Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1588/05.5TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
PROCESSO ESPECIAL
DOAÇÃO
FORMA
Data do Acordão: 02/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM - 1º J.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 219º, 373º, 394º, 573º, 940º, 947º, 1093º, 1154º A 1157º, 1161º, 2079º, 2087º, 2088º DO CC, 659º, 646º, 1014º E 1014º-A DO CPC
Sumário: 1. Os documentos particulares apenas provam as declarações atribuídas ao seu autor, ou seja, a força probatória material, desde que a sua autoria esteja reconhecida, isto é, a força probatória formal, o que não acontece quando não contêm a assinatura do seu autor, cabendo, então, ao mesmo o ónus da prova da sua veracidade, sob pena de a sua força probatória ser apreciada, livremente, pelo Tribunal.

2. A doação de dinheiro só não depende de qualquer formalidade externa, desde que acompanhada de tradição da coisa, sendo certo que, quando tal não aconteça, só pode ser demonstrada por documento escrito.

3. A cláusula contratual adicional, não constante de documento, que introduziu algo de novo e modificativo, no contrato celebrado, é insusceptível de ser provada por testemunhas, quando a razão da exigência da forma, no caso concreto, o imponha, conduzindo à consideração da respectiva factualidade como não demonstrada.

4. Não se provando a doação de uma importância em dinheiro, efectuada por um utente, a favor de um lar de terceira idade, onde se encontrava internado, deve a respectiva transferência bancária, resultante de um contrato misto de prestação genérica de serviço e de albergaria ou hospedagem, ser objecto do processo de prestação forçada de contas.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A Herança aberta por óbito de A..., representada pelo cabeça-de-casal B..., residente na X..., Cova da Iria, Fátima, propôs a presente acção especial de prestação de contas contra a “C...”, com sede na Y..., Boleiros, Fátima, pedindo que, na sua procedência, a requerida seja citada para apresentar contas ou contestar a acção e, a final, condenada no pagamento do saldo credor que vier a apurar-se existir a favor da requerente, acrescido dos respectivos juros de mora, à taxa legal, alegando, para o efeito, e, em síntese, que o falecido esteve acolhido no lar pertencente à requerida, mas que, a fim de evitar deslocações mensais deste ao Banco, para levantamento do dinheiro necessário ao pagamento da respectiva mensalidade, o mesmo efectuou uma transferência bancária de 16.351,50€, para a requerida, sendo que, após o seu falecimento e até hoje, nunca esta prestou contas à requerente.

Na contestação, a requerida alega que, nos termos do acordo celebrado com o agora cabeça-de-casal, a quantia transferida para a sua conta bancária destinava-se a pagar todas as despesas que tivesse de efectuar para cuidar de A..., até à sua morte, tendo gasto, nas mesmas, todo o dinheiro transferido.

Na resposta, a requerente conclui como na petição inicial.

A sentença julgou a acção improcedente e, consequentemente, absolveu a requerida do pedido de prestação contas formulado pela requerente.

Desta sentença, a requerente interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª – A autora pediu, além do mais, que a ré lhe prestasse contas das importâncias que recebeu do falecido e dos gastos que fez com o mesmo durante o período em que ele foi utente das suas instalações e serviços;

2ª - A douta sentença recorrida apenas se ateve à questão da transferência da importância de 16.351,50€ e a que título a mesma foi feita para a conta da ré;

3ª - A ré é uma sociedade comercial e, como tal, está obrigada à prestação de contas;

4ª - Na fundamentação considerou-se que a ré era uma sociedade comercial e na decisão que a mesma ré não devia prestar contas;

5ª - A ré propôs-se devolver a quantia de 5.706,23€, tendo reconhecido a existência desse saldo positivo a favor dos herdeiros de A...;

6ª - O facto jurídico do direito invocado pela autora consubstancia-se no uso que o malogrado A... fez dos serviços e instalações da ré até à sua morte, donde resultaram múltiplas despesas e nos valores que terá entregue à ré;

