Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
596/03.5TBAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
MAU ACONDICIONAMENTO DA CARGA
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
ÓNUS DA PROVA
CHAMAMENTO À AUTORIA DO SEGURADO
EFEITOS DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 12/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 19º, AL. D), DO DL Nº 522/85, DE 31/12
Sumário: I – A ratio legis do artº 19º, al. d), do DL nº 522/85, de 31/12, assenta no facto de o risco contratualmente assumido pela seguradora não se compaginar com os comportamentos do segurado tipificados na norma do artº 19º.

II – O ónus da prova cabe à seguradora, traduzindo-se num facto constitutivo do seu direito – artº 342º, nº 1, do C. Civ. - , pois o contrário equivaleria a conferir à seguradora um direito de regresso em todas as situações de danos a terceiros motivados pela queda da carga transportada, o que esvaziaria o sentido da parte final do dito preceito e, consequentemente, a garantia decorrente da transferência de responsabilidade inerente ao contrato de seguro.

III – Tendo a seguradora requerido o chamamento à autoria do seu segurado no processo instaurado pelo ofendido, e não tendo o chamado aceite esse chamamento, a sentença aí proferida constitui caso julgado quanto a ele, nos termos do artº 341º do CPC (actualmente é o incidente de intervenção principal acessória provocada, regulado nos artºs 330º a 333º do CPC), relativamente às questões de que dependa o direito de regresso.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

1.1. - A Autora – A.... (antes B... e que incorporou a C...), com sede em Lisboa, instaurou acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra o Réu – D.....
Alegou, em resumo:
A Autora celebrou com o Réu um contrato de seguro do ramo automóvel, destinado a garantir a responsabilidade civil emergente da condução do veículo automóvel de matrícula XO-65-52.
No dia 23/12/93, o Réu ao conduzir o referido veículo causou culposamente um acidente de viação, por mau acondicionamento da carga que transportava.
A Autora foi condenada a pagar ao sinistrado a respectiva indemnização, exercendo agora o direito de regresso, nos termos do art.19 d) do DL 522/85 de 31/12.
Pediu a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de 39.408,86€, acrescidos dos juros de mora, desde a citação.
Contestou o Réu, defendendo-se por impugnação, negando a culpa do acidente, e subsidiariamente a indemnização deverá ser diminuída.

1.2. - No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância, e realizado o julgamento, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, condenou o Réu a pagar à Autora a quantia de 31.449,21€, acrescidos dos juros de mora vencidos desde 1/4/2003 (data da citação (fl. 63) e vincendos até integral pagamento.

