Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
141/08.6TTVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: TRIBUNAL COMPETENTE
ACÇÃO LABORAL
CONTRATO DE TRABALHO
Data do Acordão: 04/23/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU -1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 14º E 19º DO CÓDIGO PROCESSO TRABALHO
Sumário: I – As acções emergentes de contrato de trabalho, intentadas pelo trabalhador contra a entidade empregadora, podem ser propostas no Tribunal do lugar da prestação do trabalho ou do domicílio do autor – artº 14º, nº 1, CPT.

II – Com a referida norma, à regra geral do domicílio do réu, o legislador do CPT cuidou de imprimir uma relevante excepção relativamente às acções emergentes de contrato de trabalho intentadas pelo trabalhador contra a entidade patronal.

III – O artº 19º do CPT neutraliza a pretensa eficácia de uma qualquer estipulação convencional sobre a competência territorial, concretamente no que tange às acções emergentes de contrato.

IV – No direito processual laboral o princípio da autonomia da vontade consagrado no artº 100º, nº 1, do CPC, sofre de ampla limitação relativamente à competência territorial, que praticamente se poderá considerar inoperante.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                  I –

1.

No processo em epígrafe, que corre termos no Tribunal do Trabalho de Viseu, e em que são partes o A., A... , e a R. ‘B... ’ devidamente identificados, proferiu-se oportunamente o seguinte despacho:

‘O Tribunal é competente – atendendo, por um lado, aos termos em que o A. fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida e, por outro, ao preceituado nos arts. 13.º, 14.º e 19.º do C.P.T., em nada relevando, por nula, a ‘cláusula 21.ª’ do acordo celebrado entre as partes, reproduzido a fls. 223 e seguintes (a ‘nulidade dos pactos de desaforamento’ prevista no art. 19.º do C.P.T. constitui um desvio à regra consignada no processo civil comum, no art. 100.º do Cód. (P…) Civil, que admite o afastamento convencional das regras de competência territorial; a mencionada cláusula de aforamento é nula, porquanto contraria normas que não permitem a exclusão da competência territorial atribuída no direito processual laboral – cfr., entre outros, Ac. RP de 10.12.1998, in C.J., XXIII, 5, 250).

Custas do incidente de fls. 141 pela demandada, fixando-se a taxa de justiça em dias UC’s – art. 16.º do CCJ’.

2.

É dessa decisão que, inconformada, a R. «B....» veio agravar.

Alegando, concluiu assim:

· A cláusula que as partes acordaram, no contrato de trabalho, em que estabeleceram como foro competente o Tribunal do Trabalho da sede da entidade empregadora, é válida;

· É válida porque a vontade das partes, ao convencionarem tal foro, fizeram-no dentro dos limites impostos pelos arts. 13.º/1 e 14.º/1 do C.P.T.;

· Não constitui violação do art. 19.º dom C.P.T. a estipulação entre as partes de um foro que se enquadre dentro desses limites, como foi o caso dos presentes Autos;

· Ao contrário do decidido pelo Tribunal recorrido, tal acordo não é nulo;

· Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou os arts. 13.º/1, 14.º/1 e 19.º do C.P.T., bem como os arts. 100.º e 110.º do C.P.C.

O recurso deve ser julgado procedente e o despacho substituído por outro que declare a incompetência do Tribunal do Trabalho de Viseu e, consequentemente verificada a excepção dilatória prevista na alínea a) do art. 494.º do C.P.C.

Não vimos resposta.

3.

O Exm.º Julgador 'a quo' sustentou circunstanciadamente o despacho em crise, reafirmando o sentido da decisão.

Já nesta Instância o Exm.º P.G.A. emitiu douto Parecer em que propende para o improvimento do recurso, posição a que ainda reagiu a agravante.

Correram os vistos legais devidos.

                                          II –

As ocorrências de facto relevantes para o enquadramento, compreensão e dilucidação da questão decidenda são todas de natureza e comprovação processual, resultam disponíveis nos Autos, e a elas iremos aludindo, na sequência e em função do desenvolvimento discursivo.

Tudo visto:

O A., declarando-se residente na Rua ..., Viseu, demandou, no Tribunal do Trabalho de Viseu, a R. ‘ B...., com sede na Rua..., Lisboa – certidão do cabeçalho da P.I., a fls. 37.

A R., na contestação, excepcionou a incompetência territorial do Tribunal demandado, invocando para o efeito o clausulado no documento que suporta o contrato de trabalho, (doc. n.º1, com o respectivo articulado, com cópia certificada a fls. 28-31 destes Autos), em que as partes elegeram para a resolução de qualquer litígio emergente do mesmo o Foro da comarca de Lisboa.