7ª - A questão dos autos não pode ser enquadrada na figura da doação onerada com encargos, como se fez na douta sentença recorrida;

8ª - O facto 6) da matéria provada não afasta a obrigação da ré prestar contas;

9ª - A ré agiu como depositária da importância de 16.351,50€ e, também nessa qualidade, tem que prestar contas à autora da forma como administrou os valores em causa;

10ª - Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a douta sentença proferida em 1a instância, substituindo esta por uma condenação da ré ora apelada no pedido;

11ª - Se assim não se entender, deve a douta sentença ser considerada nula, por omissão de pronúncia e contradição entre os fundamentos e a decisão proferida;

12ª - A douta sentença ora recorrida, por vício ou erro de interpretação violou, entre outras, as seguintes disposições legais: art°s 18° do Código Comercial, 1014° e 668°, n°1, alíneas c) e d), ambos do CPC, e 940°, do CC.

Nas suas contra-alegações, a requerida defende que a sentença não padece de qualquer vício e que o recurso não abrange a matéria de facto, pelo que, sendo restrito à matéria de direito, deveria a requerente indicar o sentido da interpretação correcta das normas violadas.

Com relevância para a decisão do mérito da causa, entende este Tribunal da Relação que se encontram demonstrados os seguintes factos:

1 - Por escritura de habilitação de herdeiros, outorgada em 26 de Julho de 2004, no Cartório Notarial de Ourém, lavrada de fls. 96 a 97, do livro 660-A, foram declarados únicos herdeiros de A..., cujo óbito ocorreu em 27 de Fevereiro de 2004, os seus irmão germanos, B... (cabeça-de-casal), D..., E..., F... e G....

2 - A ré explora, com intuitos lucrativos, um lar de terceira idade, com o nome de “C...”, sito na Y..., lugar de Boleiros, freguesia de Fátima.

3 – Pelo denominado “Contrato de Prestação de Serviços”, a requerida e um responsável do referido A..., aceitaram, reciprocamente, que este último pagaria aquela a mensalidade de 150000$00, no ano de 2000, e a requerida prestava ao primeiro estadia, alimentação, assistência médica, de enfermagem, de acompanhamento e vigilância, sendo a mensalidade paga, adiantadamente, em relação ao mês a que respeita, e, no caso de saída ou falecimento, ainda que o respectivo mês não tenha terminado, não seriam reembolsadas quaisquer despesas a ele referentes – documento de folhas 26 e 27.

4 - Desde mais de três anos antes e até à sua morte, ocorrida em 27 de Fevereiro de 2004, A... foi utente do referido lar, aí pernoitando, tomando as suas refeições, passando os seus tempos livres, recebendo amigos, familiares e conhecidos, em suma, aí tendo centralizada a sua vida.

5 - Para pagamento da estadia do falecido, a ré recebia, mensalmente, a reforma daquele, no valor aproximado de 250€, e o restante em dinheiro, levantado pelo falecido da respectiva conta bancária.

6 - A fim de evitar a deslocação mensal do falecido ao Banco e para completar o pagamento das mensalidades e demais despesas originadas pela estadia do falecido, nas suas instalações, a ré recebeu do mesmo, em finais de Janeiro de 2004, uma transferência bancária, na importância de 16.351,50€.

A sentença recorrida considerou ainda demonstrados os seguintes factos, cuja validade e pertinência serão objecto de apreciação subsequente:

7 - Tal transferência bancária foi efectuada com a condição de que esse dinheiro pagaria todas as despesas de A..., até à sua morte, quer este vivesse 10 anos, quer vivesse 10 meses.

Por outro lado, não se provou que a quantia transferida seria, apenas, para ser administrada pela ré e bem assim como que a mesma tenha sido, integralmente, gasta em médicos, medicamentos, internamentos, ambulâncias e alimentação, não tendo sido suficiente para pagar todas as despesas e todo o tempo de internamento.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:

I – A questão da obrigatoriedade da prestação de contas.

II – A questão da nulidade da sentença.

