..., facturadas no período compreendido entre 4 de Fevereiro e 19 de Julho de 2000, resultou para aquela um saldo credor de PTE 81.076.146500 (oitenta e um milhões setenta e quatro mil cento e quarenta e seis escudos), ou € 404.406,11 (quatrocentos e quatro mil quatrocentos e seis curas e onze cêntimos) – resposta ao 2º quesito.
2.1.7. Valor esse que não foi pela C... pago à Autora, apesar de a Autora ter diligenciado perante a sua cliente no sentido de obter tal pagamento, através de contactos pessoais, telefónicos e via fax e por correspondência – respostas aos quesitos 3º e 4º.
2.1.8. Em meados do mês de Julho de 2000, a Autora teve conhecimento, através de funcionários da C..., da suspensão geral de todos os pagamentos, bem como do encerramento do negócio e das suas instalações – resposta ao 5º quesito.
2.1.9. Em 14 de Julho de 2000, a Autora comunicou à Ré o valor do crédito não pago pela C..., até 30 de Junho de 2000, no montante de PTE 75.974.949500 (setenta e cinco milhões novecentos e setenta e quatro mil novecentos e quarenta e nove escudos), correspondente a € 378.961,45 (trezentos e setenta e oito mil novecentos e sessenta e um euros e quarenta e cinco cêntimos), e, em 31 de Julho de 2000, comunicou, em continuação dos valores comunicados pelo aviso de 14 de Julho, a quantia de PTE 5.101.197500 (cinco milhões cento e um mil cento e noventa e sete escudos), correspondente a € 25.444,66 (vinte e cinco mil quatrocentos e quarenta e quatro euros e sessenta e seis cêntimos) totalizando o referido montante de PTE 81.076.146500 (oitenta e um milhões setenta e seis mil cento e quarenta e seis escudos), ou € 404.406,11 (quatrocentos e quatro mil quatrocentos e seis euros e onze cêntimos) - resposta ao 6º quesito.
2.1.10. E fê-lo através do envio à Ré dos respectivos “avisos de ameaça de sinistro”, acompanhados de documentação relativa à totalidade do crédito, cuja cópia faz fls. 31 a 35, 37 e 393 a 1083 dos autos, inclusive – resposta ao 7º quesito.
2.1.11. A Autora instou a Ré para a indemnizar através de carta enviada em 22 de Novembro de 2001 – resposta ao 8º quesito.
2.1.12. A Autora solicitou à Ré um plafond de crédito para, entre outros, o cliente C..., no montante de € 448.918,00 (quatrocentos e quarenta e oito mil novecentos e dezoito euros) – resposta ao 10º quesito.
2.1.13. Apesar de inicialmente ter recusado, a Autora acabou por aceitá-lo – resposta ao 11º quesito.
2.1.14. No decorrer da anuidade em que o contrato foi celebrado, a Autora foi participando à Ré as vendas efectuadas ao referido cliente - resposta ao 12º quesito.
2.1.15. Em Julho de 2000, a Autora participou à Ré a falta de pagamento dos créditos relativos a transacções comerciais estabelecidas com o cliente C..., no montante global de esc. 81 076 146$00 (oitenta e um milhões setenta e seis mil cento e quarenta e seis escudos), correspondente a € 404.406,11 (quatrocentos e quatro mil quatrocentos e seis curas e onze cêntimos) - resposta ao 13º quesito.
2.1.16. Em resposta, a Ré enviou à Autora uma carta onde acusava a recepção do aviso de sinistro e lhe solicitava o envio de extracto da conta do cliente relativo aos anos de 1998, 1999 e 2000, a fim de verificar todos os movimentos da relação comercial existente entre a Autora e o cliente em causa – resposta ao 14º quesito.
2.1.17. Na mesma carta, a Ré solicitou à Autora informação sobre a existência de letras de câmbio, cheques ou de outros meios de pagamento acordados entre esta e o cliente - resposta ao 15º quesito.
2.1.18. A Autora procedeu ao envio de vária documentação sobre os movimentos das relações comerciais mantidas com o cliente C..., nomeadamente o extracto de conta corrente - resposta ao 16º quesito.
