Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
915/06.2TAAVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: FACTURAÇÃO DETALHADA
TELECOMUNICAÇÕES
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 11/15/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº.S 187º, 190º, 269º DO C. P. PENAL; ARTSº. 2º E 4º DA LEI 41/2004, DE 18/08
Sumário: Na fase de inquérito, é da competência do juiz de instrução, e não do Ministério Público, ordenar a uma operadora telefónica a remessa de cópia de facturação detalhada de determinado número de telefone.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.

O Magistrado do Mº Pº interpõe recurso de despacho do Sr. Juiz de Instrução que indeferiu requerimento seu.
São do seguinte teor as conclusões que delimitam o objecto do recurso:
1- Vem o presente recurso interposto do despacho de 29-06-06 proferido a fls. 65-T dos autos em epígrafe, no qual a Mº Juiz "a quo" indeferiu o promovido pelo Ministério Público no sentido de que fosse autorizado que a operadora de serviço telefónico "A..." remetesse aos presentes autos a listagem da facturação detalhada e o "trace back" relativas ao n° X..., por entender que a autorização relativa às listagens de chamadas telefónicas não se inscreve nas competências do juiz de instrução, listadas nos artigos 268° e 269° do Código de Processo Penal.
Questão prévia
2- Como se vê do despacho judicial de fls. 55 verso e consequente ofício de fls. 57 a obtenção das listagens relativas ao referido n.º de telefone já tinha sido autorizada por despacho judicial, transitado em julgado, pelo que a mera circunstância da operadora do telefone ser a A... e não a B... não afecta a substância do despacho, nem o efeito do caso julgado.
3- Não se descortina que a ponderação entre os interesses contrapostos da descoberta da verdade em investigação criminal e da privacidade dos cidadãos possa de alguma forma ser afectada pela operadora do número de telefone a que se refere tal ponderação.
4- Deste modo, a M.ª Juiz de Instrução ao decidir (agora) que não era da sua competência autorizar a obtenção das referidas listagens ofendeu o princípio do caso julgado violando o disposto no artigo 672 do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 4 do Código de Processo Penal
5- Termos em que, se não for reparado o recurso ao abrigo do disposto no artigo 414 n.º 4 do Código de Processo Penal, deve revogar-se o despacho recorrido substituindo-o por outro que determine a A... a fornecer as listagens em questão
Questão de fundo
6- Na medida em que os registos cuja obtenção se pretende respeitam a telecomunicações, que estas estão abrangidas por uma garantia de inviolabilidade e sigilo e por uma garantia de reserva de decisão judicial, com consagração constitucional e legal - artigos 32°, n° 4, e 34°, nºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, artigo 17°, n° 2, da Lei n° 91/97, de 1 de Agosto, e artigo 4° da Lei n° 41/2004, de 18 de Agosto - e que a obtenção de tais registos, relativos a dados de tráfego, se traduz numa ingerência nas comunicações, devem os mesmos ser obtidos de acordo com o regime decorrente dos artigos 187° a 190° e 269°, n° 1, al. c), do Código de Processo Penal.
7- Do disposto nos artigos 187°, n° 1, al. e), e 269°, n° 1, al. c), do Código de Processo Penal, decorre ser da competência exclusiva do juiz de instrução, durante o inquérito, ordenar ou autorizar o registo de comunicações (realidade diversa da sua intercepção ou gravação), o que abrange a obtenção do registo de dados relativos a comunicações, que a lei ordinária qualifica como dados de tráfego e coloca a coberto da referida garantia de sigilo e inviolabilidade - artigos 1°, n° 1, 2°, n° 1, al. d), e 4°, nºs 1 e 2, da citada Lei n° 41/2004.
8- Pelo exposto, o despacho recorrido fez errada interpretação e aplicação da norma decorrente dos artigos 187°, n° 1, al. e), e 269°, n° 1, al. c), do Código de Processo Penal, violando-a.
Assim, requer-se a V. Exas. que, dando provimento ao presente recurso, anulem o despacho recorrido, substituindo-o por outro que defira o promovido pelo Ministério Público, no sentido de que é da competência da Mº Juiz de Instrução ordenar ou autorizar que a operadora de serviço telefónico A... remeta aos presentes autos a listagem detalhada das chamadas telefónicas, nos termos promovidos pelo Ministério Público.
Não houve resposta.
Nesta instância o Exmº PGA, apôs o visto.
Foram colhidos os vistos legais e efectuada a conferência.
Cumpre decidir.
