Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
138/06.0TBVZL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SILVIA PIRES
Descritores: SERVIDÃO PREDIAL
CONSTITUIÇÃO DA SERVIDÃO DE POUSO OU POUSIO
Data do Acordão: 01/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 1543º E 1544º DO C. CIV..
Sumário: I – É doutrinalmente aceite que o encargo que caracteriza a servidão constitui uma restrição ou limitação ao direito de propriedade sobre o gozo do prédio serviente, inibindo o seu proprietário de praticar os actos que possam prejudicar o exercício da servidão e que esta beneficia outro prédio que deve pertencer a dono diferente.

II – A utilidade proporcionada pela servidão, que também pode ser futura ou eventual, normalmente aumenta o valor económico do prédio dominante, mas não é indispensável que esta mais-valia se verifique, bastando que daquela decorram comodidades.

Decisão Texto Integral:
Autores:A...
B...
C...
D...

Réus: E...
F...

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Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Os Autores intentaram a presente acção declarativa, com processo sumá­rio, pedindo a condenação dos Réus a:
a) Reconhecer que o seu prédio urbano – concretamente o seu muro de vedação, lado da viela e do Bacelo se acha onerado com uma servidão de pouso do travejamento da ramada de videiras, integrante do prédio dos AA e portanto a favor deste
b) A reporem, seja por substituição seja por outra forma, as medidas de segurança desse pouso ou apoio do travejamento que entretanto foi decapitado ou solto
c) A indemnizarem os Autores pelos prejuízos inerentes à reconstrução da latada se a mesma vier a cair (dano emergente) bem como da falta ou diminuição da produtividade das videiras que a (ramada), compõem, em termos de quantidade de uvas
d) a indemnizarem os Autores pelos danos morais – valor estimativo da ramada, perda dos componentes originais (esteios ou peirões), etc., – por eles sofri­dos perante a afectação da mesma ramada, ambas as indemnizações a liquidar em execução de sentença.
Para fundamentarem a sua pretensão, alegaram, em síntese:
São donos de um prédio rústico, designado de Bacelo e os Réus, por sua vez, são donos de um prédio urbano, sua casa de habitação, separando-os uma viela.
No terreno Bacelo existem plantadas videiras que estão suportadas em peirões, encimados por travessas que no seu extremo se apoiam em outros peirões colocados do outro lado da viela, no muro de vedação do prédio dos Réus, situação que existe de forma que se tenha adquirido por usucapião uma servidão que se traduz na obrigação de suportar, dar ou servir de apoio o travejamento da ramada.
Os Réus, dois meses antes da propositura da acção, encimaram o muro do seu prédio, tendo intervindo na estrutura de suporte da ramada pondo em risco a mesma.
Com tais obras, os Réus retiraram, partiram e utilizaram na reconstru­ção do muro alguns esteios, serraram vigas deixando-as com apoio e travejamento insuficientes e, levantaram outras que ficaram completamente desapoiadas.
Tais actos constituem violação do direito de servidão dos Autores e é potenciadora de prejuízos quer na estrutura e segurança da ramada, quer na dificul­dade de tratar e podar, bem como na produção das uvas.

Os Réus contestaram, alegando, em síntese:
A latada dos Autores situa-se em espaço público aéreo da viela que separa os dois prédios.
A ocupação da viela é abusiva e ilegal nos termos da Lei n.º 2110, de 19/08/1961.
A existência da dita latada não permite a constituição de servidão por usucapião, por não se tratar de servidão aparente e se tratar, ao invés uma situação de uma mera tolerância por parte dos Réus.
Concluíram pela improcedência da acção.

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Veio a ser proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:
Pelo exposto, o tribunal julga parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:
I -CONDENA-SE os RR a:
a) Reconhecer que o seu prédio urbano – concretamente o seu muro de vedação, lado da viela e do Bacelo se acha onerado com uma servidão de pouso do travejamento da ramada de videiras, integrante do prédio dos AA e a favor deste;
b) Repor, seja por substituição seja por outra forma, as medidas de segu­rança desse pouso ou apoio do travejamento que entretanto foi decapitado ou solto;
c) A indemnizar os AA pelos prejuízos inerentes à falta ou diminuição da produtividade das videiras que a (ramada), compõem, em termos de quantidade de uvas, a apurar em sede de incidente de liquidação;
II – ABSOLVENDO-OS do demais peticionado.