2.1.19. Após a análise do extracto de conta corrente do cliente C..., recebido pela Ré no dia 23 de Outubro de 2000, esta verificou que, aquando da celebração do contrato aludido em B), aquele apresentava um saldo em débito no montante de PTE 108 267 973$00 (cento e oito milhões duzentos e sessenta e sete mil novecentos e setenta e três escudos), correspondente a € 540.038,37 (quinhentos e quarenta mil e trinta e oito curas e trinta e sete cêntimos) - resposta ao 17º quesito.
2.1.20. Os referidos créditos da Autora sobre a C... datam dos anos de 1998 e 1999, encontrando-se parte deles, à data da celebração do contrato de seguro referido em B): titulados por letras de câmbio, algumas das quais já tinham sido reformadas ou vieram a sê-lo posteriormente - resposta ao 19º quesito.
2.1.21. No ano de 2000, foram movimentadas letras de câmbio que a C..., aceitou para pagamento dos valores em dívida para com a Autora, relativamente aos anos de 1998 e 1999 - resposta ao 20º quesito.
2.1.22. A Autora, na ocasião em que foi celebrado o contrato referido em B), não informou a Ré da existência dessas letras de câmbio, nem lhe deu a conhecer o pagamento de algumas delas e a que facturas tais pagamentos foram imputados - resposta ao 21º quesito.
2.1.23. A Autora, nessa mesma ocasião, também não informou a Ré da prorrogação dos prazos de vencimento de algumas das letras que tinha em seu poder, aceites pelo cliente - resposta ao 22º quesito.
2.1.24. Depois de analisar toda a documentação enviada pela Autora, a Ré decidiu recusar o sinistro - resposta ao 23º quesito.
2.1.25. Facto que comunicou à Autora em 26 de Outubro de 2000, e posteriormente por carta de 14 de Novembro do mesmo ano, conforme documentos juntos a fls. 170 e 171 – resposta ao 24º quesito.
2.1.26. A Autora, por carta datada de 11 de Outubro de 2000, cuja cópia faz fls. 176 dos autos, confirmou à Ré a existência dos referidos créditos anteriores à celebração do contrato - resposta ao 25º quesito.
2.1.27. A Autora enviou à Ré uma carta, em 5 de Janeiro de 2001, onde refere que “o montante total em dívida à A..., é de esc. 232 195.393$00” - resposta ao 26º quesito.
2.1.28. A partir da data da celebração do contrato de seguro e até à data da participação do sinistro por parte da Autora à Ré, em Julho de 2000, as vendas declaradas foram apenas de € 414.052,91 (quatrocentos e catorze mil e cinquenta e dois euros e noventa e um cêntimos) – resposta ao 27º quesito.
2.1.29. A Autora não pagou à Ré o prémio correspondente à anuidade de 2001, relativa ao período de 1 de Janeiro de 2001 a 31 de Dezembro de 2001, no valor de € 14.140,92 (catorze mil cento e quarenta curas e noventa e dois cêntimos) - resposta ao 30º quesito.
2.1.30. O pagamento do prémio de seguro era feito trimestralmente, ascendendo a prestação de cada trimestre do ano de 2001 a € 3.535,23 (três mil quinhentos e trinta e cinco euros e vinte e três cêntimos) – resposta ao 31º quesito.
2.1.31. A Autora, em 29 de Novembro de 2001, declarou denunciar o contrato de seguro referido em B) com efeitos a partir de 31 de Janeiro de 2002, conforme documento junto a fls. 210 - resposta ao 32º quesito.
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2.2. O Direito.

Nos termos do precei-tuado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformi-dade e conside-rando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos:
- Da pretensa nulidade do contrato de seguro por violação do disposto no artigo 429º do Código Comercial.
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2.2.1. Da pretensa nulidade do contrato de seguro por violação do disposto no artigo 429º do Código Comercial.

Insurge-se a Ré seguradora contra a sentença na parte em que a condenou a pagar à apelada indemnização devida pelos prejuízos tidos com o sinistro por força do seguro a que se reportam os autos até ao montante de € 323.524,89, acrescida de juros de mora.
Argumenta resultar da matéria dada como provada que aquando da celebração do contrato de seguro de crédito, em 4/02/2000, a apelada não informou a apelante de que detinha créditos sobre a C... referentes aos anos de 1998 e 1999, parte deles titulados por letras de câmbio, algumas já reformadas e outras que vieram a sê-lo posteriormente.
De igual forma durante o ano de 2000, ano da vigência do contrato de seguro foram movimentadas letras de câmbio aceites pela C... para pagamento das dívidas que tinha para com a Apelada, facto que esta não comunicou à seguradora.
