Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
287/20.2PBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: VÍCIOS DA DECISÃO
CRIME DE FURTO QUALIFICADO
VALOR ELEVADO
TRANSACÇÃO QUANTO AO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
INSTRUMENTOS
PRODUTOS OU VANTAGENS DO CRIME
RESTITUIÇÃO DA COISA OU DO ANIMAL FURTADOS
REPARAÇÃO INTEGRAL DOS PREJUÍZOS CAUSADOS
EXTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL
Data do Acordão: 05/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 109.º, N.ºS 1, 2 E 3, 110.º, N.º 1, ALÍNEA B), N.º 4 E N.º 6, 202.º, ALÍNEA A), 203.º, N.º 1, 204.º, N.º 1, ALÍNEA A), E 206.º, N.ºS 1 E 2 DO CÓDIGO PENAL

ARTIGOS 186.º, N.º 1, 410.º, N.º 2, E 412.º, N.ºS 3, 4 E 6, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – A transacção feita entre as partes civis relativamente ao objecto do pedido de indemnização civil é insusceptível de alterar a qualificação jurídica da conduta criminosa.

II – A restituição da coisa ou animal furtados ou ilegitimamente apropriados e a reparação integral do prejuízo causado nunca determina a imputação de um crime diverso, nem a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, mas sim a extinção da responsabilidade criminal do autor de crimes de furto, verificados determinados pressupostos.

III – Para efeitos de extinção da responsabilidade criminal, existe restituição da coisa quando o autor do furto procede voluntariamente à sua entrega ao legítimo possuidor, no estado em que se encontrava no momento da prática do crime, o que significa que quando a coisa furtada é apreendida pelo OPC e, depois, restituída ao ofendido não existe restituição para os efeitos previstos no artigo 206.º, n.º 1, do Código Penal.

IV – Para efeitos do disposto no artigo 206.º do Código Penal, a reparação que a lei prevê é a do prejuízo em sentido estrito, não a reparação do dano em sentido amplo englobando, para além daquele, a restituição da coisa.

V – Instrumentos do crime são as coisas ou objectos usados ou destinados a serem usados pelo agente na prática do crime; produtos do crime são as coisas ou objectos gerados ou produzidos pela prática do crime; vantagens do crime são todos os benefícios patrimoniais resultantes da prática do crime, todo o enriquecimento patrimonial do agente fruto do crime, designadamente os objectos subtraídos no âmbito de um crime de furto.

VI – A perda de instrumentos, produtos ou vantagens do crime não é uma pena acessória, porque não depende da culpa do agente, nem é uma medida de segurança, pois não radica na perigosidade deste, é sim uma providência sancionatória de natureza análoga à medida de segurança

VII – A perda de instrumentos, produtos ou vantagens, regulada nos artigos 109.º e seguintes do Código Penal, funda-se exclusivamente em necessidades de prevenção, mas colocadas em distintas perspectivas: os instrumentos e produtos, visando acautelar a perigosidade imediata dos objectos usados na prática do crime e dos que, por esta prática, foram produzidos; as vantagens, visando afirmar o velho adágio de que o crime não compensa, mediante a supressão, no património do agente do crime, dos benefícios que logrou obter com a sua prática.

VIII – Considerando o disposto no artigo 110.º, n.ºs 1, al. b), 4 e 6, do Código Penal, se as vantagens do crime foram apropriadas em espécie, v.g. apreendidas pelo OPC, há lugar à declaração do seu perdimento a favor do Estado.

IX – A restituição ao ofendido dos bens que lhe haviam sido furtados impede a declaração de perdimento a favor do Estado enquanto vantagem do crime, seja porque, como dispõe o n.º 6 do artigo 110.º do Código Penal, essa declaração não pode prejudicar os direitos do ofendido, seja porque a razão de política criminal que preside à declaração de perda das vantagens do crime já se encontra assegurada, pois a vantagem alcançada desaparece com a restituição dos bens furtados.

X – No caso da restituição dos bens ao ofendido e quando não for possível apropriar em espécie as vantagens do crime, a declaração do seu perdimento é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.

XI – A quantia obtida pelos arguidos com a venda de bens furtados constitui vantagem indirecta obtida com a prática do crime, sujeita a declaração de perda a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, mas não sendo ela apropriável em espécie, dada a sua natureza fungível, a perda é substituída pelo pagamento do respectivo valor ao Estado, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Juízo Local Criminal da Covilhã, o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção tribunal singular, dos arguidos AA e BB, ambos com os demais sinais nos autos, imputando-lhes a prática, em autoria material, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º, nºs 1, a) e f) do C. Penal.

O assistente CC deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 15100, sendo € 14100 a título de danos patrimoniais e € 1000 a títulos de danos não patrimoniais, sofridos, acrescida de juros legais até integral pagamento.

Por sentença proferida na audiência de julgamento de 7 de Novembro de 2022 [acta de fls. 247 e seguintes], foi homologada a transacção relativa ao pedido de indemnização civil [o demandante reduziu o pedido para € 1500, da qual os demandados se reconheceram devedores e se comprometeram a pagar em trinta dias].

Na audiência de julgamento o ofendido manifestou expressa oposição a que fosse arbitrada, nos termos do disposto nos arts. 82º-A do C. Processo Penal e 21º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, quantia a ser paga pelo arguido, a título de reparação pelos danos sofridos.

Na audiência de julgamento de 14 de Novembro de 2022 [acta de fls. 253 e seguintes], o assistente declarou desistir da queixa, caso a mesma fosse relevante, e os arguidos declararam não se opor à mesma.