O A. reagiu, respondendo então à excepção – fls. 39.

Decidiu-se que o a referida cláusula de aforamento, (a 21.ª do identificado documento),

é nula face ao preceituado no art. 19.º do C.P.T., norma esta que constitui um desvio à regra do art. 100.º do C.P.C.

E decidiu-se acertadamente.

Ante a proficiente fundamentação adiantada na sustentação do despacho em crise, complementada pela pertinente argumentação expendida na douta intervenção do Exm.º P.G.A., pouco mais haverá a dizer com vista à demonstração da bondade do entendimento eleito e à consequente refutação das razões a que se arrima, sem razão, a agravante.

Ainda assim, não obstante:

A reacção da agravante assenta na interpretação que faz dos arts. 13.º/1 e 14.º/1 do C.P.T., insistindo em que, havendo acordo das partes no sentido de estabelecer um dos foros previstos na Lei processual, não se está a violar a determinação do art. 19.º da mesma Codificação.

Dispondo sobre a competência territorial diz aquele art. 13.º – estabelecendo como ta a regra geral – que as acções devem ser propostas no Tribunal do domicílio do réu, mas …’sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes’.

As acções emergentes de contrato, intentadas por trabalhador contra entidade empregadora, como ‘in casu’, podem ser propostas no Tribunal do lugar da prestação do trabalho ou do domicílio do autor – n.º1 do art. 14.º.

Ora, com se pode concluir já, à regra geral do domicílio do réu o mesmo legislador cuidou de imprimir uma relevante excepção relativamente às acções emergentes de contrato de trabalho intentadas, como o são a esmagadora maioria, pelo trabalhador contra a entidade patronal.

É inequívoco, pois, que o legislador quis que a escolha do Tribunal, de entre as várias possibilidades que a Lei confere, caiba por inteiro ao trabalhador, com o propósito evidente de facilitar a este o exercício da acção judicial (neste sentido, Albino Mendes Baptista em anotação ao art. 14.º , ‘C.P.T. Anotado’, 2.ª Edição, ‘Quid Juris’).  

Mas, apesar disso, poderá prevalecer aqui – tal como acontece no âmbito da Lei adjectiva geral, maxime na previsão do n.º1, 2.ª parte, do art. 100.º do C.P.C. – o que eventualmente se haja convencionado sobre a competência ‘ratione loci’, tanto mais que se previne (n.º3 da norma) que a competência fundada em estipulação é tão obrigatória como a que deriva da Lei?  

Só aparentemente se poderia admitir que sim, mas ainda assim numa compreensão desgarrada e desprezando de todo a filosofia que preside à especificidade das normas adjectivas deste Foro.

É por isso que não poderá deixar de compaginar-se a previsão daqueles arts. 13.º e 14.º com a lapidar cominação constante do art. 19.º, que neutraliza a pretensa eficácia de uma qualquer estipulação convencional sobre a competência territorial, concretamente no que tange às acções emergentes de contrato.

Já assim era – e como tal se preconizava na doutrina e jurisprudência coevas – na vigência do C.P.T. de 1963, (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45.497, de 30.12.1963), pelo menos.

Vejam-se as disposições constantes dos seus arts. 19.º a 25.º e as anotações então feitas por Leite Ferreira na 2.ª Edição do seu ‘Código de Processo do Trabalho Anotado’, Coimbra Editora, 1972, maxime a pgs. 87.

Aí se consignava (e citamos): ‘Elevado o foro do domicílio do réu à dignidade de princípio geral, importava no entanto não esquecer a real diferença de situações económicas entre as partes nos conflitos emergentes das relações do trabalho. A sua aplicação exclusiva em qualquer caso não deixaria, por isso, de se traduzir em consequências penosas para o trabalhador. É que sendo diverso, muitas vezes, o domicílio das partes e aparecendo o trabalhador no litígio mais frequentemente como autor, a submissão, em qualquer caso, ao princípio estabelecido, não raro o impossibilitaria, por carência de meios, de se deslocar e fazer deslocar as pessoas que no processo devessem intervir.

Igual entendimento era sustentado, já ao tempo, por Raul Ventura (‘Competência dos Tribunais do Trabalho, segundo o novo C.P.T.’, in Curso de Direito Processual do Trabalho, Suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1964, citado por Albino Mendes Baptista, ibidem).