1.3. - Inconformado, o Réu recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:
1º) - A indemnização consubstanciada no direito de regresso encontra-se prescrita, pelo decurso do prazo de 3 anos ( art.498 nº2 do CC ).
2º) – A matéria de facto dada como provada nos quesitos 4º, 5º e 8º da base instrutória, confirmam que o recorrente não fora negligente, não tendo a menor responsabilidade na ocorrência do acidente.
3º) – O recorrente pela oposição ao chamamento à autoria no processo nº341/96 ( Oliveira do Bairro ) desconhecia a existência das alegações e meios de prova susceptíveis de influir na decisão do pleito, tendo havido negligência grave nos meios de produção de prova pela recorrida.
4º) – O tribunal ao dar como provado os factos constantes dos quesitos 4º, 5º e 8º que inculpabilizam o recorrente e dando por cobertos, pelo caso julgado, os pressupostos do direito de regresso, fez incorrecta aplicação da lei, violando o art.668 c) do CPC.
5º) – A sentença recorrida violou as normas dos arts.498 nº2, 303 do CC e arts.341 b) e 668 c) do CPC.
Contra-alegou a Ré, preconizando a improcedência do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).
Por seu turno, no nosso sistema processual civil, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova.
Como resulta das conclusões do recurso, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes: ( 1ª) - Nulidade da sentença; (2ª) Os pressupostos do direito de regresso; (3ª) A excepção da prescrição.
2.2. – Os factos provados:
1) - No âmbito da sua actividade, a autora celebrou com o réu um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº. 5204226, destinado a garantir a responsabilidade civil emergente da condução do veículo de matrícula XO-65-52 ( A/ ).
2) - No dia 23/12/93, cerca das 00h20, o veículo seguro (pesado de mercadorias), conduzido pelo réu, seguia pela AE1 no sentido Porto -Lisboa ( B/).
3) - Na A1, ao Km. 231,550, sentido Porto - Lisboa, encontrava-se um rolo de ferro que havia caído do veículo seguro ( C/).
4) - O veículo IX-31-34 embateu no rolo de ferro ( D/).
5) - Do embate resultaram para o veículo IX-31-34 os danos descritos no respectivo relatório de peritagem que constitui o documento de fls. 14 e cujo teor aqui se dá por reproduzido e lesões físicas no condutor do mesmo como melhor consta dos documentos de fls. 16 a 29 cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido ( E/).
6) - Tal acidente deu origem a um processo judicial, intentado pelo proprietário do IX contra a autora, que correu seus termos pelo 2° do Tribunal de Anadia, com o processo n°. 341/96 ( F/).
7) - Em tal processo, e visando o presente exercício do direito de regresso, a autora chamou à autoria o agora réu (G/).
8) Chamamento que foi deferido e, regularmente citado, o ora réu rejeitou a autoria (H/).
9) - Em 8/5/2000 foi proferida sentença em tal processo, sendo a autora condenada a pagar ao proprietário do IX a indemnização respectiva, entendendo-se que o “condutor do veículo segurado pela ré [agora autora] desrespeitou, objectivamente, a prescrição imposta pelo art. 56 do CE, omitindo a conduta por este normativo imposta, o que levou a que da carga que transportava caísse um rolo, no qual o veículo do autor [agora terceiro] veio a embater. A ré [agora autora], por outro lado, não alegou que tal omissão e consequente queda do rolo de ferro tivesse ocorrido na sequência de uma qualquer circunstância irresistível e decisivamente condicionante, em qualquer caso alheia à vontade e às possibilidades do veículo segurado. Assim, e fazendo intervir no caso todas as considerações supra desenvolvidas, deverá presumir-se a negligência do comportamento danoso, e reconhecer-se que tal presunção não se acha ilidida”. Dessa sentença consta ainda o facto g): o veículo seguro na ré circulava com a carga mal acomodada porque colocada por forma a cair já sobre a via, como efectivamente sucedeu” ( I/).
10) - A autora satisfez a referida indemnização em 7/6/2000, no total de 7.900.767$00 (= 39.408,86 €), correspondendo a 1.500.000$ por danos morais (traumatismo do joelho e ombro direitos, cirurgias, uso de canadianas, atrofia da coxa direita, incapacidade permamente geral de 25%, dores, comoção, desgosto e angústia, internamentos, observações e tratamentos, quantum doloris de grau 5 num máximo de 7, dano estético ligeiro, incapacidades temporárias durante 469 dias), 1.265.000$ por salários perdidos, 3.500.000$ por incapacidade permanente de 25%, 30.000$ por perdas de bens e 10.000$ por despesas ( J/).
11) - O veículo IX-31-34, conduzido pelo seu proprietário, embateu no rolo de ferro, que se encontrava na via por onde ele circulava, quando se estava a aproximar do veículo seguro ( r.q.1º e 2º ).
12) - No momento do embate, o veiculo seguro encontrava-se parado junto da berma da AE1, no sentido Porto – Lisboa ( r.q.4º ).
13) - E com os quatro piscas de sinalização a funcionar ( r.q.5º ).
14) - As bobinas de ferro transportadas tinham sido acondicionadas pelos trabalhadores da empresa vendedora ( r.q.8º).

2.3. - 1ª QUESTÃO:
A nulidade cominada no art.668 nº1 c) do CPC ( fundamentos em oposição com a decisão ) verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão.
A contradição lógica entre a fundamentação e a decisão, corresponde, em certa medida, à contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial ( art.193 nº2 b) CPC ).
Trata-se de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso.
Porém, esta nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo ( cf., por ex., Ac STJ de 21/5/98, C.J. ano VI, tomo II, pág.95 ).
Sucede que para justificar a nulidade, o apelante socorre-se de eventual erro de direito, com a alegação de que o tribunal considerou coberto pelo caso julgado os pressuposto do direito de regresso, contra a factualidade das respostas aos quesitos 4º, 5º e 8º, o que tanto basta para a improcedência.