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É do seguinte teor o despacho recorrido:
Fls. 64-T: é nosso entendiento que os elementos em causa não se enquadram na previsão do art. 69 nº 1 do CPP (cfr. primeiro voto de vencido de Maria Cândida de Guimarães Pinho de Almeida, do Parecer do Conselho Consultivo da pgr, Nº 21/200), nada havendo a ordenar.
Despacho posteriormente sustentado.
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Conhecendo:
Seguimos o entendimento sufragado no nosso Ac. desta Relação, Recurso nº 716/06, no qual, seguimos o entendimento desta Relação expresso, nomeadamente, no Recurso nº 1265/06, no qual é relator o Exmº colega Dr. Orlando Gonçalves, que também subscreve este como adjunto.
Como a questão é a mesma, e concordando inteiramente com a solução encontrada, com a devida vénia reproduzimos os fundamentos aí aduzidos.
A questão a analisar, consiste somente em saber se uma operadora de telefones deve fornecer cópia de facturação detalhada de determinado número de telefone, somente a ordem do juiz de instrução, ou se o deve fazer a solicitação do Mº Pº.
Estando na era das tecnologias, sendo as comunicações electrónicas muito diferenciadas do sistema clássico de telecomunicações, por vezes difícil se torna enquadrar estes conceitos nos processos normativos existentes.
E daí alguma divergência a nível da jurisprudência.
Mas, na interpretação de uma norma, isto é, na fixação do seu sentido e alcance, não pode o intérprete deixar de atender ao elemento lógico ou racional.
O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem, em ordem à decisão sobre a acusação." (art.262.º, n.º1 do C.P.P.).
A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal (art.263.º, n.º1 do C.P.P.).
Pese embora seja esta a regra quanto à realização de actos no inquérito, o art. 268.º do C.P.P. enumera vários actos que, durante o inquérito, competem exclusivamente ao juiz de instrução, e o art. 269.º, n.º1, do mesmo Código, enumera as diligências que, embora realizadas pelo Ministério Público ou por órgãos de polícia criminal por sua delegação, terão que ser ordenados ou autorizados pelo juiz de instrução.
Nos termos deste art. 269.º, n.º 1, al. c), durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a «intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 190.º».
O art.187.º do C.P.P. estabelece as condições de admissibilidade da intercepção e da gravação de conversações ou comunicações telefónicas e o art.190.º, do mesmo Código, prevê a extensão do regime a comunicações efectuadas por meio técnico diferente do telefone.
O despacho recorrido entendeu que o art. 269.º, n.º1, al. c) do Cód. de Proc. Penal visa tutelar especialmente o teor de conversas, mensagens e correio electrónico, porque apenas este contende com os valores cuja protecção se quis atribuir ao juiz de instrução.
Apenas a intercepção, gravação ou registo do conteúdo das conversações ou comunicações deverá ser ordenada ou autorizada pelo Juiz de instrução, nos termos do art.269.º, n.º1, al.c) do Cód. de Proc. Penal.
Já o recorrente Ministério Público defende que é competência do JIC não só a obtenção de elementos de conteúdo das conversações ou comunicações, mas também a obtenção de dados de tráfego, por esta se traduzir numa ingerência nas telecomunicações abrangida por uma garantia de inviolabilidade e sigilo com consagração constitucional. Como tal, só de acordo com o regime decorrente dos artigos 187.º a 190.º e 269.º, n.º1, al. c) do Código de Processo Penal, podem ser obtidos os dados de tráfego.
Vejamos.
É pacifico que o processo penal é direito constitucional aplicado.
Assim, na interpretação do disposto no art.269.º, n.º1, al. c) do Cód. de Proc. Penal não podemos deixar de atender à parte dos " direitos, liberdades e garantias" consagrados na Constituição da República Portuguesa.
A Constituição da República Portuguesa depois de proclamar, no seu art.1º, a dignidade da pessoa humana como valor no qual se funda a República Portuguesa, declara no seu art.26.º, n.º1, como expressão directa da dignidade da pessoa humana que «A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação».
Em anotação a este preceito constitucional os Prof.s Gomes Canotilho e Vital Moreira salientam que o direito à reserva da vida privada se analisa principalmente em dois direitos menores: " (a) o direito de impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem"- cfr. Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª edição, pág. 181.
A interferência no direito à reserva da intimidade da vida privada pode resultar de uma violação de domicílio ou do segredo da correspondência ou das comunicações.
Porquanto a garantia de inviolabilidade da correspondência ou de outras comunicações proporciona a garantia de que a vida privada se pode exprimir através destes meios de comunicação, o n.º1 do art.34.º, da C.R.P. estabelece que "o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis".
