Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2162/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VITOR
Descritores: DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 01/17/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 36.º, J), L) DO CÓDIGO DE INSOLVÊNCIAS E RECUPERAÇÃO DE EMPRESA
Sumário: 1. Proferida a sentença de declaração de falência, e independentemente do respectivo trânsito, o círculo de interesses ultrapassou o âmbito do mero requerente e requerido, para abarcar um âmbito mais vasto de interessados.
2. Por isso não é possível ser declarada a inutilidade superveniente da lide pelo pagamento da dívida que desencadeou o processo
Decisão Texto Integral:
Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

A... instaurou a presente acção pedindo que seja declarada a insolvência de B....
Alegou, em síntese, que o requerido lhe deve € 14.942,73, que não tem nem bens nem rendimentos que lhe permitam cumprir essa obrigação e que não se encontra a exercer nenhuma actividade profissional. Mais alegou que tentou cobrar o seu crédito na acção executiva 873/03 do 1º Juízo Cível de Aveiro, o que não conseguiu por não se encontrarem bens suficientes para a satisfação do seu crédito.
O requerido foi citado e deduziu oposição, não pondo em causa o alegado pela requerente, referindo que está disposto a pagar o crédito em prestações ao requerente
Foi apresentado articulado superveniente pelo requerido, em que este alega que a sua situação se alterou, pois já se encontra a trabalhar, auferindo um ordenado mensal.
Seleccionou-se a matéria de fato assente e a base instrutória. Procedeu-se a audiência de julgamento.
O Sr. Juiz julgou a acção procedente e declarou a insolvência de B....
Daí o presente recurso de apelação interposto pelo requerido, o qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a sentença apelada, julgando-se improcedente o pedido de insolvência.
No termo da sua alegação de recurso o apelante apresentou as seguintes,

Conclusões.