Também a apelada não informou a Seguradora da prorrogação dos prazos de vencimento de alguma das letras que tinha em seu poder.
A tudo acresce que a apelada tinha em seu poder um Manual de Funcionamento da Apólice de Créditos Comerciais fornecido pela Apelante aquando da celebração do contrato de seguro e que entre outras informações indicava a obrigação de comunicar à Companhia todas as situações ou circunstâncias negativas da trajectória dos clientes e bem assim, todos os pagamentos em atraso originados com devolução de letras ou recibos.
Esta factualidade é, no entender da Apelante, susceptível de acarretar a nulidade do contrato de seguro, à face do artigo 429º do Código Comercial, o qual estatui que "Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo.
§ único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má-fé o segurador terá direito ao prémio".
É sabido que o contrato de seguro tem a natureza de contrato bilateral, (sinalagmático), aleatório, de adesão e formal. No caso vertente estamos perante um "seguro de crédito" que o Autor celebrou com a Ré. Este tipo de seguros vem regulamentado entre nós pelo DL 183/88 de 24 de Maio. Trata-se de um seguro feito pelo credor destinado a protegê-lo do não cumprimento por parte do devedor. Decorrido o período de mora do devedor – prazo de carência – indicado nas Condições Particulares da Apólice, e feita a prova do não pagamento, considera-se verificado o risco coberto pela apólice Trata-se, refere Januário Gomes "de uma garantia paralela à garantia bancária; só que prestada por um segurador, assumindo por isso a comissão, a designação de prémio; Cfr. A. citado "Assunção Fidejussória de Dívida/Sobre o Sentido e o âmbito da vinculação como Fiador", Almedina, Teses 2000, pags. 76, nota 291.. A cobertura do seguro é limitada a uma percentagem do crédito seguro, i.e. existe a estipulação de um descoberto obrigatório, não sendo indemnizáveis por este seguro os lucros cessantes e bem assim os danos patrimoniais – cfr. o disposto nos artigos 5º, 9º e 12º do Diploma supracitado Cfr. José Vasques "Contrato de Seguro" Coimbra Editora, 1999, pags. 71. Na Jurisprudência, Acs. Ac. do S.T.J. de 24-1-1995 (P. 85 951) in Col. de Jur., 1995, 1, 40; da Rel. do Porto de 20-1-2000 (R. 1497/99) in Col. de Jur., 2000, I, 195. . Mau grado o DL 176/95 de 26 de Julho tenha vindo a disciplinar parcialmente a formação do seguro, poderá dizer-se que à sua génese deverá sempre presidir o princípio da boa-fé na celebração dos contratos a que alude desde logo o preceituado no artigo 227º do Código Civil. A perfeição do contrato consubstancia-se no termo da prática de um determinado número de actos tendentes a conformar um acordo das partes que esteja em consonância com um determinado modelo legal, a Apólice de Seguro. Tratando-se de um contrato aleatório em que a entidade seguradora assume um risco terá este de ser ponderado por esta última; para isso conta à partida para além dos conhecimentos que deve possuir pela experiência que tem no sector económico onde desenvolve a sua actividade, com os elementos que lhe deve fornecer o proponente através da "declaração de risco"; esta é uma declaração unilateral que se é feita à seguradora e destina-se a avaliar o risco bem como a permitir o cálculo do prémio Cfr. Luís da Cunha Gonçalves "Comentário ao Código Comercial" II, pag. 572.. Trata-se de um momento fundamental da génese do contrato onde prepondera mais acentuadamente o princípio da boa-fé, impondo a veracidade dos informes e a exclusão de omissões ou reticências susceptíveis de viciar a vontade da contraparte, uma vez que a seguradora desenvolve toda a sua actividade no pressuposto de uma relação de confiança Cfr. Joaquín Garrígues "Contrato de Seguro Terrestre", Madrid, 1983, pags. 48. José Vasques Ob. Cit. pags. 211 ss. . Assim se compreende que o artigo 429º supracitado invalide o contrato celebrado em tais circunstâncias. Muito embora a lei comine com a nulidade o seguro que tem na sua génese uma "declaração de risco" viciada por falsas declarações, o certo é que se tem entendido e bem, que a consequência jurídica de um seguro celebrado nessas condições deverá ser menos gravosa, sendo unicamente anulável. De igual forma é nosso entendimento, na esteira da Jurisprudência maioritária