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Inconformados com esta decisão recorreram os Réus, apresentando as seguintes conclusões:
1 – É inadmissível a constituição da servidão por usucapião, quando a mesma assenta numa situação de ilícito administrativo e policial, uma ramada de videiras que ocupa o espaço aéreo da via pública, podendo impedir ou perturbar o trânsito de pessoas (Lei n.º 2110, de 19/8/1961 – art.º 39º- 10, 39º -11, 54º, 71º -3).
2 – É também inadmissível no caso a constituição da servidão por usu­capião, visto tratar-se de servidão não aparente, que não se revela por sinais visíveis e permanentes, uma ramada de videiras cujo travejamento está simples­mente apoiado ou encostado ao muro do prédio vizinho, sem outra ligação material e definitiva ao mesmo (art.º 1548º, C. Civil).
3 – Adicionalmente, a injunção que obriga os Réus a repor as medidas de segurança do travejamento é ininteligível nos seus termos e como tal insusceptível de execução, voluntária ou coerciva.
4 – A condenação em indemnização viola o princípio dispositivo, visto assentar em factos não alegados, reconhecendo a sentença danos reais e efectivos, quando os autores apenas alegam danos hipotéticos, virtuais ou potenciais (art.º 264º, 664º C. P. Civil).
Concluem pela procedência do recurso.

Os Autores apresentaram contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso.

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Da junção de documentos
Com a apresentação das suas contra-alegações, os Autores juntam um docu­mento.
Nos termos do disposto no art.º 523º, n.º2, do C.P. Civil, os documentos, destinados a fazer prova da acção, podem ser juntos até ao encerramento da discus­são em 1ª instância.
Manifestamente esse momento processual estava ultrapassado aquando da junção em apreço.
Por sua vez, dispõe o art.º 706º, do C. P. C.:
1 – As partes podem juntar os documentos às alegações, nos casos excepcionais a que se refere o art.º 524º ou no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância.
2 – Os documentos supervenientes podem ser juntos até se iniciarem os vistos aos juízes; até esse momento podem ser também juntos os pareceres de advogados, professores ou técnicos.
3 – É aplicável à junção de documentos e pareceres, com as necessárias adaptações, o disposto nos art.º 542º e 543º, cumprindo ao relator autorizar ou recusar a junção.
Da análise do documento junto pelos recorridos não se constata a neces­sidade da sua junção resultar do julgamento efectuado na 1ª instância, nem nada foi alegado quanto à sua superveniência.
Face ao exposto, não se admite a junção do documento, não sendo o mesmo considerado na decisão do presente recurso.

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1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações dos recorrentes, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) É inadmissível a constituição da servidão em cujo reconhecimento os Réus foram condenados?
b) A condenação dos Réus a repor, seja por substituição seja por outra forma, as medidas de segurança desse pouso ou apoio do travejamento que entre­tanto foi decapitado ou solto, é ininteligível?
c) Não foram alegados factos que permitam a condenação dos Réus a indemnizarem os Autores?

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2. Os Factos

Encontram-se provados os seguintes factos:
[…]
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3. O Direito aplicável

