Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1381/03.0TBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: INDEMNIZAÇÃO
CRIME
MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
LESADO
FAMÍLIA
Data do Acordão: 10/27/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 2 DO ARTIGO 496.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1) Por morte da vítima são ressarcíveis, tanto os danos não patrimoniais por ela sofridos, como os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares a que alude o n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil.

2) Na fixação da indemnização, que não deve ser miserabilista, intervém, acima de tudo, critérios de equidade.

3) Mostram-se ajustados os valores de € 25.000,00 e de € 35.000,00, para ressarcir, respectivamente, os danos não patrimoniais da vítima de um homicídio voluntário praticado pelo próprio filho e os danos não patrimoniais sofridos pelo pai da vítima.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            A......, residente no ..., instaurou acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra B..., divorciado, detido no Estabelecimento Prisional de Coimbra, alegando, em resumo, que:

É pai de C... e avô do réu.

O réu agrediu e matou seus pais, o referido C.... e D..., aos quais provocou dores físicas, angústia e desespero, em razão do que foi condenado, como autor de dois crimes de homicídio qualificado, na pena única de vinte e cinco anos de prisão.

Tais mortes, e em especial a de seu filho C..., causaram-lhe profunda dor e grande sofrimento, até porque este era o seu único filho e tinha consigo relações de grande proximidade e afecto.

Tem direito a ser indemnizado dos danos não patrimoniais sofridos, quer pelo filho, quer por si próprio, que computa em € 149.639,36, reportando-se € 74.819,68 aos primeiros e outro tanto aos segundos, tudo acrescido de juros legais a contar da citação e até integral pagamento.

Concluiu pelo pedido de condenação do réu na importância global de € 149.639,36, adicionada de juros legais a partir da citação.

O réu contestou por excepção e por impugnação. Excepcionando, invocou a preclusão do direito do Autor a reclamar esta indemnização, por não o ter feito no respectivo processo crime; impugnando, disse desconhecer alguns dos factos alegados e apodou outros de falsos, tendo referido, nomeadamente, que o Autor não tinha relações de proximidade com o filho; finalmente, considerou exagerados os valores peticionados.   

Terminou pela absolvição do pedido, no caso de proceder a excepção, e, de qualquer modo, pela redução substancial do valor reclamado pelo autor.

            O autor respondeu à excepção, de forma a sustentar a sua improcedência.

            No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção, tendo-se declarado, no mais, a validade e a regularidade da lide.

            A selecção da matéria de facto (factos assentes e base instrutória) não foi objecto de reclamação.

            Entretanto, faleceu o autor, tendo sido habilitados como seus herdeiros E... , divorciada, residente na mesma morada daquele, e F... , solteiro, residente no .....

Realizado o julgamento e fixada, sem reparos, a matéria de facto, foi proferida sentença que condenou o réu a pagar aos herdeiros do autor a quantia de € 40.000,00, com juros a contar da citação, e o absolveu do restante que lhe foi pedido.

Do assim decidido interpôs recurso a herdeira habilitada E... – recebido como apelação, com efeito devolutivo –, que alegou e formulou as seguintes conclusões:

1) O grau de sofrimento da vítima foi elevado, até porque a mesma estava plenamente lúcida, tendo, nessa medida, consciência de que as lesões eram graves e de que ia morrer;

            2) A dor que sentiu com a perda do único filho, com quem privava intensamente, levou o autor a perder o gosto pela vida, do que nunca recuperou até à data da sua morte, ocorrida em Abril de 2005;

            3) A indemnização arbitrada peca por diminuta, devendo ser fixada, no seu todo, em não menos de € 80.000,00, sendo € 30.000,00 pelos danos sofridos pela vítima antes de morrer e € 50.000,00 pelos danos sofridos pelo autor em virtude da morte do filho;

            4) Foram violadas, por erro de aplicação e interpretação, as normas dos artigos 494.º e 496.º do Código Civil.

            O réu respondeu à alegação, defendendo a justeza da decisão recorrida.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Tendo em conta o teor das conclusões da alegação da apelante, é uma só a questão a resolver: a quantificação do valor dos danos.