e que nos parece a mais razoável, que não é qualquer declaração inexacta ou reticente que poderá influir sobre a existência ou condições do contrato; torna-se ainda necessário apurar se no caso concreto a verificarem-se a seguradora não aceitaria contratar, ou o faria apenas com agravamento do prémio aplicável Cfr. Ac. do S.T.J. de 3-3-1998 (P.33/98) in Col. de Jur., 1998, 1, 103. . Revertendo ao caso concreto não vemos que perante os factos dados como provados e que não foram validamente impugnados e considerada ainda toda a documentação junta, se possa sustentar que há fundamento para a procedência da pretensão da Ré Apelante. Na verdade não se mostra clarificada a questão de saber quando é que a Ré Seguradora teve conhecimento dos balancetes de onde constavam os créditos da Autora sobre a C... provindo de anos anteriores à data da celebração do contrato. Contudo deverá salientar-se que na extensa fundamentação das respostas aos quesitos vem referido a fls. 1 093, com base nas declarações de Maria Elisabete Mota que a Ré teve conhecimento da situação económica da Autora, inclusive dos créditos que possuía e sobre quem incidiam, Esse mesmo conhecimento é corroborado pela ROC Cristina de Oliveira Carapinha revisora de contas e que nessa qualidade prestou serviços à Autora. De igual forma, refere esta testemunha ter a Ré feito investigações sobre a situação económica das empresas devedoras da A.. Todos estes depoimentos poderiam ter sido alvo de impugnação em eventual pedido de reapreciação da matéria de facto e esta não foi requerida.
Contudo e fundamentalmente, não provou a Ré como era seu dever – e praticamente toda a Jurisprudência vai nesse sentido – que a Ré não teria contratado se tivesse conhecimento da dívida da C... perante a Autora Trata-se de um facto impeditivo do direito do Autor; Cfr. Ac. do S.T.J. de 3-3-1998 (P.33/98) in Col. de Jur., 1998, 1, 103; da Rel. Lisb. 31-05-2001 JTRL00034285 in www. dgsi.pt/jtrl.

. Este facto é o decisivo contra a tese da Ré; Na verdade e de harmonia com o estatuído no artigo 429º as declarações inexactas e a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado só relevam tornando o seguro nulo, se as mesmas tivessem podido influir sobre a existência ou condições do contrato. Caso contrário admitir-se-ia o absurdo de que uma incorrecção ou omissão insignificante, constante da declaração de risco pudesse pôr em causa a validade do seguro sempre que a Companhia fosse chamada a assumir as suas responsabilidades, o que é inaceitável à luz dos princípios da boa-fé contratual que hoje informam o direito dos contratos.
Nestes termos a apelação terá que improceder.


Do exposto poderá pois concluir-se o seguinte:

1) O seguro de crédito entre nós regulado pelo DL 183/88 de 24 de Maio, visa proteger o credor num contrato do não cumprimento por parte do devedor.
2) Decorrido o período de mora do devedor – prazo de carência – indicado nas Condições Particulares da Apólice e feito a prova do não pagamento, considera-se verificado o risco coberto pela apólice.
3) Ao seguro aplicam-se também os princípios gerais de direito com relevo especial para o da boa-fé, quer nos preliminares da contratação quer na respectiva vigência.
4) Tratando-se de um contrato aleatório em que a entidade seguradora assume um risco, terá este de ser ponderado por aquela; conta para tal fim com a sua experiência e com os elementos que lhe deve fornecer o proponente através da "declaração de risco".
5) As falsas declarações reticências ou omissões que se verifiquem naquela "declaração" são susceptíveis de conduzir à anulação do seguro, de harmonia com o disposto no artigo 429º do Código Comercial.
6) Todavia não é qualquer declaração inexacta ou reticente que poderá influir sobre a existência ou condições do contrato; torna-se ainda necessário apurar se no caso concreto, a verificarem-se a seguradora não aceitaria contratar, ou o faria apenas com agravamento do prémio aplicável.
7) A prova daquele circunstancialismo constitui facto impeditivo a provar pela Ré seguradora, sem o que o seguro permanecerá válido.
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3. DECISÃO.

Pelo exposto decide-se o seguinte:
Julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença apelada.
Custas pelo apelante.