Por sentença de 21 de Novembro de 2022 foram os arguidos condenados, pela prática do imputado crime de furto qualificado, a arguida, na pena de oitenta dias de multa à taxa diária de € 5, perfazendo a multa global de € 400, e o arguido na pena de noventa dias de multa à taxa diária de € 6, perfazendo a multa global de € 540.

Mais foi declarado perdido a favor do Estado o montante global da vantagem patrimonial obtida pelos arguidos com a prática do crime, e estes condenados no pagamento ao Estado da quantia de € 4500.


*


            Inconformados com a decisão, recorreram os arguidos, formulando no termo da motivação, as seguintes conclusões:

              

III - Resulta do texto da, aliás, douta sentença judicial recorrida que o assistente foi reparado do prejuízo causado pelos arguidos, em sede de PIC, tendo, aliás, o assistente manifestado a sua concordância em desistir do procedimento criminal sem oposição dos arguidos.

IV - Ora a reparação do prejuízo causado ao assistente não foi levada pelo tribunal "a quo" aos factos provados pelo que se impõe um aditamento à matéria de facto nos seguintes termos: "Os arguidos e assistentes transacionaram sobre o PIC obrigando-se os arguidos a pagar aos assistentes, a título de reparação, a quantia de 1.500,00 (mil e quinhentos euros)".

V - A sentença judicial recorrida padece de contradição insanável entre os factos dados provados e a fundamentação de direito pois aplicou o instituto penal da perda de bens/vantagens a favor do Estado no montante de 4.500,00 € quando nos pontos 7º e 10º do probatório resulta que a vantagem/lucro dos arguidos foi de 1.390,00 €.

VI - Sem prescindir, esta vantagem/lucro, também, não é devida ao Estado pois os arguidos, em sede de PIC, repararam o assistente em valor superior ao obtido com a venda dos bens não recuperados, isto é, em 1.500,00 € (Mil e Quinhentos Euros) pelo que a aplicação do instituto penal da perda de bens/vantagem não tem sentido jurídico em face da fatualidade dada como provada e em face da insuficiência da matéria de facto, supra assinalada, quanto ao valor da reparação do assistente, em sede de PIC.

VII - A sentença judicial padece, ainda, de erro de direito, pois condenou os arguidos pela agravante da alínea a) do nº 1 do artigo 204º do Código Penal quando a mesma não se verifica.

 VIII - A sentença judicial padece, ainda, de erro de direito por o tribunal "a quo" não ter feito uso dos seus poderes oficiosos a que alude o artigo 358º nº 3 do Código do Processo Penal remetendo a qualificação jurídica dos factos da acusação para a previsão normativa do artigo 206º do Código Penal almejando a extinção do procedimento criminal correspondendo à vontade do assistente e arguidos.

IX - A douta sentença judicial, sempre com o devido respeito, violou por deficiente interpretação os artigos 203, nº 1, 204º nº 1, alínea a), 206º, todos do Código Penal e 358º nº 3 do Código do Processo Penal.


*

            O recurso foi admitido.


*

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público … e concluiu pelo não provimento do recurso.


*

*


Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, … e concluiu pela parcial procedência do recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


*

*


            Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


*

*

*

*


II. FUNDAMENTAÇÃO

… atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A existência dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

- Erro de direito, quanto à manutenção da circunstância qualificativa prevista na alínea a), do nº 1 do art. 204º do C. Penal, por ter deixado de se verificar o «valor elevado», dada a reparação integral do assistente quanto aos bens não recuperados;

- Erro de direito, quanto a não ter o tribunal feito uso dos poderes conferidos pelo art. 358º, nº 3 do C. Processo Penal, com a convocação do disposto no art. 206º do C. Penal e consequente extinção do procedimento criminal;

- Erro de direito, na aplicação do instituto da perda de vantagens, dada a reparação do assistente, relativamente ao valor dos bens não recuperados. 


*


            Para a resolução destas questões, importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “(…).

1. Em data não concretamente apurada, a arguida AA cedeu a CC, por contrato verbal e contornos não concretamente apurados, um armazém sito na Travessa ..., nesta cidade ....

2. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 30-06-2020, a arguida AA, sem autorização de CC, procedeu à substituição da fechadura do referido armazém e tomou posse efectiva do mesmo.

3. No interior do referido armazém, a arguida e o arguido, seu filho BB, depararam-se com diverso material do ofendido CC, de valor global superior a € 5.100,00 (cinco mil e cem euros), que logo decidiram fazer seu, designadamente: a) Diversos acessórios em PVC e tubos; b) Ferro galvanizado; c) Parafusos, anilhas e porcas; d) Duas bancadas de trabalho, uma fixa com 5 metros, e outra de correr com 2x3 metros; e) Dois martelos pneumáticos; f) Um foco exterior; g) Uma estrutura em ferro; h) Dois móveis de arrumações; i) Duas prateleiras em ferro; j) Uma máquina de caleiros; k) Uma serra circular; l) Um berbequim de coluna; m) Uma mala bagageira; n) Uma janela com quatro portas em alumínio.

4. Posteriormente, em data anterior a 30-06-2020, os arguidos venderam a DD os sobreditos objectos, a que foi atribuído o valor global de € 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros).

5. Em 30-06-2020, DD anunciou para venda, no site OLX: a) uma máquina de caleiros, pelo preço de € 1.000,00; b) uma serra circular, pelo preço de € 210,00; c) um berbequim de coluna, pelo preço de € 125,00; d) uma mala bagageira, pelo preço de € 55,00.

