Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3184/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR.ª REGINA ROSA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO DE NATUREZA PARTICULAR
CHEQUE AO QUAL FALTA ALGUM ELEMENTO PARA SE PODER CONSIDERAR COMO TAL - SUA EXEQUIBILIDADE E PRESSUPOSTOS PARA O EFEITO
Data do Acordão: 12/02/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO CONFIRMADA
Área Temática: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Legislação Nacional: ART. 46°, AL. C ), DO C PC; LU S/CHEQUES.
Sumário:
I - A falta de data de emissão num cheque traduz-se na falta de um dos requisitos essenciais enumerados na L U sobre Cheques, o que conduz a que esse título não possa valer como cheque.
II - Sendo o título executivo um documento escrito que serve de meio legal de demonstração da existência do direito do exequente, provando uma obrigação exequível, um título que contenha a assinatura do devedor e importe o reconhecimento ou a constituição de obrigações determinadas ou determináveis por simples cálculo aritmético tem de ser considerado como título executivo particular (não há que distinguir os títulos cambiários dos restantes escritos particulares).
III - A ordem de pagamento dada ao banco e concretizada num cheque implica, em princípio, um reconhecimento unilateral de uma dívida, o que dele faz um título executivo desde que o seu portador invoque a obrigação donde faz derivar o direito a ver satisfeito esse pagamento coercivo.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I – RELATÓRIO
I.1- Miguel ... e mulher, Maria J..., vieram deduzir embargos de executado contra Claúdia S..., por apenso à execução para pagamento de quantia certa sob a forma ordinária que esta lhes moveu.
Aduzem, em síntese, que o cheque dado à execução não é título executivo por não ter aposta qualquer data, que o mesmo foi entregue como garantia do cumprimento de uma obrigação, e que o direito da embargada fundado em tal cheque está prescrito.
Contestou a embargada sustentando, em súmula, que o cheque, ainda que não possa valer como título de crédito executivo, vale como documento quirógrafo da obrigação nele incorporada, ou seja, como documento particular, e como tal, pode ser considerado título executivo nos termos do disposto no art.46º-c),C.P.C.; que o cheque em causa consta a obrigação de pagamento de quantia determinada, e que no requerimento executivo invocou a obrigação exequenda, razão pela qual, ultrapassado embora o prazo prescricional previsto no art.52º da L.U.C., o cheque não deixará de ser título executivo.
Após os articulados, o juiz conheceu no saneador do fundo da causa, julgando os embargos procedentes e extinta a execução.
I.2- Deste saneador-sentença apelou a exequente/embargada, em cujas alegações concluiu em síntese nossa:
1ª- Considera a recorrente que a actual redacção do art.46º-al.c),C.P.C. visou abranger toda uma panóplia de documentos nos quais e através dos quais alguém se tenha constituído em obrigação para com outrem, e que essa obrigação se traduza no pagamento de montante determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, de entrega de coisa móvel ou de prestação de facto, embora nada se diga quanto ao formalismo e conteúdo de tais documentos;
2ª- Um cheque não datado mas assinado pelo devedor e do qual consta uma ordem de pagamento de uma quantia determinada, pode ser considerado um documento particular e como tal título executivo nos termos da apontada norma;
3ª- Facto que ocorre ainda que no mesmo não conste a causa da obrigação.
I.3- Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
A 1ª instância considerou assente a seguinte factualidade:
1. A exequente, ora embargada, deu à execução de que este é um apenso, um cheque no montante de 929.446$00, sacado sobre a conta solidária do executado-marido, ora embargante, na agência de Leiria da «Nova Rede – Banco Comercial Português»;
2. Tal cheque foi assinado e entregue pelos embargantes;
3. Esse mesmo cheque apresenta o local destinado ao preenchimento da data de emissão, em branco;
4. Tal cheque foi apresentado a pagamento a 18.6.01 e foi devolvido sem ser pago por falta de provisão na conta bancária sacada verificada em 19.6.01.
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II.2 - de direito
Entendeu a decisão recorrida que os executados vêm embargar à luz do art.813º-al.a),C.P.C. (inexistência ou inexequibilidade do título), ao invocarem a nulidade do cheque dado à execução, por nele não constar um dos elementos previstos no art.1º da L.U.C.- a indicação da data de emissão.
A este respeito considerou-se que efectivamente o cheque emitido, assinado e entregue pelos embargantes e hoje em posse da embargada, é um cheque em branco já que dele não consta a data em que foi passado, sendo por isso nulo, e consequentemente inapto a produzir em juízo os efeitos como cheque (art.2º da LUC).
Tendo em conta o que precede, a sentença recorrida entendeu, então, que nos termos do art.46º-al.c) C.P.C. o cheque em causa não constitui título executivo, procedendo assim o fundamento destes embargos, ficando prejudicado o conhecimento da questão da prescrição do direito de acção da embargada.
Contra este entendimento insurgiu-se a recorrente, defendendo a exequibilidade do cheque.
O objecto da apelação consiste, portanto, em saber se o cheque dado à execução, é ou não título executivo.
Como vimos, no referido cheque não foi aposta a data de emissão – situação que a apelante aceita. Assim, faltando um dos requisitos essenciais enumerados no citado art.1º, é fora de dúvida que não produz efeito como cheque (arts.1º/5 e 2º§1º, LUC).
Não podendo produzir efeitos cambiários, pode, no entanto, valer como quirógrafo da dívida que lhe deu origem.
Mas a questão a apreciar é se o dito cheque, agora como simples quirógrafo, ou seja, enquanto documento particular, assinado pelo devedor, pode ser considerado título executivo à luz do art.46º-al.c),C.P.C..
A solução não tem sido pacífica nos nossos tribunais.
Uns entendem que o cheque (ou a letra) poderá continuar a valer como título executivo, enquanto documento particular consubstanciando a obrigação subjacente ou formal, a qual deverá ser invocada no requerimento inicial. Cfr., entre os mais recentes, o Ac.STJ de 11.5.99 (CJstjII/99-88), Ac.R.L. de 25.1.01 (CJI/01-99), Ac.STJ de 30.1.01 (CJstjI/01-85), Ac. R.L. de 27.6.02 (CJIII/02-121), Ac.STJ de 29.1.02 (CJstjI/02-64), revista nº3369/02-2ª secção, de 28.11.02 (www.stj.pt).
Em sentido contrário, perfilha-se o entendimento de que o cheque desprovido da natureza cambiária e enquanto documento particular, não tem força bastante para importar, por si só, a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária, não constituindo assim, título executivo Cfr., Ac.STJ de 29.2.00 (CJstjI/00-124), Ac.R.C. de 6.2.01 (CJI/01-28), de 16.4.02 (com voto vencido) (CJIII/02-11), e Ac.STJ de 16.11.01 (CJstjIII/01-89)..
Nós temos vindo a aderir á primeira solução.
Vejamos.
Diz-nos o nº1 do art.45º do CPC, que toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.