            II. Na sentença apelada foram dados por provados os seguintes factos:

A) Por acordão proferido no processo n° 242/00.9TBILH, do 1° Juizo do Tribunal Judicial de Ílhavo, já transitado em julgado, foi o réu condenado, por ter morto os seus pais, C.... e D... , na pena única de 25 anos de prisão.

B) O réu, como filho único de C.... e D... , é o único herdeiro por morte destes, não tendo sido intentada, nos prazos legais, acção judicial no sentido de o afastar daquela sucessão.

C) O autor era viúvo, tendo à data da propositura da acção cerca de 74 anos de idade, e vindo a falecer em 03 de Abril de 2005 (doc. fls. 127).

D) O falecido C..., filho do autor, residia em Ílhavo, onde também exercia a sua profissão de médico.

E) C.... era o único filho do autor.

F) C..., completamente lúcido, suportou, até falecer, a angústia, as dores próprias das lesões e o desespero, provocados pelas agressões infligidas pelo réu, designadamente facadas, repetidamente e em diversas partes do corpo (na cabeça, no pescoço, no tórax, nos braços e nas mãos).

G) Também a mãe do réu, D... , foi atingida por aquele com diversos golpes no braço direito e com um golpe profundo na região dorsal, tendo tentado fugir para o jardim, altura em que foi atingida com diversos golpes no pescoço, tendo caído no solo e sendo arrastada para o interior da residência, já sem vida, sendo certo que, enquanto estava a ser arrastada, ia batendo sucessivamente com a cabeça nos diversos degraus do caminho.

H) A ideia destes acontecimentos perturbou o autor, causando-lhe sofrimento e desgosto.

I) O autor auferia uma pensão por velhice e outra por viuvez.

J) O filho C... visitava-o frequentemente e levava-o, habitualmente, a passear aos fins-de-semana.

L) O desgosto, angústia e depressão que o autor sofreu com a morte do seu filho C..., atendendo à forma como este faleceu, foi profundo, tendo sentido também, embora com menor intensidade, a morte da sua nora D....

M) Por essa razão, foi internado e recebeu tratamento psiquiátrico entre os dias 04 e 20 de Dezembro de 2001.

N) Após essas mortes, o autor viveu em constante sobressalto e aflição, uma vez que lhe vinham frequentemente à memória as circunstâncias da morte do filho C....e o sofrimento por que este passara até morrer.

O) O estado de angústia e desespero foi de tal modo, que praticamente não saía de casa.

P) Antes da morte do seu único filho, C..., o autor era um homem alegre, comunicativo e cheio de vida.

Q) Em virtude da morte do filho, tornou-se um homem triste, angustiado, desamparado, só e revoltado.

R) O autor, pelo menos até à altura das referidas mortes, costumava conviver com os familiares da sua companheira, uma senhora de nome E..., com quem viveu em união de facto durante cerca de 25 anos.

S) O filho C... tinha boas relações com a respectiva mãe e com os familiares de sua esposa.

T) Habitualmente, o autor passava o Natal, a Páscoa e o Fim de Ano com a sua companheira e respectivos familiares, enquanto que o filho C... e esposa passavam esses dias com a mãe dele, G... , e com outros familiares.

            III. O direito:

            Como acima se disse, só há que decidir uma questão: o valor da indemnização por danos não patrimoniais.

            O autor reclamou um valor total de € 149.639,36, dividido em duas parcelas iguais, de € 74.819,68 cada, respeitante, uma, às dores físicas e morais sofridas por seu filho antes de morrer, traduzidas estas na percepção de que ia ser morto pelo próprio filho e enfrentando a certeza e o terror da morte, e outra ao desgosto, à angústia e à depressão que a morte de seu filho lhe provocou.

            Na sentença valorizaram-se os danos sofridos pela vítima antes de morrer em € 15.000,00 e os danos sofridos pelo autor em € 25.000,00.