6. Quando DD procedeu ao levantamento dos objectos que lhe foram vendidos pelo arguido BB, existiam ainda outros objectos no seu interior.

7. Na sequência da realização, a 15.04.2021, de busca domiciliária à residência e garagem dela dependente e por ele acessível, do comprador DD, bem como busca não domiciliária ao armazém sito na Travessa ... (debaixo da Ponte Pedonal da ...), propriedade dos arguidos, foram encontrados e entregues ao ofendido os objectos melhor descritos, respetivamente, a fls. 87 e a fls. 106, relações que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais.

8. Os arguidos agiram com o propósito concretizado de fazer seus os objectos que encontraram no interior do sobredito armazém, que se encontrava fechado, dando-lhes o destino que entenderam, sabendo que os mesmos não lhes pertenciam, que tinham valor superior a 5.100,00 €, e que actuavam contra a vontade e sem autorização do seu legítimo proprietário.

9. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente e sabia que a sua conduta era, como é, prevista e punível por lei como crime.

10. Não foi possível recuperar os objetos vendidos pelos arguidos a DD e entretanto transaccionados por este a favor de terceiros, no valor de 1.390,00 €, cf. melhor descrito no art.º 5.º supra, porque entretanto foram os mesmos alienados.

(…)”.

B) Inexistem factos não provados, e dela consta a seguinte fundamentação, quanto à perda de vantagens:

            “(…).

               Estabelece o artigo 110.º do Código Penal, no seu n.º 1, que “São declarados perdidos a favor do Estado: b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem”.

Por sua vez, o n.º 4 desse mesmo artigo preceitua que se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. Tudo isto, ressalva o n.º 6 da mesma disposição legal, sem prejuízo dos direitos do ofendido.

Nesse mesmo sentido, referem Vítor Sá Pereira e Alexandre Lafayette (in Código Penal anotado e comentado, páginas 299/300), “aqui está em causa a prevenção da criminalidade em globo, à luz da ideia de que o crime não compensa (…) a perda de vantagem não é uma pena acessória. É antes uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança”.

Inexistindo a possibilidade da apropriação em espécie de valor correspondente às vantagens (lucro) obtidas no montante de € 4.500,0 (valor pelo qual os arguidos venderam o material subtraído) tendo nessa medida obtido um lucro/vantagem com a prática do crime sub judice), a regra é que devem os arguidos serem condenados a pagar ao Estado o valor daquelas vantagens directas.

Impõe-se, pois, ao abrigo das normas legais acima aludidas, declarar perdida a referida vantagem patrimonial ilegítima, condenando-se os arguidos a pagar ao Estado a quantia de 4.500,00 € (quatro mil e quinhentos euros).

(…)”.


*

*

*


            Da existência dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão

            1. Alegam os recorrentes – conclusões II a V – que resultando do texto da sentença em crise que, em sede de pedido de indemnização civil, repararam os danos sofridos pelo assistente, o qual manifestou concordância em desistir da queixa, desistência a que não se opuseram, esta reparação deveria ter sido levada à matéria de facto provada nos seguintes termos, «Os arguidos e assistente transacionaram sobre o PIC obrigando-se os arguidos a pagar ao assistente, a título de reparação, a quantia de € 1500.». No corpo da motivação, os recorrentes densificaram a alegação, dizendo, sob o título, «Da insuficiência da matéria de facto por omissão de facto relevante», que a transacção pela quantia de € 1500, a título de reparação do prejuízo causado, enquanto facto, é absolutamente relevante para afastar a aplicação da circunstância agravante prevista na alínea a), do nº 1 do art. 204º do C. Penal, pelo que existe insuficiência da matéria de facto, a corrigir.

Mais alegam que existe contradição insanável entre os pontos 7 e 10 dos factos provados da sentença recorrida, dos quais resulta que a vantagem que obtiveram com a prática do furto foi de € 1390, e a sua fundamentação quanto à aplicação do instituto da perda de vantagens, que foi fixada no montante de € 4500. No corpo da motivação densificaram a alegação, afirmando resultar dos referidos pontos de facto provados que parte significativa dos objectos furtados foi encontrada e entregue, que vantagem obtida com a prática do crime foi a de € 1390, correspondentes aos bens que venderam a DD, não podendo existir uma dupla vantagem do Estado, ao receber mais do que o valor obtido pela venda dos bens não recuperados.

É sabido que o C. Processo Penal coloca à disposição dos sujeitos processuais dois distintos instrumentos para sindicar a matéria de facto fixada na sentença, os vícios da decisão, previstos nas alíneas a), b) e c), do nº 2, do seu art. 410º, e a impugnação ampla da matéria de facto, essencialmente regulada no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma legal. E como vemos, nos autos, os recorrentes lançam do primeiro.

Podemos dizer que os vícios da decisão consubstanciam defeitos lógicos da sentença [e não do julgamento], razão pela qual, e tal como impõe a lei (corpo do nº 2 do referido art. 410º), a sua evidenciação só possa ser feita pela análise do respectivo texto, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não sendo, pois, admissível para este efeito, recorrer a elementos alheios à sentença, mesmo que constem do respectivo processo.

O regime legal dos vícios da decisão não contempla a reapreciação da prova [contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto], estando a actuação do tribunal ad quem, limitada à detecção do vício e, não sendo possível saná-lo, a ordenar o reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (art. 426º, nº 1 do C. Processo Penal).