O título executivo - peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva (não há execução sem título), é um documento escrito, meio legal de demonstração da existência do direito do exequente: constitui, certifica ou prova uma obrigação exequível, que a lei permite que sirva de base à execução. Todavia, esta função probatória do documento é autónoma relativamente à actual existência da obrigação. Cfr. J.P. Remédio Marques, «Curso de processo executivo comum à face do código revisto», pág.56

O mencionado art. 46º enumera taxativamente nas suas alíneas, quatro espécies de títulos. Para o caso que nos ocupa, os documentos particulares para se configurarem como títulos executivos devem obedecer aos requisitos mencionados na al.c), a saber: conterem a assinatura do devedor; importarem a constituição ou reconhecimento de obrigações; as obrigações reportarem-se ao pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, à entrega de coisas móveis ou à prestação de facto.

Do exposto resulta que os escritos particulares passaram, doravante, a possuir força executiva ou exequibilidade extrínseca para a exigibilidade de quase todas as obrigações líquidas, não se distinguindo, como se fazia na anterior redacção, os títulos cambiários dos restantes escritos particulares.
No presente caso, como vimos, a pretensão exequenda emerge de um cheque.
Os cheques são títulos à ordem, porque neles se indicam o nome do beneficiário (o tomador dos cheques) e a ordem de pagamento dada ao estabelecimento bancário (o sacado) onde deveria existir uma provisão de fundos constituída pelo emitente dos cheques (o sacador).

In casu, verifica-se que no mencionado cheque o devedor (e sacador) deu

ordem à «Nova Rede – Banco Comercial Português», agência de Leiria (sacado) para pagar ao portador a quantia nele aposta a ser retirada da sua conta nessa instituição bancária. Dele, para lá da assinatura do emitente, nada mais consta, nomeadamente o motivo dessa ordem de pagamento.