1) O tribunal a quo não considerou provada a matéria de facto não impugnada, violando o disposto no artigo 490º nº 1 e nº 2 do Código de Processo Civil, e a que considerou provada é insuficiente para a decisão.
Deveria ter considerado assente ou, pelo menos, quesitado os factos relativos à vida pessoal e ao pagamento aos restantes credores, matéria que só por si imporia diferente decisão
2) Atendendo aos factos considerados provados pelo Tribunal a quo a insolvência da recorrente nunca poderia ser decretada nos termos do artigo 36º do CIRE mas, quando muito, pelo artigo 39º, o que, aliás, também não se aceita.
3) As consequências na vida da recorrente são muito diferentes e a preterição da aplicação do artigo 39º, designadamente da alínea a) do nº 7 do artigo 39º do CIRE é violadora do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa.
4) A sentença é, pois, nula porque os fundamentos da decisão impunham decisão diversa (artigo 668º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil), com consequências diversas.
5) A requerente da insolvência poderia ter obtido no processo executivo, com a penhora do vencimento do executado, a satisfação do seu crédito.
6) Ao usar o processo de insolvência como pressão para com o recorrente, a requerente da insolvência desvirtuou o objectivo do processo de insolvência e fez dele um uso anormal (artigo 665º do Código de Processo Civil).
7) O recorrente vem pagando outras dívidas – sendo que com outro credor fez um acordo de pagamento que terá de deixar de cumprir – pelo que não está insolvente já que poderá pagar faseadamente, em prestações ou por penhora dos vencimentos a dívida peticionada.
8) O recorrente demonstrou nos autos que ficaram afastados os indícios nos quais a requerente da insolvência se baseou, não podendo, por isso, ser decretado insolvente.
9) A sentença do Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 17º, 30º nº 3 e 39º do CIRE e 668º nº 1 alínea c), 490º nº 1 e nº 2 e 665º do Código de Processo Civil e artigo 26º da Constituição da República Portuguesa, devendo ser revogada e substituída por outra que indefira o requerimento de insolvência.
Contra-alegou a apelada pugnando pela confirmação da sentença.
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Tendo já sido remetidos os autos a esta Relação, foi junto um requerimento do Requerido a fls. 50 onde se refere que a Auto-Sueco intentou acção de insolvência contra a mulher do ora recorrente para satisfação dessa mesma dívida, que era do casal. Entretanto, em 18/7/2005 desistiu da instância, desistência que já foi homologada por sentença conforme documentos que juntou.
Sustenta assim que a dívida já não existe, sendo certo que enquanto existir foi fixada em € 75.000.
Nesta conformidade e em face dos valores envolvidos deixou de justificar-se a sua declaração de falência.
Por último o requerido apresentou já nesta Relação o requerimento de fls. 59 no qual refere que está em condições de pagar a totalidade da dívida ao requerente da insolvência, pedindo que seja autorizado a proceder ao depósito na referida execução e consequentemente que seja declarada a inutilidade superveniente da lide no processo de insolvência e de igual forma no presente processo.
Ouvida a requerente da falência pela mesma foi dito que nada tem a opor ao requerido.
No entanto por despacho de fls. 65 e 66 já transitado, foi decidido indeferir ao requerido no que toca à declaração de inutilidade superveniente da lide e não apreciar o pedido formulado quanto ao pagamento da quantia em dívida por não ser esta a sede própria para tanto.
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2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. A requerente é uma pessoa colectiva que se dedica à comercialização e indústria de diversificado equipamento electrónico.
2.1.2. No exercício da sua actividade e no âmbito de uma relação comercial com o requerido foi emitido em 5/12/96 um cheque com o nº 7700965863 a favor do requerente.
2.1.3. O cheque foi emitido para efectuar um pagamento relativo a fornecimentos de materiais, comercializados pela requerente, a pedido do requerido.
2.1.4. O cheque foi emitido sobre a conta nº 12453623.10.001, do Finibanco, Agência de Santa Joana, no montante de € 5.860,88.
2.1.5. O cheque quando apresentado à cobrança não tinha provisão.
2.1.6. A requerente em 22/10/2001 instaurou uma acção executiva para pagamento de quantia certa, que corre termos no 1º Juízo Cível com o nº 873/03.5 TBAVR, em que o título executivo é o cheque referido.
2.1.7. Na acção executiva 873/03 do 1º Juízo Cível de Aveiro, a requerente não obteve o pagamento do seu crédito por não se ter conseguido encontrar bens suficientes para a sua satisfação, só tendo sido penhoradas duas apólices de seguro de vida, uma no valor de € 791,70; outra de € 48;57, efectuados na Ocidental-Companhia Portuguesa de Seguros-de-Vida, S.A e ainda € 262,43, do seguro efectuado na Abeillevie-Societé Anonyme d’ Assurances Vie et de Capitalisation.
2.1.8. No decurso da acção executiva supra referida, foram interpostos embargos de executado, que foram julgados improcedentes.
2.1.9. 0 Requerido deve à requerente 14.942,73 € (capital de € 5.860,88 e juros até 24 de Setembro de 2004 no valor de € 9.081,85).
2.1.10. O requerido não tem bens móveis, nem imóveis.
2.1.11. Na altura em que foi requerida a insolvência do requerido, em 24 de Setembro de 2004, este encontrava-se desempregado.
2.1.12. O requerido é devedor do Banif, da Fazenda Nacional e da Auto Sueco, respectivamente em cerca de 6 12.000,00; € 15.000,00 e € 110.000,00.
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Mostra-se ainda provado por certidão junta que:

2.1.13. A Auto-Sueco intentou acção de insolvência contra Isabel Santos Martins Queirós para satisfação de uma dívida, tendo desistido da instância; cfr. Doc.2 de fls. 54.
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2.2. O Direito.

Nos termos do precei-tuado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformi-dade e conside-rando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos:
- Existe insuficiência da matéria de facto?
- Da pretensa nulidade da sentença.
- Do alegado uso anómalo do processo.
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2.2.1. Existe insuficiência da matéria de facto?