Refira-se, ainda que, é oficioso o conhecimento pelo tribunal de recurso dos vícios decisórios – Acórdão nº 7/95, 19 de Outubro (DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995).

2. Existe a invocada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alínea a), do nº 1, do art. 410º do C. processo Penal) quando a factualidade provada não suporta nem permite, devido aos seus limites e exiguidade, a concreta decisão de direito proferida. Dito de outro modo, ocorre este vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada, designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não averiguou toda a matéria contida no objecto do processo relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal, portanto, à decisão justa que deveria ter sido proferida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 74 e seguintes e Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Volume 3, 3ª Reimpressão, 2020, pág. 324 e seguintes). O vício, pressupõe, pois, a existência de uma lacuna no apuramento da matéria de facto relevante para ser alcançada a justa decisão de direito.

Os recorrentes suportam a invocação do vício na relevância que entendem caber ao objecto da transacção que efectuaram com o assistente, relativamente ao pedido de indemnização civil, na medida em que tal transacção, em seu entendimento, desqualifica o furto que praticaram, no que respeita à circunstância da alínea a), do nº 1 do art. 204º do C. Penal, devendo, em consequência, ser aditado um novo factos aos factos provados, com a seguinte redacção: Os arguidos e o assistente transaccionaram sobre o pedido de indemnização civil obrigando-se os arguidos a pagar ao assistente, a título de reparação, a quantia de € 1500.

Aos recorrentes foi imputada a prática – em co-autoria – de um crime de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º, nº 1, a) e f) do C. Penal.

O furto, que tutela o bem jurídico, propriedade, é um crime comum, de dano e de resultado, que tem como elementos constitutivos do tipo objectivo, a subtracção de coisa móvel ou animal alheios, para o agente ou para terceiro, e como elementos do tipo subjectivo, o dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, e o dolo específico, a ilegítima intenção de apropriação.

O furto consuma-se quando o agente cria sobre a coisa ou animal um poder de facto exclusivo, pondo termo (ablatio) ao domínio que até então era exercido pelo anterior possuidor (cfr. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II; 1999, Coimbra Editora, pág. 50, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, 2015, pág. 796 e seguintes e José Damião da Cunha, Direito Penal Patrimonial, 1ª edição, 2017, Universidade Católica Editora Porto, pág. 83 e seguintes).

Pratica um furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º, nº 1, a) do C. Penal, quem furtar coisa móvel ou animal alheios de valor elevado.

Por sua vez, dispõe o art. 202º, a) do mesmo código que se considera valor elevado, aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto, estando o valor da unidade de conta fixado [desde Abril de 2009] em € 102.

Assim, e de acordo com o determinado na lei, o valor a atender para efeitos da verificação da circunstância qualificativa é o que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto, portanto, no momento da consumação do crime.

Resulta dos factos provados – e não impugnados – da sentença recorrida, que em data não concretamente apurada, mas anterior a 30 de Junho de 2020, a recorrente procedeu à substituição da fechadura de um armazém que, tempos antes, havia acordado ceder ao assistente CC, substituição que fez contra a vontade deste, deste modo reavendo o domínio sobre o armazém (pontos 1 e 2), que tendo entrado no armazém, os recorrentes depararam com diverso material do assistente, com valor global excedendo € 5100, material que logo decidiram fazer seu, que algum tempo depois, mas ainda antes de 30 de Junho de 2020, os recorrentes, desse material, venderam a DD, acessórios de PVC e tubos, ferro galvanizado, parafusos, anilhas e porcas, duas bancadas de trabalho, dois martelos pneumáticos, um foco exterior, uma estrutura em ferro, dois móveis de arrumações, duas prateleiras em ferro, uma máquina de caleiros, uma serra circular, um berbequim de coluna, uma mala bagageira e uma janela com quatro portas, em alumínio, pelo preço de € 4500 (pontos 3 e 4), que em 30 de Junho de 2020, o comprador DD anunciou no site OLX, a venda das referidas máquina de caleiros, serra circular e mala bagageira e o referido berbequim de coluna (ponto 5) e que os recorrentes agiram de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de fazerem seus os objectos que encontraram no interior do armazém, dando-lhes o destino que entenderam, sabendo que não lhes pertenciam, que tinham valor superior a € 5100, que actuavam contra a vontade e sem autorização do dono e que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei (pontos 8 e 9). 

Ainda que não esteja apurada a concreta data em que os recorrentes, após ser substituída a fechadura do armazém, acederam ao seu interior e concretizaram a apropriação dos bens que aí se encontravam, pertencentes ao assistente, ela terá ocorrido meses antes da única data concretizada, a de 30 de Junho de 2020, pelo que, o valor da unidade de conta, na data da consumação do crime seria o de € 102, o que vale dizer que, nesta data, valor elevado, para efeitos do preenchimento da circunstância qualificativa, seria o de € 5100,01.

Deste modo, tendo os bens que se encontravam no armazém, e de que os recorrentes se apoderaram, como provado, valor superior a € 5100, é evidente que se encontra preenchida a previsão da alínea a), do nº 1 do art. 204º do C. Penal.

A circunstância de, já no decurso da audiência de julgamento, as partes civis terem transacionado relativamente ao objecto do pedido de indemnização civil não é susceptível de alterar a qualificação jurídica da conduta dos recorrentes. Com efeito, a reparação, total ou parcial, dos danos causados, pelo autor do furto não diminui o valor das coisas furtadas.