I

DA PRESTAÇÃO DE CONTAS

A acção especial de prestação de contas, que é uma das formas de exercício do direito de informação, tem lugar quando alguém que administra bens, interesses ou valores alheios1, ou trata de negócios alheios ou de negócios, próprios e alheios, fica obrigado a facultar ao respectivo titular, que tenha uma dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo, as informações necessárias para que este possa conhecer o resultado, positivo ou negativo, dessa administração ou actividade, nos termos do disposto pelo artigo 573º, do Código Civil (CC).

A administração da herança, que abrange, além do mais, os bens próprios do falecido, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal, que pode exigir aos herdeiros ou a terceiro, administrador ou gerente desses bens ou valores, a obrigação de prestar contas, ou a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, independentemente da fonte dessa administração, com vista ao apuramento do saldo resultante da receita ou da despesa envolventes, em conformidade com os preceitos combinados dos artigos 2079º, 2087º, nº 1, 2088º, nº 1 e 2089º, todos do CC.

Porém, o artigo 1014º, do CPC, normativo de natureza adjectiva que contempla o objecto da acção, cuja matriz se encontra no princípio universal de que todos aqueles que administram ou têm sob a sua guarda bens alheios devem acertar o fruto da sua gestão com o titular dos direitos administrados, pressupõe a existência de uma norma substantiva, um contrato ou até um princípio geral baseado na boa fé, que seja fonte do direito e da correlativa obrigação de prestar contas, ou seja, a respectiva causa de pedir, de onde se afere se a existência de uma e de outra é a lei ou o contrato2.

Ora, a norma substantiva, implicitamente invocada pela requerente, coloca a situação, no âmbito do contrato de mandato, de onde decorre a obrigação de prestação de contas pelo mandatário, findo o mandato ou quando o mandante as exigir, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1157º e 1161º, d), do CC.

Tendo a requerida contestado a obrigação de prestação de contas, o Tribunal «a quo» decidiu a questão prévia suscitada, no sentido de que o acordo celebrado entre as partes se traduziu numa verdadeira doação, onerada, porém, com encargos, ou seja, prevendo uma cláusula modal, consubstanciada, no caso, na assistência que deveria ser prestada a A..., até à sua morte, julgando, em consequência, a acção improcedente, em virtude de não ter sido constituída qualquer relação jurídica que pudesse fazer nascer uma qualquer obrigação de prestar contas, por parte da requerida.

Revertendo ao caso concreto, ficou demonstrado que, para pagamento da estadia do falecido, a ré recebia, mensalmente, a reforma daquele, no valor aproximado de 250€, e o restante em dinheiro, levantado pelo falecido da respectiva conta bancária.

A sentença recorrida considerou ainda provado que, a fim de evitar a deslocação mensal do falecido ao Banco e para completar o pagamento das mensalidades e demais despesas originadas pela sua estadia, nas instalações da requerida, esta recebeu do mesmo, em finais de Janeiro de 2004, uma transferência bancária, na importância de 16.351,50€, com a condição de que esse dinheiro pagaria todas as despesas do internado, até à sua morte, quer este vivesse 10 anos, quer vivesse 10 meses, sem que se tenha demonstrado que a quantia transferida seria, apenas, para ser administrada pela requerida.

Efectivamente, não obstante o teor do documento de folhas 47, que contém o saldo devedor da requerida, a favor da requerente, devidamente discriminado nas várias parcelas do “deve” e do “haver”, no montante de 5706,23€, o mesmo não se mostra subscrito pela requerida, mas apenas se acha encimado com o seu timbre, contendo o nome do estabelecimento comercial, a firma respectiva e a indicação da sua sede social.