Face à declaração de insolvência apelou o requerido, tendo levantado à partida o problema da insuficiência da matéria de facto. Entende que deveriam ter sido dados como assentes factos não impugnados, nomeadamente que:
- Só não havia pago o montante em causa nos autos por razões de saúde.
- Se vem esforçando por satisfazer todos os seus créditos (artigo 2º da oposição).
- A quantia em dívida ao Banif até deu origem a uma acção na qual o Banif veio a desistir porque o recorrente está a pagar a dívida em prestações (artigo 4º da oposição).
- O requerido pagará aos outros credores e à requerente e não contrairá mais dívidas (artigos 5º e 6º da oposição).
- Vinha sendo funcionário da SIDEC e podia ter sido penhorado o seu vencimento.
- Pode contar com a ajuda de um filho (artigo 10º).
- É pessoa válida, tem capacidade de trabalho e apoio da família (artigos 13º, 14º e 15º da oposição).
- Tem pago outras dívidas maiores e os credores têm compreendido a situação pelo que também pagará a dívida à requerente (artigo 17º da oposição).
- Posteriormente, no articulado superveniente que foi junto aos autos e que foi admitido, invocou que:
-Aufere € 75 mensalmente;
- Tem possibilidades financeiras para pagar a quantia peticionada em doze prestações bimensais, iguais e sucessivas, tendo-se proposto, desde já, a entregar cheques pré-datados à requerente.
Entende o Apelante que a falta de impugnação destes factos determina que eles tenham de ser considerados provados (artigo 490º do Código do Processo Civil ex vi artigo 17º do CIRE); assim o Tribunal a quo necessariamente teria concluído que o requerido não está impossibilitado de solver os seus compromissos.
Decidindo.
O processo de insolvência é um processo especial. Na sua base está a preocupação da verdade material que inegavelmente se sobrepõe a princípios formais. Nesta conformidade, na elaboração dos quesitos o Juiz terá que se cingir aos factos que sejam susceptíveis de conduzir à declaração de insolvência; e esses, que constam do artigo 2º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, foram efectivamente tomados em linha de conta especificados e quesitados na Base Instrutória, tendo o requerido logrado a possibilidade de se defender face aos mesmos. Ora se é certo que o artigo 17º do citado Código estatui que o processo de insolvência se rege pelo Código de Processo Civil, não deixa porém de referir expressamente que tal só se verifica em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código. Ora no processo de insolvência - estatui o artigo 11º do CIRE – vigora o princípio do inquisitório, adiantando o mesmo artigo que a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.
Analisando os elementos constantes dos autos verificamos que o Tribunal a quo se pautou por estes princípios. Constata-se efectivamente que estão em causa montantes elevados e os factos dados como provados integram perfeitamente a conclusão a que se reporta o artigo 3º do Código da Insolvência Recuperação de Empresas “estar o devedor impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Acrescente-se ainda que contra esta conclusão de nada vale o facto de a requerente ter desistido da instância na acção de insolvência que intentou contra a mulher do ora requerido; independentemente de se tratar ou não da mesma dívida (já que a certidão junta é incompletíssima e nada esclarece) deverá dizer-se que para além de ignorarmos os motivos que estiveram na base de tal desistência, certo é que tratando-se de mera desistência da instância a dívida permanece nada impedindo que o respectivo pagamento venha a ser de novo exigido. Por outro não vemos qualquer fundamento – e também o requerente não explana – para que se possa afirmar que com tal desistência fica a dívida do requerido reduzida a metade… Para além da desistência da instância por parte da requerente apelada não extinguir qualquer dívida, nem impedir que de novo possa ser requerida a insolvência [Cfr. J. Raposo Subtil e Outros "Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas" Vida Económica, 2004, em anotação ao artigo 21º.], o certo é também que não haveria elementos em ordem a apurar a natureza da dívida nos termos dos artigos 1 690º ss do Código Civil.
Improcedem pois as considerações do apelante sob este item.
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2.2.2. Da pretensa nulidade da sentença.