 Em conclusão, atenta a perspectiva em que os recorrentes colocaram a questão da existência do vício em análise, sendo a transacção efectuada entre eles e o assistente insusceptível de modificar a qualificação jurídico-penal das suas provadas condutas, o objecto daquela – aliás, plenamente provado pelo teor da acta da audiência de julgamento de 7 de Novembro de 2022 [fls. 247 e seguintes] – é irrelevante para a decisão de direito proferida, inexistindo, consequentemente, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

3. A invocada contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, contemplada na alínea b), do nº 2, do art. 410º do C. Processo Penal, pode apresentar-se sob distintas vestes, designadamente, como oposição entre factos provados, como oposição entre factos provados e factos não provados, como oposição entre a matéria de facto e a respectiva motivação de facto, como oposição entre argumentos da própria motivação de facto, ou oposição entre a fundamentação e a decisão.

In casu, os recorrentes sinalizaram o vício na existência de contradição entre o teor dos pontos 7 [Na sequência da realização, a 15.04.2021, de busca domiciliária à residência e garagem dela dependente e por ele acessível, do comprador DD, bem como busca não domiciliária ao armazém sito na Travessa ... (debaixo da Ponte Pedonal da ...), propriedade dos arguidos, foram encontrados e entregues ao ofendido os objectos melhor descritos, respetivamente, a fls. 87 e a fls. 106, relações que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais.] e 10 dos factos provados [Não foi possível recuperar os objetos vendidos pelos arguidos a DD e entretanto transaccionados por este a favor de terceiros, no valor de 1.390,00 €, cf. melhor descrito no art.º 5.º supra, porque entretanto foram os mesmos alienados.] e o segmento da fundamentação de direito da sentença recorrida, que tendo considerado inexistir a possibilidade de apropriação em espécie de valor correspondente à vantagem de € 4500, obtida pelos recorrentes através da venda dos bens subtraídos, entendeu deverem, por isso, ser condenados no pagamento ao Estado, de quantia equivalente àquela vantagem, com o entendimento de que, tendo sido recuperados todos os bens do assistente de que se apropriaram, com excepção daqueles que venderam a DD e que este, por sua vez, vendeu a terceiros, no valor de € 1390, então a vantagem que obtiveram com a prática do furto cifra-se, apenas, em € 1390.

Com ressalva do respeito devido, não assiste razão aos recorrentes. Explicando.

            Resultou provado (pontos 3 e 4 dos factos provados) que os recorrentes venderam por € 4500 a DD, diversos objectos pertencentes ao assistente, dos quais se haviam apoderado. Resultou igualmente provado (pontos 7 e 10) que os objectos pertencentes ao assistente, apropriados pelos recorrentes, foram recuperados pelo OPC, com excepção dos que, entretanto, haviam sido vendidos pelo comprador DD, os quais tinham o valor de € 1390. Os bens não recuperados são os que, conforme consta do ponto 5 dos factos provados, foram postos à venda no site OLX, por preços que totalizam aquele valor.

Assim, sendo inquestionável que os recorrentes venderam parte dos bens furtados, por € 4500, é esta quantia, evidentemente, vantagem por eles obtida com a prática do crime. Por outro lado, os recorrentes incorreram em manifesto equívoco, ao afirmarem que resultou provado (ao que parece, do ponto 7), que a vantagem que obtiveram, face à recuperação de parte significativa dos bens apropriados, foi a de € 1390, correspondente aos bens vendidos a um terceiro, de nome DD, pois, como supra se deixou exposto, assim não foi.

Em conclusão, inexiste contradição e, muito menos, insanável, entre a matéria que consta dos pontos 7 e 10 dos factos provados e o segmento acima identificado da fundamentação de facto, relativo à perda de vantagem [questão distinta, que nada tem a ver com o vício invocado, por ser apenas de direito, e da qual trataremos infra, é a de saber se a declaração de perda de vantagem deve ser feita pelo montante decidido].

4. Finalmente, porque, conforme já referido, é oficioso o conhecimento dos vícios decisórios, cumpre dizer que não detectámos na sentença recorrida a presença de erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c), do nº 1 do art. 410º do C. Processo Penal.


*


Do erro de direito, quanto à manutenção da circunstância qualificativa prevista na alínea a), do nº 1 do art. 204º do C. Penal, por o «valor elevado» ter deixado de se verificar, dada a reparação integral do assistente, relativamente aos bens não recuperados

5. Embora na conclusão VII os recorrentes se limitem à afirmação de que a sentença em crise enferma de erro de direito, ao tê-los condenado como autores de um crime de furto qualificado, quando tal circunstância não se verifica, no corpo da motivação densificaram a alegação, dizendo, singelamente, que a não verificação da circunstância qualificativa decorre do facto de terem reparado integralmente o assistente em valor superior ao dos bens não recuperados.

Esta questão já foi já incidentalmente tratada em 2., que antecede, pelo que, com o propósito de evitar desnecessárias repetições, dando aqui por reproduzida a argumentação que aí expendemos, concluímos, sem necessidade de maiores considerações, que a transacção efectuada entre os recorrentes e o assistente, devidamente homologada pela sentença de fls. 248 [nos termos da qual, o demandante reduziu o pedido para € 1500, quantia da qual os demandados se reconheceram devedores e se obrigaram a pagar no prazo de trinta dias], independentemente do respectivo valor, é insusceptível de modificar a qualificação jurídico-penal das apuradas condutas dos recorrentes.