3.1 Da constituição da servidão de pouso ou apoio

A definição de servidão predial é-nos dada pelo art.º 1543º, do C. Civil do seguinte modo:
Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.
A partir desta definição tem vindo a ser doutrinariamente aceite que o encargo que caracteriza a servidão constitui uma restrição ou limitação ao direito de propriedade sobre o gozo do prédio serviente, inibindo o seu proprietário de praticar os actos que possam prejudicar o exercício da servidão e que esta beneficia outro prédio que deve pertencer a dono diferente SANTOS JUSTO, in Direitos Reais, pág. 403, ed. 2007, Coimbra Editora..
De acordo com o disposto no art.º 1544ª, do C. Civil:
Podem ser objecto de servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor.
A utilidade proporcionada pela servidão, que também pode ser futura ou eventual, normalmente, aumenta o valor económico do prédio do dominante, no entanto não é indispensável que esta mais-valia se verifique, bastando que daquela decorram comodidades, o que se verifica, por exemplo, no caso das servidões de vistas ou de não edificação SANTOS JUSTO, ob, cit., pág. 409., e que a mesma incida sobre um prédio em benefício de outro.
Não se encontram tipificadas as faculdades atribuíveis através do direito de servidão no uso de utilidades do prédio serviente, pelo que é possível falar-se numa atipicidade do conteúdo da servidão.
O C. Civil, nos artigos 1547º a 1549º, refere as várias formas da consti­tuição das servidões.
Uma dessas formas de constituição é por usucapião – art.º 1547º, n.º 1, do C. Civil –, sendo necessário que exista uma situação possessória correspondente ao exercício de um direito de servidão por um determinado período de tempo – art.º 1287º, do C. Civil.
Os art.º 1293º, a) e 1548º, n.º 1, do C. Civil impedem que se constituam por usucapião servidões não-aparentes, sendo estas as que não se revelam por sinais visíveis e permanentes – art.º 1548º, n.º 2, do C. Civil.
No caso em análise os Autores são donos de um prédio no qual têm plantada uma videira cuja ramada se estende sobre uma viela que separa o prédio dos Autores de um prédio dos Réus, amarrada a traves apoiadas em peirões coloca­dos no prédio dos Autores e no muro de vedação contíguo àquela viela existente no prédio dos Réus.
Não restam dúvidas que o prédio dos Réus, ao facultar aquele apoio das traves no muro que se encontra nele implantado proporciona ao prédio dos Autores uma utilidade constituída pelo valor económico que é possível retirar da produção de uvas existentes nas ramadas amarradas naquelas traves.
Quanto à constituição de um direito de servidão que tenha por conteúdo esta utilidade dos factos provados – enumerados em VIII, X, XI, XII, XIII, XIV e XV –, resulta a sua aquisição originária por usucapião.
Invocam os recorrentes que neste caso não é possível este modo de aqui­sição do direito de servidão, uma vez que estamos perante uma servidão não apa­rente, uma vez que não se revela por sinais visíveis e permanentes.
Ora, resultou provado que, durante dezenas de anos, as travessas ou vigas de madeira, onde estavam amarradas as videiras que aereamente cruzavam a viela, assentavam no prédio dos Autores em peirões e apoiavam-se no outro seu extremo, do outro lado da viela, no muro de vedação do prédio dos Réus, assen­tando duas delas, concretamente, numa macieira, que foi cortada, em dois cepos, uma outra em duas pedras de suporte, e algumas outras no próprio muro (respostas aos quesitos 2º e 3º).
Esta situação manteve-se à vista de toda a gente e nomeadamente dos ante possuidores do prédio dos Réus que sempre ali – no muro – viram apoiadas e fixadas as traves onde se amarravam os arames e as videiras, sem que nunca se suscitassem dúvidas, questões ou oposição por parte de quem quer que fosse, incluindo os Réus (respostas aos quesitos 4º e 5º).
Os sinais que relevam para a caracterização de uma servidão como apa­rente devem ser elementos materiais exteriores, inequivocamente indicativos da existência duma situação fáctica de dependência do prédio serviente em relação ao dominante. Devem ser visíveis, isto é ser facilmente observáveis por quem frequente o local onde se situam os prédios em causa, de modo a que a referida situação possa ser facilmente conhecida por todos os interessados, nomeadamente o proprietário do prédio serviente.
A existência destes sinais também deve ser permanente. Os sinais não têm de ser forçosamente os mesmos durante todo o tempo da posse. A existência de sinais, que podem mudar, é que tem de manter-se durante esse tempo de modo a revelar que a referida situação possessória se prolonga pelo tempo necessário à sua aquisição por usucapião.
Considerando que os actos de posse correspondentes ao exercício de um direito de servidão são de curta duração, estas exigências pretendem evitar a ocor­rência de situações de clandestinidade, que possam escapar à observação do pro­prietário do prédio serviente, e permitem uma distinção clara entre meros actos de aproveitamento de atitudes de tolerância, cortesia ou obsequiosidade e o exercício de actos de posse, correspondentes a um direito de servidão.
Dos factos provados resulta inequívoco que a servidão que onera o prédio dos Réus se manifesta por sinais permanentes e visíveis, consistentes no apoio, evidente, há dezenas de anos, do travejamento da ramada no muro de vedação do prédio dos Réus assentando duas delas, concretamente, numa macieira, que foi cortada, em dois cepos, uma outra em duas pedras de suporte, e algumas outras no próprio muro. Estes sinais são permanentes, observáveis e correspondentes ao exercício de um direito de servidão.
Caracterizada que está a servidão como aparente, falece o argumento dos Réus na pretensão de verem revogada a decisão recorrida, com o fundamento da impossibilidade da constituição daquela servidão por usucapião.
Defendem, ainda, os Réus a impossibilidade de reconhecimento daquela servidão, argumentando que à mesma está subjacente uma situação de ilícito admi­nistrativo, uma vez que a ramada em questão ocupa abusivamente o espaço aéreo da via pública.
Este argumento não merece qualquer acolhimento, porquanto não cabe aos Réus a defesa dos eventuais direitos de outros proprietários, sejam eles particu­lares ou entes públicos.
Se o gozo duma utilidade de um prédio serviente violar o direito de pro­priedade de terceiro isso não é impeditivo da constituição do respectivo direito de servidão, podendo apenas o seu exercício ficar prejudicado pela reacção desse terceiro àquela violação.
Não tendo os Réus legitimidade para exercitar essa reacção, também não podem opor à constituição do direito de servidão a violação de direitos de terceiros, mesmo que estes sejam entes públicos.