É que, em relação à força probatória legal dos documentos particulares, estes apenas provam as declarações atribuídas ao seu autor, ou seja, a força probatória material, desde que a sua autoria esteja reconhecida, isto é, a força probatória formal, sendo certo que, faltando algum dos requisitos exigidos por lei, a força probatória do documento particular é apreciada, livremente, pelo Tribunal, nos termos do estipulado pelo artigo 366º, do CC, pertencendo sempre ao apresentante o ónus da prova da sua veracidade3, só valendo como tal se contiver a assinatura do seu autor, não sendo suficiente, v. g., os simples lançamentos contabilísticos, sem qualquer assinatura4.

O Exº Juiz subsumiu, assim, a matéria de facto que deixou demonstrada na figura da doação de móveis, onerada com cláusula modal.

Dispõe o artigo 940º, nº 1, que a doação “é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente”, acrescentando o artigo 947º, nº 2, também do CC, que “a doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito”.

Porém, tratando-se de uma alegada doação em dinheiro, enquanto bem móvel que é, só não depende de qualquer formalidade externa, desde que acompanhada de tradição da coisa doada ou do seu título representativo, sendo certo que, quando tal não aconteça, como se demonstrou, então, só pode ser feita por escrito, que tem de ser assinado pelo doador, ou por outrem a seu rogo, se o rogante não souber ou não puder escrever, devendo o rogo ser dado ou confirmado perante notário, depois de lido o documento ao rogante, atento o disposto pelo artigo 373º, nºs 1 e 4, do CC.

A necessidade de escrito, que pode consistir, v. g., numa declaração, numa carta, num cheque, ou numa ordem enviada a um banco5, para a doação de móveis, quando esta não seja manual, isto é, quando não haja tradição real ou material da coisa, funda-se na necessidade de chamar a especial atenção das partes para a gravidade das doações e na conveniência em evitar doações levianas, acautelando-as contra a sua precipitação.

Com efeito, não se provando que o falecido A... tenha entregue à requerida o dinheiro levantado da instituição de crédito, porquanto tal aconteceu, através de transferência bancária, cuja autoria se desconhece, a hipotética doação, neste caso, só poderia vir a concretizar-se, por documento escrito, em conformidade com o preceituado pelo artigo 947º, nº 2, do CC, citado, o que não se demonstrou ter-se verificado, e isto sem prejuízo de a propriedade da quantia em causa se haver transferido para o Banco, ficando apenas a requerida com o direito de crédito ao seu levantamento6.

Assim sendo, provando-se a transferência bancária, não ficou demonstrada a doação da respectiva importância monetária, a favor da requerida, por falta do indispensável documento escrito que a fundamentasse.

Questionando a qualificação jurídica operada pela sentença recorrida, enquanto doação onerada com encargos, a apelante não indica qual a causa de pedir da obrigação de prestação de contas, ou seja, qual o contrato estabelecido entre as partes, que se encontra subjacente à mesma.

Dispõe o artigo 1154º, do CC, que o “contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição”.

Para além do mandato, do depósito e da empreitada, que a lei considera como modalidades típicas do contrato de prestação de serviço, as disposições do mandato são extensivas, com as necessárias adaptações, às outras modalidades do contrato de prestação de serviço, que a lei não regula, expressamente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1155º e 1156º, ambos do CC.

Ora, entre os contratos de prestação de serviço, sem regulamentação especial, no actual Código Civil, encontra-se o contrato de albergaria, pousada ou hospedagem, que o artigo 1419º, do Código Civil de 1867, definia como aquele em que “alguém presta a outrem albergue ou alimento, ou só albergue, mediante a retribuição ajustada ou do costume”, e que, presentemente, em consonância com o antecedente, o artigo 1093º, nº 3, do CC, considera como tal a situação em que se encontrem “…as pessoas a quem…proporcione habitação e preste habitualmente serviços relacionados com esta, ou forneça alimentos, mediante retribuição”.

Resulta da factualidade consagrada que a requerida, por força do contrato celebrado com o falecido A..., não se limitou a fornecer-lhe alojamento e alimentação, mas, também, assistência médica, de enfermagem, acompanhamento e vigilância, prestações estas que, ao contrário das primeiras, não fazem parte de um típico contrato de hospedagem ou de albergaria.