Assim, inexiste erro de direito na qualificação do furto praticado pelos recorrentes, também, pela alínea a), do nº 1 do art. 204º do C. Penal.


*


Do erro de direito, por não ter o tribunal feito uso dos poderes conferidos pelo art. 358º, nº 3 do C. Processo Penal, com a convocação do disposto no art. 206º do C. Penal e consequente extinção do procedimento criminal

6. Nas conclusões VIII e IX submeteram os recorrentes ao conhecimento da Relação nova questão de erro de direito, com o conteúdo do título supra, sem que, no corpo da motivação, tenham desenvolvido a argumentação.

Com ressalva do respeito devido, não lhes assiste. Explicando.

a. O art. 358º do C. Processo Penal regula, na fase do julgamento, o procedimento a adoptar, nos casos em que, no decurso da audiência, o tribunal constata a verificação de uma alteração não substancial, mas relevante, dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quando exista, desde que essa alteração não resulte de factos alegados pela defesa, e nos casos em que o tribunal entende dever alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. Brevitatis causa, diga-se ainda, que alteração não substancial é a alteração factual que não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (cfr. art. 1º, f) do C. Processo Penal). 

Pois bem.

Se bem entendemos a alegação, lacónica, dos recorrentes, pretendem estes que a 1ª instância deveria aplicar ao caso o disposto no art. 206º do C. Penal, o que requereria a intervenção do mecanismo previsto no art. 358º do C. Processo Penal.

Assim não é, no entanto, uma vez que, atenta a previsão do referido art. 206º, da sua aplicação nunca resultará para os recorrentes a imputação de um crime diverso [o crime será sempre o mesmo furto, podendo discutir-se, de qualificado ou não], nem a agravação dos limites máximos das penas [a acusação imputou um crime de furto qualificado e a sentença recorrida manteve-o, pretendendo os recorrentes que seja considerado como crime de furto], nem a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação [com efeito, o que se prevê no nº 1 do art. 206º do C. Penal, é a extinção da responsabilidade criminal do autor de crimes de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º, nºs 1, a), b) e e) e 2, a), do mesmo diploma legal, verificados determinados pressupostos, e não a desqualificação do crime de furto, e consequente efectivação da desistência da queixa, sendo certo que, em qualquer caso, a referida desqualificação não exige comunicação, a ser feita nos termos do nº 3 do art. 358º do C. Processo Penal].  

Em suma, mostra-se infundada a censura feita ao tribunal a quo, no sentido de não ter feito uso dos poderes oficiosos contidos no art. 358º, nº 3 do C. Processo Penal, remetendo a qualificação jurídica dos factos da acusação para a previsão do arts. 206º do C. Penal.

b. Vejamos agora se, tal como pretendem os recorrentes, haveria lugar à aplicação do disposto no art. 206º, nº 1 do C. Penal.

Dispõe este nº 1 que, nos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do nº 1, e na alínea a) do nº 2 do artigo 204º e no nº 4 do artigo 205º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa ou do animal furtados ou ilegitimamente apropriados ou reparação integral dos prejuízos causados.

Estando provado que os recorrentes se apoderaram de bens do assistente, de valor global superior a € 5.100,00, porque este valor, como vimos, dever ser qualificado como valor elevado, atento o disposto na alínea a) do art. 202º do C. Penal, está verificada, como também já dissemos, a circunstância qualificativa do furto, prevista na alínea a), do nº 1 do art. 204º do mesmo Código. 

Decorre da acta da audiência de julgamento de 14 de Novembro de 2022 [fls. 254], ter o assistente manifestado o propósito de desistir da queixa e tendo os recorrentes manifestado a sua não oposição a tal propósito, devendo, pois, extrair-se destas manifestações de vontade, que assistente e recorrentes manifestaram a sua concordância quanto à extinção da responsabilidade criminal destes últimos.

Por outro lado, não resulta da matéria de facto provada que tenha existido dano ilegítimo de terceiro.

Sucede, porém, que a lei exige ainda, para que se possa verificar a extinção da responsabilidade criminal, que tenha havido restituição da coisa ou do animal furtados ou a reparação integral dos prejuízos causados.

Existe restituição da coisa quando o autor do furto procede voluntariamente à sua entrega ao legítimo possuidor, no estado em que se encontrava no momento da prática do crime, o que vale dizer que, quando a coisa furtada é apreendida pelo OPC e, depois, restituída ao ofendido, não existe restituição, para os efeitos previstos no art. 206º, nº 1 do C. Penal (cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1999, Coimbra Editora, pág. 119 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 816). 

Resulta da conjugação dos pontos 3, 4, 7 e 10 que, no seguimento das buscas efectuadas pela Polícia de Segurança Pública, ao armazém cedido pela recorrente ao assistente e à residência e garagem de DD – comprador de parte dos bens do assistente, apropriados pelos recorrentes e que por estes, lhe foram vendidos –, foram apreendidos os bens furtados pelos recorrentes e os mesmos restituídos ao assistente, com excepção daqueles que DD já havia, entretanto, vendido a terceiros, no valor total de € 1390.

Não existe, pois, nos autos, restituição da coisa, para efeitos de extinção da responsabilidade criminal, nos termos do art. 206º, nº 1 do C. Penal.

Por outro lado, para os mesmos efeitos, não existiu reparação integral dos prejuízos causados, pois o que, quanto à reparação, está em causa, é apenas a reparação do prejuízo em sentido estrito – e não, a reparação do dano em sentido amplo, englobando, para além daquele, a restituição da coisa (cfr., Figueiredo Dias, op. cit., pág. 117 e seguintes) – e, como vimos, não houve, por parte dos recorrentes, restituição de qualquer dos bens apropriados.