3.2 Da ininteligibilidade da condenação
Alegam os Réus que a decisão que os condena a repor, seja por substitui­ção seja por outra forma, as medidas de segurança desse pouso ou apoio do trave­jamento que entretanto foi decapitado ou solto, é ininteligível, uma vez que da mesma não resulta quais as medidas de segurança que deverão ser repostas ou substituídas, determinando, assim, a sua impossibilidade de execução, quer por si, quer por terceiros.
A decisão revela-se ininteligível quando da mesma não se depreenda o objecto e amplitude da condenação.
Ora a condenação na reposição no prédio dos Réus dos apoios que foram retirados às traves onde se encontravam amarradas as videiras, seja por substituição seja por outra forma, é perfeitamente inteligível, exigindo dos Réus a realização das obras necessárias à existência de apoios no seu prédio para as traves que os perde­ram na sequência do alteamento do seu muro, tendo os Réus liberdade para optarem pela reposição dos apoios anteriores ou pela colocação de novos apoios.
Assim, conclui-se pela inteligibilidade da decisão.

3.3 Da condenação em indemnização
A decisão recorrida condenou os Réus a indemnizar os Autores pelos prejuízos inerentes à falta ou diminuição da produtividade das videiras que a (ramada), compõem, em termos de quantidade de uvas, a apurar em sede de inci­dente de liquidação.
Na perspectiva dos Réus esta condenação carece de fundamento, justifi­cando esta sua posição com o facto de que não terem sido alegados os prejuízos que lhe servem de base.
Os Autores peticionaram a condenação dos Réus a indemnizá-los pelo prejuízos inerentes à reconstrução da latada se a mesma viesse a cair, bem como à falta ou diminuição da produtividade das videiras que compõem a ramada em causa, em termos de quantidade de uvas.
No que respeita a este pedido considerou a decisão recorrida que não são indemnizáveis os prejuízos que advenham da eventualidade da latada cair, por serem danos hipotéticos. Já quanto à indemnização pela da falta ou diminuição de produti­vidade das videiras foi considerado um dano indemnizável, tendo sido a sua quanti­ficação relegada para incidente de liquidação.
Analisando os factos que resultaram provados constatamos que quanto a este aspecto se provou que a actuação dos Réus colocou em causa a estrutura e segurança da ramada em si mesma, dificultando o seu tratamento, poda e produção de uvas por ela produzida.
Ora, deste facto não se pode, sem mais, concluir que tenha efectivamente ocorrido diminuição da produção das videiras ou ausência, mas só que aquela situação era idónea a que tal ocorresse.
O art.º 661º, n.º 2, do C. P. Civil, permite a condenação ilíquida, quando sendo certa a obrigação inexistam elementos para fixar o seu objecto ou quantidade. No caso dos autos, não se provou a ocorrência de qualquer dano originado na conduta dos Réus e relacionado com a produção de uvas, mas só a possibilidade do mesmo se vir a verificar, pelo que não estamos perante um dano futuro previsível, mas simplesmente possível, não tendo, os Autores, neste momento, direito à respec­tiva indemnização.
Resultando da fundamentação acima explanada que os Autores não têm direito a ser indemnizados pelos Réus em quantia que se viesse a liquidar posterior­mente, pela eventual diminuição ou falta de produtividade das videiras, deve o recurso interposto ser julgado parcialmente procedente, revogando-se o conteúdo da alínea c), do n.º I, da parte decisória da sentença recorrida, e confirmando-se o demais decidido.

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Decisão

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto e, em consequência revoga-se o conteúdo da alínea c), do n.º I, da parte decisória da sentença recorrida, confirmando-se o demais decidido.

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Custas do recurso pelos Autores, na proporção de 1/3, e pelos Réus, na pro­porção de 2/3.

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Coimbra, 13 de Janeiro de 2009.