Assim sendo, o contrato celebrado entre a requerida e o falecido A... assume a natureza de um contrato misto de prestação genérica de serviço e de albergaria ou hospedagem, que colhe a sua regulamentação essencial no contrato de mandato7.

A isto acresce que o contrato de mandato se encontra sujeito ao princípio da consensualidade, ou seja, em que a validade das declarações negociais que o integram não está dependente da observância de forma especial, atento o estipulado pelos artigos 219º e 1157º e seguintes, do CC.

Porém, não obstante a requerida e o representante do falecido terem subscrito um documento que intitularam de “contrato de prestação de serviços”, em que se fixava o pagamento da mensalidade de 150000$00, o certo é que, cerca de três anos depois da sua celebração, em finais de Janeiro de 2004, convencionaram, verbalmente, que, em consequência da transferência bancária de 16351,50€, que a requerida dele recebeu, ficariam satisfeitas todas as despesas futuras, a realizar pelo referido A..., até à sua morte, quer ele vivesse dez anos ou dez meses.

Trata-se, assim, de uma cláusula contratual adicional, não constante de documento, que introduziu algo de novo e modificativo, no contrato celebrado, insusceptível de ser provada por testemunhas, como veio a acontecer e se constata da fundamentação fáctica da sentença, conforme resulta do preceituado pelo artigo 394º, nº 1, do CC, com fundamento na ideia de que, tendo as partes reduzido o negócio jurídico a documento dotado de força probatória legal, se quiseram premunir contra a prova por testemunhas e os perigos a que a mesma se acha associada8, mas que a razão da exigência da forma, no caso em apreço, impõe9.

Ora, a inadmissibilidade legal de um meio de prova, «in casu», a prova testemunhal, como suporte de uma convenção adicional ao conteúdo de um documento dotado de força probatória legal, conduz à consideração da respectiva factualidade como não demonstrada e, consequentemente, como não escrita, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 659º, nº 3 e 646º, nº 4, do CPC.

Existindo, pois, a obrigação de prestar contas, por parte da requerida, com base num contrato misto de prestação genérica de serviço e de albergaria ou hospedagem, devem os autos prosseguir a sua tramitação específica, com observância do preceituado pelo artigo 1014º-A, nº 5, do CPC.

Como assim, deve considerar-se prejudicada a apreciação da questão da eventual nulidade da sentença, quer por omissão de pronúncia, quer por contradição entre os fundamentos e a decisão proferida, cuja validade, aliás, não apresentava qualquer consistência.

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CONCLUSÕES:

I – Os documentos particulares apenas provam as declarações atribuídas ao seu autor, ou seja, a força probatória material, desde que a sua autoria esteja reconhecida, isto é, a força probatória formal, o que não acontece quando não contêm a assinatura do seu autor, cabendo, então, ao mesmo o ónus da prova da sua veracidade, sob pena de a sua força probatória ser apreciada, livremente, pelo Tribunal.

II - A doação de dinheiro só não depende de qualquer formalidade externa, desde que acompanhada de tradição da coisa, sendo certo que, quando tal não aconteça, só pode ser demonstrada, por documento escrito.

III – A cláusula contratual adicional, não constante de documento, que introduziu algo de novo e modificativo, no contrato celebrado, é insusceptível de ser provada por testemunhas, quando a razão da exigência da forma, no caso concreto, o imponha, conduzindo à consideração da respectiva factualidade como não demonstrada.

IV – Não se provando a doação de uma importância em dinheiro, efectuada por um utente, a favor de um lar de terceira idade, onde se encontrava internado, deve a respectiva transferência bancária, resultante de um contrato misto de prestação genérica de serviço e de albergaria ou hospedagem, ser objecto do processo de prestação forçada de contas.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogando a sentença recorrida, reconhecem a obrigação de prestar contas, por parte da requerida, devendo os autos prosseguir a sua tramitação específica, com observância do preceituado pelo artigo 1014º-A, nº 5, do CPC.

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Custas da apelação, a cargo da requerida.