Ainda que assim não fosse, cumpre dizer que o furto praticado pelos recorrentes foi também qualificado pelo tribunal a quo, pela circunstância da alínea f), do nº 1 do art. 204º do C. Penal – circunstância esta, aliás, igualmente imputada na acusação.

Ora, esta circunstância qualificativa não integra a previsão do art. 206º, nº 1 do C. Penal, pelo que, também por esta via, não poderiam os recorrentes beneficiar da extinção da responsabilidade criminal, aí prevista.

Em suma, pelas sobreditas razões, não pode proceder esta pretensão dos recorrentes.


*


            Do erro de direito na aplicação do instituto da perda de vantagens, dada a reparação do assistente, relativamente ao valor dos bens não recuperados

            7. Alegam os recorrentes – conclusão VI – que a vantagem de € 1390 que obtiveram com a prática do furto, correspondente à venda dos bens não recuperados, foi reparada ao assistente, em sede de pedido de indemnização civil, por € 1500, portanto, por valor superior, pelo que, carece de fundamento, a aplicação do instituto da perda de vantagens. No corpo da motivação densificaram a alegação, afirmando que a vantagem obtida não foi a de € 4500, considerada na sentença recorrida, mas antes, os referidos € 1390 e que, a não se entender assim, sempre existiria uma dupla vantagem a favor do Estado, na medida em que receberia um valor superior ao que obtiveram, com a venda dos bens não recuperados.

            Vejamos.

             A perda de instrumentos, produtos ou vantagens, regulada nos arts. 109º e seguintes do C. Penal, funda-se exclusivamente em necessidades de prevenção, mas colocadas em distintas perspectivas, isto é, os primeiros [instrumentos e produtos], visando acautelar a perigosidade imediata dos objectos usados na prática do crime e dos que, por esta prática, foram produzidos, e as últimas [vantagens] visando afirmar o velho adágio de que o crime não compensa, mediante a supressão, no património do agente do crime, dos benefícios que logrou obter com a sua prática (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crimes, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 632, Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., págs. 452 e 460 e João Conde Correia, Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, 2012, INCM, págs. 68 e 80).

A perda de instrumentos, produtos ou vantagens não é uma pena acessória, pois não depende da culpa do agente, nem é uma medida de segurança, pois não radica na perigosidade deste, mas antes, uma providência sancionatória de natureza análoga à medida de segurança (Figueiredo Dias, op. cit., págs. 628 e 638, Paulo Pinto de Albuquerque, op. e loc. cit. e João Conde Correia, op. cit., págs. 77 e 96, este último autor, com reservas, relativamente à perda de vantagens).

Aqui chegados, se bem que com a necessária brevidade, cumpre precisar os conceitos de instrumentos do crime, produtos do crime e vantagens do crime.

Assim, instrumentos do crime são as coisas ou objectos, usados ou destinados a ser usados pelo agente, na prática do crime. Produtos do crime são as coisas ou objectos gerados ou produzidos pela prática do crime. Vantagens do crime são todos os benefícios patrimoniais resultantes da prática do crime, todo o enriquecimento patrimonial do agente fruto do crime, designadamente, e com relevo para o caso em análise, os objectos subtraídos, no âmbito de um crime de furto.

Dito isto.

8. Resulta da factualidade provada da sentença recorrida, e não impugnada pelos recorrentes, o que segue:

- Os recorrentes apropriaram-se, fazendo-os seus, diversos objectos, de valor total superior a € 5100, pertencentes ao assistente, que se encontravam num armazém cedido a este, pela recorrente;

- Entre esses objectos contavam-se, vários acessórios em PVC e tubos, ferro galvanizado, parafusos, anilhas e porcas, duas bancadas de trabalho, dois martelos pneumáticos, um foco exterior, uma estrutura em ferro, dois móveis de arrumações, duas prateleiras em ferro, uma máquina de caleiros, uma serra circular, um berbequim de coluna, uma mala bagageira e uma janela com quatro portas em alumínio, objectos estes que os recorrentes venderam, por € 4500, a DD;

- DD colocou à venda, no site OLX, em 30 de Junho de 2020, a máquina de caleiros, a serra circular, o berbequim de coluna e a mala bagageira, pelo preço total de € 1390;

- Não foi possível recuperar os objectos colocados à venda por DD, no valor de € 1390, por este os ter vendido a terceiros;

- Em buscas realizadas em 15 de Abril de 2021, na residência de DD e no armazém cedido pela recorrente ao assistente, foram encontrados e restituídos a este, os demais bens apropriados pelos recorrentes.

Conforme já referido em 2., que antecede, resulta também plenamente provado – atento o teor da acta da audiência de julgamento de 7 de Novembro de 2022 [fls. 247 e seguintes] –, que os recorrentes e o assistente, relativamente ao pedido de indemnização civil formulado nos autos, de que são, demandados e demandante, respectivamente, lavraram termo de transacção, homologada por sentença, então, proferida, nos termos da qual, o assistente/demandante reduziu o pedido para € 1500 e os recorrentes demandados reconheceram-se devedores desta quantia que se obrigaram a pagar no prazo de trinta dias. 

Poi bem.

a. Tendo os recorrentes furtado bens do assistente, de valor global superior a € 5100, considerando a definição de vantagens do crime, feita supra, é desde logo evidente que os bens apropriados constituem a vantagem por eles obtida. Por outro lado, também se provou que os recorrentes venderam parte dos bens apropriados a um terceiro, DD, pelo preço de € 4500. Este valor traduz-se numa vantagem indirecta, resultante da transacção de parte da vantagem directamente obtida.