2.4. - 2ª QUESTÃO:
O art. 19º alínea d) do DL nº 522/85 de 31/12 positiva o direito de regresso da seguradora “contra o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude da queda de carga decorrente de deficiência de acondicionamento “.
A ratio legis assenta no facto de o risco contratualmente assumido pela seguradora não se compaginar, mesmo do ponto de vista ético-jurídico, com os comportamentos do segurado tipificados na norma do art.19 do diploma citado, quer se adopte a teoria da “sanção civil” ( embora mitigada ), quer a do “equilíbrio contratual”.
Discute-se a quem compete o ónus da prova da culpa, consubstanciada no conhecimento da disposição da mercadoria no veículo, aquando do acidente.
Segundo determinada orientação jurisprudencial, o ónus da prova cabe à seguradora, traduzindo-se num facto constitutivo do seu direito ( art.342 nº1 do CC ), pois de outro modo, tal equivaleria a conferir à seguradora o direito de regresso em todas as situações de danos a terceiros motivados pela queda da carga transportada, esvaziando-se o sentido da parte final do preceito e, consequentemente, a garantia decorrente transferência de responsabilidade inerente ao contrato de seguro ( neste sentido, por ex., Ac do STJ de 5/3/96, Ac RP de 1/2/05, disponíveis em www dgsi.pt, Ac RL de 5/12/96, C.J. ano XXI, tomo V, pág.125 ).
Noutra perspectiva, constituindo a queda da carga na via contra-ordenação ( art.56 do CE ), tal implica a presunção de culpa de que ocorreu por deficiente acondicionamento ( cf., por ex., Ac RL de 2/3/06, www dgsi.pt ).
Porém, a discussão torna-se aqui irrelevante, como se verá, face aos efeitos do caso julgado do chamado à autoria ( art.327 nº1 do CPC, anterior à reforma de 1995 ).
A Autora foi condenada no processo nº341/96, por sentença de 8/5/2000, transitada em julgado, a pagar ao lesado ( José Carvalho da Silva ) a quantia global de 6.305.000$00, acrescida de juros de mora desde a citação, que agora reclama, por via do direito de regresso.
Com base no direito de regresso, nele requereu o chamamento à autoria do aqui Réu, que a não aceitou.
Considerou-se que aquela sentença constitui caso julgado quanto ao chamado ( aqui Réu ), nos termos do art.341 do CPC, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso ( art.332 nº4 do CPC ), pelo que “ ele é obrigado a aceitar os factos e o direito que aquela decisão judicial estabeleceu, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso - isto é, que o acidente se deu em virtude de queda de carga decorrente de deficiência de acondicionamento, como decorre do facto I) “.
As disposições legais indicadas reportam-se ao incidente de intervenção principal acessória provocada, regulada nos arts.330 a 333 do CPC, enquanto inovação da Reforma de 1995 ( aprovada pelo DL nº329-A/95 de 12/12 ), visando colmatar a lacuna decorrente da supressão do anterior incidente do chamamento à autoria ( arts.325 a 329 ).
A reforma só entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997, aplicando-se aos processos iniciados após esta data ( art.16 do DL nº329-A/95 ), e muito embora não esteja comprovada a data da propositura da acção, depreende-se pelo respectivo número de processo ( nº341/96 ), ser anterior.
Não resultando a ressalva do art.28 nº3, que pressupunha a adequação do processo por acordo das partes, significa que os efeitos do incidente do chamamento à autoria devem ser aferidos pelo CPC/61 ( na versão anterior à reforma ).
O incidente do chamamento à autoria ( art.325 do CPC ) é aquele em que o réu de determinada acção, invocando um direito de regresso ou de indemnização contra terceiro, requer a sua intervenção na causa, vinculando-o à sentença de mérito que julgue a acção procedente, para que no confronto com o chamado, este fique coberto pelo caso julgado, relativamente ao pressuposto do direito de regresso ( cf., por ex., Ac do STJ de 12/12/95, C.J. ano III, tomo III, pág.150).
O chamado não é contitular da relação material controvertida, mas sujeito passivo, no confronto do réu, de uma relação conexa com aquela.
Como elucida LOPES DO REGO, “ A utilidade do incidente está, deste modo, na extensão ao chamado da eficácia do caso julgado da sentença, a proferir na acção, obtendo o réu, no confronto do terceiro, a declaração com força vinculativa da relação material controvertida – vista agora como elemento condicionante ou prejudicial da existência do direito de regresso ou de indemnização “ ( Os Incidentes de Intervenção de Terceiros em Processo Civil, RMP ano 4º, vol.14, pág.107 ).
Quando o chamado não aceita a autoria, não chega a assumir a posição de parte processual, mas a de terceiro submetido ao caso julgado, não podendo alegar, na acção de indemnização que o réu foi negligente na defesa ( arts.327 nº1 do CPC ).
Isto significa que o Réu ficou vinculado a aceitar a sentença proferida no processo nº341/96 como prova plena dos factos nela estabelecidos relativamente ao direito definido e no que tange às questões de que depende a acção de regresso.
A solução é, de certo modo, idêntica no incidente de intervenção acessória provocada, já que por força do art.332 nº4 do CPC/95 a sentença constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no art.341, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização (cf. SALVADOR DA COSTA, Os Incidentes da Instância, pág.130 ).
Não tem, contudo, a mesma amplitude, face às excepções elencadas nas alíneas a) e b) do art.341 do CPC/95, e daí que “a produção de caso julgado perante o chamado à intervenção acessória pode, portanto, não se produzir, como se produzia sempre perante o chamado à autoria. Mas, quando se produz, o seu alcance continua a ser o mesmo, tido em conta que a função de um incidente e de outro é a mesma: tornar indiscutíveis, no confronto do chamado, os pressupostos do direito à indemnização, a fazer valer em acção posterior, que respeitem à existência e ao conteúdo do direito do autor” (cf. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol.I, pág. 590).
Sendo assim, não tinha a Autora de alegar e provar nesta acção que a queda da carga se deveu a deficiente acondicionamento, ou seja a culpa do Réu, visto que tal facto constitutivo do direito de regresso já está coberto pelo caso julgado, que obsta a nova reapreciação.
E comprovado o pagamento, estão reunidos todos os pressupostos legais do direito de regresso do art.19 d) do DL nº 522/85 de 31/12, conforme se decidiu na sentença.