            Defende a recorrente a insuficiência de tais importância e propõe em sua substituição os valores de € 30.000,00 e de € 50.000,00, respectivamente, sob a argumentação de ter sido muito elevado o sofrimento, tanto o da vítima, antes de morrer, como o do autor com a perda do seu único filho.

            Vejamos se assim é.

            Importa esclarecer, antes de tudo, que é pacífico o entendimento de que os invocados danos merecem a tutela do direito (Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, volume I, 3.ª edição, páginas 290 e seguintes; Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 2.ª edição, páginas 266 e seguintes; Conselheiro José Joaquim de Sousa Dinis, Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJ/STJ, Ano IX, Tomo I, página 5 e seguintes; acórdão do STJ, de 25.01.2002, CJ/STJ, Ano X, Tomo I, página 61).

A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais depende da respectiva gravidade, encontrando-se os critérios para a sua fixação estabelecidos nos artigos 496.º e 494.º do Código Civil (CC); a regra base é a equidade, tendo em atenção as circunstâncias do caso, de que avultam o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e outras que se tenham apurado. 

“A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo …, e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, página 600).

“A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” (autor e obra citados, página 602).

A indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, por isso que, não pode ser miserabilista, mas significativa (acórdão do STJ de 25.06.02, CJ/STJ, Ano X, Tomo II, página 128; em igual sentido, o acórdão do mesmo Tribunal, de 12.03.09, pesquisado na Internet).

No seu cálculo intervém, sobretudo, critérios de equidade (mas fundados nas circunstâncias do caso concreto), de proporcionalidade (em função da gravidade do dano), de prudência, de senso prático, de ponderação das realidades da vida (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, página 449).

“(…) pretende-se encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal … a equidade é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio” (Dario Martins de Almeida, ob. cit., páginas 103/105).

Para as circunstâncias do caso, hão-de relevar, no que tange ao dano sofrido pela vítima antes de morrer, o seu sofrimento, a respectiva duração, a sua maior ou menor consciência sobre o seu estado e sobre a aproximação da morte, e, no que se refere ao dano sofrido pelos familiares, o grau de parentesco com a vítima, o relacionamento entre eles e se a morte foi sentida, na medida em que a indemnização por estes danos traduz o “preço” da angústia, da tristeza, da falta de apoio, carinho, orientação, assistência e companhia sofridas pelos familiares a quem a vítima faltou (Conselheiro Sousa Dinis, trabalho e local citados).

Revertendo à hipótese em presença, facilmente se vê que foi muito grave a culpa do réu (a supressão voluntária, violenta e querida da vida dos próprios pais dispensa considerações) e que é modesta, senão precária, a situação económica, quer do lesante, quer do lesado (o que resulta, desde logo, do facto de o lesante estar preso, em cumprimento de pena, e de ambos gozarem do benefício do apoio judiciário).

Quanto às circunstâncias do caso, é este o quadro factual apurado:

O filho do autor (pai do réu), completamente lúcido, suportou, até falecer, a angústia, as dores próprias das lesões e o desespero, provocados pelas agressões infligidas pelo réu, designadamente facadas, repetidamente e em diversas parte do corpo, nomeadamente na cabeça, no pescoço, no tórax, nos braços e nas mãos.

O autor ficou perturbado com os acontecimentos, que lhe causaram sofrimento, desgosto, angústia e depressão de tal modo profundos, que foi internado e recebeu tratamento psiquiátrico entre os dias 4 e 20 de Dezembro de 2001; após o falecimento do filho, o autor viveu em sobressalto e aflição constantes, dado que lhe vinham à memória as circunstâncias da morte e o sofrimento por que ele passara até se finar; foram tão grandes a angústia e o desespero, que, na prática, já não saia de casa; antes da morte do filho, que era o único que tinha e que o visitava com frequência e o levava, habitualmente, a passear ao fim de semana, o autor era um homem alegre, comunicativo e cheio de vida; depois disso, tornou-se um homem triste, angustiado, desamparado, só e revoltado.

O descrito enquadramento de facto é, indiscutivelmente, muito grave. A vítima sofreu, em estado de completa lucidez, o horror de ser morto pelo próprio filho, de forma extremamente violenta, bárbara, mesmo, atingido por um sem número de facadas em diversas partes do corpo.