Deste modo, mostra-se infundada a afirmação dos recorrentes, de que a única vantagem que obtiveram com a prática do crime corresponde à quantia de € 1390, pois esta representa apenas, como vem provado, o valor dos bens furtados e, depois, vendidos, que não foi possível apreender nos autos.

b. Já sabemos que a perda de vantagens do crime pretende demonstrar que o crime não compensa, sendo, pois, seu objectivo de política criminal, privar o agente dos lucros do crime, de forma a colocá-lo na situação patrimonial que teria se não o tivesse praticado (cfr. João Conde Correia, op. cit., pág. 91).

Dispõe o art. 110º do C. Penal, na parte em que agora releva:

1 – São declarados perdidos a favor do Estado:

(…);

b) As vantagens do facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, pata o agente ou para outrem.

(…).

4 – Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112º-A.

(…).

6 – O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.

Conjugando estas normas (as dos nºs 1, b), 4 e 6 do referido art. 110º), há que distinguir duas situações:

- Tendo as vantagens do crime sido apropriadas em espécie, v.g., apreendidas pelo OPC, há lugar à declaração do seu perdimento a favor do Estado. Mas esta declaração não pode prejudicar os direitos do ofendido, o que significa que, na hipótese de apreensão pelo OPC, e consequente restituição ao ofendido (cfr. art. 186º, nº 1 do C. Processo Penal), não haverá lugar àquela declaração de perdimento;

- Não tendo sido possível apropriar em espécie as vantagens do crime, a declaração do seu perdimento é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.

Assim, constituindo os bens furtados pelos recorrentes a vantagem directa que obtiveram com a prática do crime, haveria lugar à declaração do seu perdimento a favor do Estado, nos termos do disposto no art. 110º, nº 1, b) do C. Penal.

Sucede que, como se provou, no decurso do inquérito, o OPC, em buscas efectuadas à residência de DD e ao armazém da recorrente, procedeu à apreensão dos bens furtados pelos recorrentes ao assistente [com excepção dos que o dito DD havia já vendido a terceiros e que tinham o valor global de € 1390], bens que, depois, foram restituídos ao assistente (cfr. arts. 178º e 186º, nº 1 do C. Processo Penal).

A restituição ao assistente e ofendido dos bens apreendidos, que lhe haviam sido furtados, impede a respectiva declaração de perdimento a favor do Estado, enquanto vantagem do crime, seja porque, como dispõe o nº 6 do art. 110º do C. Penal, essa declaração não pode prejudicar os direitos do ofendido, seja porque a razão de política criminal que preside à declaração de perda das vantagens do crime já se encontra assegurada [a vantagem alcançada pelos recorrentes desaparece, com a restituição dos bens furtados ao assistente].

Por outro lado, também o recebimento da quantia de € 4500 pelos recorrentes, por via da venda a DD de parte dos bens que furtaram, constitui uma vantagem indirecta do crime, igualmente sujeita, nos termos do disposto no art. 110º, nº 1, b) do C. Penal, a declaração de perda a favor do Estado. Porém, não sendo apropriável em espécie, dada a sua natureza fungível, nos termos do nº 4 do mesmo artigo, deve a perda ser substituída pelo pagamento do respectivo valor ao Estado, como, aliás, se decidiu na sentença recorrida.

Porém, há, neste aspecto, que efectuar uma restrição, na esteira, mas por fundamentos não totalmente coincidentes, do reparo feito pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer.

Sendo objectivo da perda de vantagens do crime, conforme já dito, privar o agente dos lucros do crime, colocando-o na situação patrimonial que teria se não o tivesse praticado, considerando que todos os objectos furtados pelos recorrentes – vantagens directas – foram apreendidos e restituídos ao assistente, com excepção dos que o comprador DD vendeu a terceiros, no valor de € 1390, considerando os recorrentes receberam do referido DD a quantia de € 4500, pela venda de parte dos bens que furtaram ao assistente – vantagem indirecta – e considerando também o valor da transacção relativa ao pedido de indemnização civil – € 1500, reparando integralmente, por excesso, o dano resultante do valor dos bens furtados e não recuperados –, podemos concluir que o património dos recorrentes tem um acréscimo de valor de [€ 4500 - €1500 =] € 3000, comparativamente ao que teria, se não tivessem praticado o furto (no sentido de ser atendida a valorização líquida do património, João Conde Correia, op. cit., pág. 91 e Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 461).

Assim, devem os recorrentes ser condenados, nos termos do disposto no art. 110º, nº 4 do C. Penal, no pagamento ao Estado da quantia de € 3000.


*

*

*

*


            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação, em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:

A) Revogam a sentença recorrida, na parte em que condenou os arguidos AA e BB – em substituição da perda de vantagens do crime –, no pagamento ao Estado da quantia de € 4500 (quatro mil e quinhentos euros).

B) Condenam os arguidos AA e BB – em substituição da perda de vantagens do crime –, no pagamento ao Estado da quantia de € 3000 (três mil euros).


*


            C) Confirmam, quanto ao mais, a sentença recorrida.


*


            D) Recurso sem tributação, atenta a parcial procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal, a contrario).


*

*

Coimbra, 12 de Maio de 2023

*


Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – Maria José Guerra – adjunta – Helena Bolieiro – adjunta