Tal como então, também hoje entendemos que se trata de uma previsão de competência cumulativa (e não sucessiva), como deflui das expressões ‘podem ser propostas…’ e ‘sem prejuízo do disposto…’, usadas pelo legislador nas normas que integram os arts. 13.º/1 e 14.º/1 (sempre do C.P.T.).

Comentando a norma do art. 25.º do C.P.T. de 1963, (com a epígrafe ‘Nulidade dos pactos de desaforamento’), dizia textualmente o Conselheiro Leite Ferreira, (então Juiz de Direito e Inspector dos Tribunais do Trabalho):

‘O (anterior) Código de Processo nos Tribunais do Trabalho feria de nulidade, no art. 16.º, qualquer cláusula que excluísse as normas de competência territorial fixadas relativamente a processos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.

O (então vigente) Código de Processo do Trabalho adoptou uma orientação mais radical, tanto em relação ao C.P.C. como em relação ao Código de Processo nos Tribunais do Trabalho, pois estendeu a nulidade a todos os pactos ou cláusulas que contrariem as disposições nele insertas relativas à competência territorial.

A razão do preceito está na protecção dispensada ao trabalhador…

Por isso qualquer convenção, expressa ou tácita, pela qual se pretenda afastá-las carece de valor.

No C.P.C. (art. 100.º/1) domina o princípio da autonomia da vontade.

No direito processual laboral, porém, o princípio sofre tão ampla limitação relativamente à competência territorial que praticamente se poderá considerar inoperante…Isto por reporte ao art. 25.º, de conteúdo igual ao do homólogo art. 19.º do actual C.P.T.

E rematava assim a sua reflexão:

Atento porém que a razão de ser da proibição reside na protecção do trabalhador…parece dever concluir-se que, ao estatuir a nulidade do pacto, o legislador teve em vista apenas a sua eficácia. Quer dizer: o pacto não vale como foi querido porque a Lei o não quer.

…Para concluir que se o autor não respeita a cláusula e, apesar da sua existência, vai propor a acção no tribunal territorialmente competente segundo a Leie as suas conveniências, não pode o réu arguir a incompetência territorial do Tribunal, invocando a cláusula. E se o fizer, deve o Juiz desatender a arguição, considerando nulo o pacto por directa aplicação do art. (ora) 19.º.

Estas considerações são, pois, de plena actualidade, interpretando perfeitamente, também no nosso entendimento, o sentido da normatividade implicitada, que a decisão sujeita apreendeu com apurada percepção e sensibilidade, reflectidas nomeadamente no excerto seguinte, quando, ao analisar criticamente o teor da identificada cláusula inscrita no documento que enforma o contrato, se escreve: …’podemos concluir que o A., no tocante à 2.ª parte da dita cláusula 21.ª do contrato de trabalho datado de 13.9.1999, se porventura a leu, por certo não discutiu minimamente com a parte contrária o seu conteúdo, limitando-se a ‘aderir’ ao que, então, lhe foi imposto.

Não obstante tratar-se de cláusula que, que efectivar-se, dificultaria a posição do trabalhador na resolução judicial de quaisquer questões …decorrentes da cessação da relação laboral, a entidade empregadora, ao fazer constar aquele ‘trecho’ na mencionada cláusula apenas fez vingar o seu interesse, independentemente dos interesses que, no descrito quadro normativo, merecem e reclamam uma especial atenção e salvaguarda…

No fundo, a recorrente pretendeu e pretende apropriar-se, em seu exclusivo beneficio, de faculdades que, dada a configuração (processual) do caso vertente, a Lei lhe não confere’.

Subscrevemos inteiramente.

Esta Secção já há muito sufragava a solução plasmada na decisão sob protesto, como pode conferir-se, v.g., no Acórdão de 22.4.1993, sumariado in BMJ n.º 426/534, não havendo qualquer fundamento para que não a mantenhamos.

(Assim, também, ‘inter alia’, o referido Acórdão do TRP, de 10.12.98, in C.J., 1998, Tomo V, pg. 250).

Em suma:

A nulidade dos pactos de desaforamento, prevista no art. 19.º do C.P.T., com a explicitada teleologia, constitui um desvio à regra do processo civil comum.

Não ignorando que há quem divirja deste entendimento, continuamos convictos que a solução eleita é a que melhor interpreta o espírito da Lei.

                                         ___

                                         III –

    DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, delibera-se negar provimento ao recurso, confirmando o douto despacho impugnado.

Custas pela agravante.