O autor, por outro lado, sentiu de modo particularmente emotivo a perda de seu filho, que era a sua companhia de fim de semana, para mais, único e morto pelo neto; tão forte foi o abalo interior que suportou, que teve de ser internado para recebimento de tratamento psiquiátrico; a angústia e o desespero, só de pensar no fim doloroso que o filho tivera, levaram-no a confinar-se à residência; de alegre e apegado à vida, tornou-se triste e sem ânimo.

Não é mera figura de retórica dizer-se que nada paga isto, porque, na realidade, assim é.

Mas, havendo de ser atribuído um valor, pensa-se que terá de ser um tanto mais elevado do que o fixado na sentença, embora em medida inferior à proposta pela recorrente.

É verdade que os montantes nela arbitrados estão, como aí se refere, em linha com o que tem vindo a ser decidido pela jurisprudência; só que, tendo como pano de fundo a matéria de acidentes de viação, em que a culpa é, por natureza, mais leve, porque reconduzida à negligência, e as circunstâncias do caso bem menos dramáticas.

O falado acórdão do STJ, de 25.01.2002, considerou ajustados os valores de 2.000.000$00 (cerca de € 10.000,00) e de 4.000.00$00 (na ordem de € 20.000,00), para ressarcir os danos não patrimoniais da vítima e os danos não patrimoniais de cada qual de seus pais, respectivamente. Tratava-se de um acidente de viação mortal, em que a vítima, com a idade de 24 anos e filha única, que seguia ao lado do condutor, se apercebeu da derrapagem e subsequente desgoverno e embate do veículo, entrou em pânico, antevendo a morte, e sofreu lesões que lhe provocaram fortes dores, que só terminaram com o seu passamento, ocorrido já no hospital para onde foi conduzida. Por outro lado, os pais, que com ela mantinham laços afectivos muito fortes, não lograram ultrapassar o desgosto que a sua morte lhes provocou.

  Parece evidente, neste caso, que o sofrimento físico da vítima terá perdurado por bastante mais tempo do que sucedeu naquele que ora nos ocupa; em contrapartida, a dor moral de um pai que se vê assassinado pelo próprio filho há-se ser incomensurável.

Atendendo a esta circunstância, mas sem esquecer, também, que os montantes indemnizatórios têm vindo a ser actualizados com o passar do tempo e que decorreram já mais de sete anos desde a prolação do referido acórdão, julga-se equitativo fixar a indemnização pelos danos não patrimoniais da vítima em € 25.000,00.

No que tange aos danos não patrimoniais do autor, não será fácil distinguir entre um caso e outro; a perda de um filho é sempre um choque de dimensão impossível de descrever. Na hipótese dos autos, subsistem, porém, como elementos de ponderação, a relação familiar entre o autor, a vítima e o réu, as circunstâncias da morte (homicídio voluntário) e a falada tendência para a actualização das indemnizações.

Neste conspecto, a quantia de € 35.000,00 reflectirá, porventura, melhor o valor efectivo do dano.

O recurso terá, por conseguinte, procedência parcial.

            IV. Em conclusão:

            1) Por morte da vítima são ressarcíveis, tanto os danos não patrimoniais por ela sofridos, como os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares a que alude o n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil.

            2) Na fixação da indemnização, que não deve ser miserabilista, intervém, acima de tudo, critérios de equidade.

            3) Mostram-se ajustados os valores de € 25.000,00 e de € 35.000,00, para ressarcir, respectivamente, os danos não patrimoniais da vítima de um homicídio voluntário praticado pelo próprio filho e os danos não patrimoniais sofridos pelo pai da vítima.

            V. Decisão:

            Por tudo o exposto, acorda-se em conceder procedência parcial ao recurso, nos termos acima referidos, em consequência do que se condena o réu a pagar aos herdeiros habilitados do autor, a importância total de € 60.000,00 (sessenta mil euros), mantendo-se, no mais, a sentença recorrida.

            Custas por recorrente e recorrido, na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.