O apelante argúi de nula a sentença em crise porque considerando os factos provados pelo Tribunal a quo a falência nunca poderia ser decretada desde logo nos termos do artigo 36º do CIRE mas quando muito pelo artigo 39º do mesmo Diploma Legal. Em seu entender a sentença incorre na nulidade a que alude o artigo 668º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil, o qual estatui ser nulo o aresto quando os fundamentos estão em oposição com a decisão.
Apreciando. Como é sabido as nulidades a que se reporta o artigo supracitado são de natureza formal; concretamente a que referimos verifica-se quando as premissas do silogismo judiciário não estão de acordo com a respectiva conclusão. Após atenta análise do aresto em crise não se vê onde possa assacar-se o vício em análise à sentença apelada. Na verdade o Sr. Juiz apreciou o montante em dívida ao requerente, as restantes dívidas a outras entidades, a insuficiência de bens penhoráveis e perante tudo isso concluiu verificarem-se os pressupostos da falência. De seguida limitou-se a dar cumprimento na parte aplicável ao estatuído nos artsº 36º ss do CIRE que se reportam às formalidades posteriores à declaração da falência.
Improcedem igualmente nesta sede as considerações do Apelante.
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2.2.3. Do uso anómalo do processo.

Por último vêm o apelante referir que a requerente fez uso anómalo do processo requerendo a sua declaração de falência quando a mesma se não justifica.
A posição do apelante é apresentada como o corolário de toda a argumentação que expendeu contra a sentença apelada, a qual não obteve minimamente o acolhimento do Tribunal a quo como não o merece desta Relação. Adiantaremos que a enveredarmos por um tipo de considerações dessa natureza poderíamos inclusive, em face de tudo o que apurámos, ser tentados a concluir que o uso anormal dos meios processuais se verificará da parte do próprio arguente… com as conhecidas implicações….
Improcedem também nesta parte as considerações do apelante.
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No que concerne ao requerimento apresentado a fls. 59, já nesta sede e que foi indeferido com trânsito, tal ficou a dever-se a duas ordens de razões:
- Primeiro porque não cabe a este Tribunal autorizar ou não o depósito da quantia em dívida na execução, já que independentemente de outras considerações não é esta a função do tribunal de recurso.
- Em segundo lugar, porque houve que tomar em linha de conta o disposto no artigo 21º nº 1 do CIRE quando refere que "salvo nos casos de apresentação à insolvência o requerente da declaração de insolvência pode desistir do pedido ou da instância até ser proferida sentença, sem prejuízo do procedimento criminal que no caso couber". A inutilidade superveniente da lide que o Requerido pretendia ver declarada através do pagamento nesta sede não poderia operar, por opção do legislador, uma vez que a partir do momento em que é proferida sentença é aberta a porta para a intervenção dos restantes credores – artigo 36º alíneas j) e l) do mesmo Diploma. A partir da prolação da sentença - independentemente do respectivo trânsito [Cfr. Acs. desta Relação de 26-09-2000 (R. 1383/2000) in Bol. do Min. da Just., 499, 392. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado” Volume I Quid Iuris, Lisboa, 2005, pags. 141 em anotação ao artigo 21º].
o círculo de interesses ultrapassou o âmbito do mero requerente e requerido, para abarcar um âmbito mais vasto de interessados. Na verdade, declarada a falência – lê-se no Ac. do Trib. Const. nº 506/98, de 2-7-1998 (P. 830/96) in Bol. do Min. da Just., 479, 117 - mesmo sem trânsito em julgado da respectiva sentença, o requerente não pode desistir do pedido, pois deixou de ser o exclusivo "interessado" da instância falimentar, que então se alargou aos credores.
Haverá que confirmar a sentença em análise.
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3. DECISÃO.

Por todo o exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença apelada.
Custas pelo Apelante.