2.5. – 3ª QUESTÃO:
O Réu não invocou na contestação a excepção da prescrição do direito da Autora, vindo a fazê-lo apenas em sede de recurso, com manifesta violação do princípio da preclusão ( art.489 nº1 do CPC ).
Tratando-se de questão nova, não submetida à apreciação do tribunal a quo , está inviabilizado o conhecimento pela Relação.
Em todo o caso, mesmo que o tivesse feito, jamais estaria prescrito.
O prazo de prescrição do direito de regresso é de três anos, previsto no 498 nº2 do CC, dada a natureza extracontratual da responsabilidade ( cf., por ex., Ac do STJ de 25/2/93, BMJ 424, pág.649, de 6/5/99, C.J. ano VII, tomo II, pág.84, Ac RP de 2/5/2000 , C.J. ano XXV, tomo III, pág.175, Ac RE de 2/3/2002, C.J. ano XXVII, tomo II, pág.259 ), contando-se a partir do pagamento feito pela seguradora que exerce o direito, como decorre do art.306 nº1 do CC ( cf., por ex., Ac STJ de 20/10/98, C.J. ano VI, tomo III, pág.71, de 1/6/99, BMJ 488, pág.247 ).
Ora, como o pagamento foi efectuado em 7/6/2000 e o Réu citado em 1/4/03 ( fls.63 e 64 ), é por demais evidente não estar prescrito o direito.
Em resumo, porque a sentença recorrida não violou por erro de interpretação/aplicação as normas jurídicas indicadas, improcede a apelação.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar o Réu/apelante nas custas.