Mas figurando agora o dito cheque como simples quirógrafo, a obrigação exigida deixou de ser cambiária ou cartular, passando a ser a obrigação causal ou fundamental.
A ordem de pagamento dada ao banco pelos embargantes e concretizada no cheque implica, em princípio, um reconhecimento unilateral de dívida.
Todavia, e conforme antes se aludiu, no dito cheque falta a menção da obrigação subjacente que se visava satisfazer com a sua emissão, isto é, falta o motivo da ordem de pagamento que ele encerra.
Tal falta de referência à causa determinativa da emissão do cheque é, a nosso ver, irrelevante, pois que não significa que o emitente não reconhece a obrigação pecuniária, deixando por isso o cheque de ser considerado título executivo.
Ora, ninguém confere ordens de pagamento em benefício de certa pessoa ou entidade, sem que exista obrigação ou razão para tal: quem emite cheques quer extinguir dívidas e se tal suceder, é porque reconhece, de facto, que as mesmas existem na sua esfera jurídica. Por outro lado, mediante a declaração negocial constante do cheque e ordem de pagamento que traduz, retrata o cheque em causa um reconhecimento de dívida (a contraditar pelo réu), admitido pelo art.458º/1 do C.C.. neste sentido o Ac.do STJ de 11.5.99 (CJSTJ/II-99, págs. 88-92), que de perto seguimos.

Como salienta o Dr.Amâncio Ferreira citando o Prof. Pinto Coelho, “o cheque é um (…) meio especialmente adequado a liquidar dívidas de dinheiro para com terceiras pessoas, falando-se com frequência de pagamento com um cheque”.
Acrescenta depois: “E a dívida a liquidar tanto pode ser a respeitante à relação cartular como à relação subjacente. Ao ordenar ao seu banqueiro, através de um cheque por si assinado, que pague determinada importância a um terceiro a quem entrega o cheque, o sacador reconhece dever a este uma determinada importância (obrigação pecuniária), pelo que o cheque em causa preenche todos os requisitos previstos na alínea c) do nº1 do art.46º, valendo assim como título executivo.”.
E contra-argumenta assim, ao entendimento que alguma jurisprudência vem perfilhando de que deve constar do cheque como dos outros títulos executivos a razão da ordem de pagamento: “(…) não só por essa exigência não figurar no preceito citado [art.46º-al.c)], como por ser inconciliável com o regime contido no art.458º/1,C.C., onde expressamente se prevê o reconhecimento de dívida, por simples declaração unilateral, sem indicação da respectiva causa. Isto sem prejuízo de o credor, no requerimento com que dá à execução o cheque, sob pena de indeferimento liminar (e não por inexequibilidade do título), dever alegar a pertinente causa de pedir, quando basear a sua pretensão na relação jurídica subjacente ou fundamental (mas já não quando invocar o direito cartular, por aqui bastar a subscrição do título pelo executado). Cfr. «Curso de Processo de Execução», 5ª edição, pág.35
Na verdade, nas execuções a causa petendi não é o próprio título executivo, mas antes, e de acordo com o art.498º/4 do CPC, os factos constitutivos da obrigação exequenda reflectidos, porém, no título.

Na petição executiva, a exequente elege como causa de pedir a relação cartular - caracterizada pela literalidade e abstracção - onde fundamenta o direito à prestação de quantia certa. Não deixou, porém, de igualmente invocar a obrigação donde faz derivar o direito à prestação cujo cumprimento coercivo pretende: a exequente entregou aos executados a pedido deles a quantia necessária para procederem ao cancelamento da hipoteca, por forma a ser realizada a escritura de compra e venda de imóvel hipotecado; os executados entregaram-lhe um cheque de igual valor o qual veio a ser substituído pelo cheque dos autos, cujo montante nele aposto engloba a importância necessária ao cancelamento da hipoteca acrescida de outra para despesas.

Esta causa da obrigação constituirá uma causa de pedir acessória, e foi impugnada pelos executados, ao justificarem a emissão do cheque como garantia do cumprimento da obrigação (arts.20º a 23º da contestação).

Por conseguinte, tendo a exequente invocado a causa da obrigação jurídica subjacente à emissão do cheque em presença, é ele - agora como documento particular - título executivo para os efeitos da al.c) do art.46º.

Podendo servir de base à execução, esta prosseguirá quanto a ele.

Em suma, e concluindo: pese embora o facto de o cheque dado à execução como título de crédito, enquanto tal não constitui título executivo, vale agora na base de escrito particular recognitivo ou confessório de obrigação, podendo fundamentar uma execução.

Mas atendendo ao facto de os embargantes terem também alegado, para se oporem à execução, que o cheque foi recebido como garantia, os embargos terão de prosseguir nesta parte.

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III - DECISÃO

Acorda-se, em face do exposto, em julgar procedente a apelação e consequentemente, revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que assegure a normal tramitação dos embargos para o conhecimento da oposição com aquele fundamento.

Custas pelos apelados.