No âmbito desta protecção da intimidade da vida privada o n.º 4 do art.34.º declara que "é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal".
O sigilo das telecomunicações é, assim, tendencialmente absoluto, só cedendo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal, isto é, como meio de aquisição da prova.
A garantia da reserva da vida privada resulta, igualmente, da proibição de utilização de provas obtidas com violação do segredo da vida privada.
Para o processo penal a C.R.P. prevê no seu art.32.º , n.º 8 , que «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações».
O art.126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal considera, por sua vez, que «ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular».
Com o progresso tecnológico a inviolabilidade dos meios de comunicação privada e o sigilo das telecomunicações cada vez mais se relaciona com o tratamento de dados ou elementos envolvidos pelo lado dos utilizadores, nas suas relações com os prestadores de serviços de telecomunicações.
Assim, o art.4.º, n.º1 da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/Código da Estrada, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, estabelece que "as empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações electrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respectivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público".
A Procuradoria Geral da República, no seu parecer n.º 16/94 (cfr. Pareceres, Vol. VI, pág. 546) , citando Yves Poullet e Francoise Warrante, distingue fundamentalmente três espécies ou tipologias de dados ou elementos: "os dados relativos à conexão de rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data, hora, frequência), dados de tráfego; dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, dados de conteúdo)".
Os "dados de tráfego" são definidos no art.2.al. d) da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, como "quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações electrónicas ou para efeitos da facturação da mesma", enunciando o n.º 2 do art.6.º, desta Lei alguns dos elementos que integram aquele conceito.
Enquanto os dados de base, de ligação à rede, são elementos prévios e instrumentais de qualquer comunicação, que estão sujeitos ao sigilo se o utilizador tiver requerido um regime de confidencialidade ao serviço de telecomunicações, os dados de tráfego são já elementos inerentes à própria comunicação, permitindo em tempo real ou a posteriori identificar os utilizadores, o relacionamento directo entre uns e outros através da rede, a localização, a frequência, a data, a hora e a duração.
Os utilizadores são não só os assinantes que estabeleceram um contrato com os serviços de telecomunicações, como terceiros que estabeleceram ligação electrónica com o número dos assinantes.
A Procuradoria Geral da República, no seu parecer n.º 21/2000 (D.R., II Série, de 28 de Agosto), na conclusão 2ª, decidiu que na fase de inquérito os elementos de informação, "...quando atinentes a dados de tráfego ou a dados de conteúdo, apenas poderão ser fornecidos às autoridades judiciárias, pelos operadores de telecomunicações, nos termos e pelo modo em que a lei de processo penal permite a intercepção das comunicações, dependendo de ordem ou autorização do juiz de instrução (artigos 187.º, 190.º e 296.º, alínea c) do Código de Processo Penal".
Os Prof.s Gomes Canotilho e Vital Moreira defendem, também, que a garantia do sigilo das comunicações abrange não apenas o conteúdo das comunicações, mas o próprio "tráfego" como tal (espécie, hora, duração, intensidade de utilização). Aqui as restrições estão autorizadas apenas em processo criminal (n.º4) , e estão igualmente sob reserva de lei (art.18.º- 2 e 3), só podendo ser decididas por um juiz. - cfr. Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, pág. 212.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 7 de Março de 2001 (C.J., ano XXVI, tomo 2, pág. 44), pronunciou-se já sobre esta questão, decidindo que a requisição da facturação detalhada de números de telefones, em inquérito, não é acto que possa ser validamente praticado pelo Ministério Público, necessitando de ser autorizada pelo Juiz de instrução.
E no mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de Dezembro de 2003 e de 23 de Junho de 2004 ( www.dgsi.pt).
Sendo a intervenção do juiz de instrução, no inquérito, direccionada para a defesa dos direitos fundamentais do cidadão, e estando em causa a reserva da vida privada dos utilizadores de telecomunicações através do pedido de informações e facturação detalhada inerentes à própria comunicação, em vista do interesse na realização da justiça, entendemos que para efeitos do disposto no art.269.º, n.º1, al.c) do Código de Processo Penal a competência do juiz de instrução é extensiva à requisição ou autorização de obtenção daqueles dados ou elementos.
Deste modo entendemos que deve proceder o recurso.
Não se analisou a questão prévia suscitada, por falta de elementos, sendo que a mesma fica prejudicada face à decisão do recurso.
Decisão:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra e Secção Criminal, em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que analise os fundamentos da pretensão do Ministério Público constantes de folhas 22 a 24 destes autos e, tendo em vista os factores condicionantes da validade e pressupostos legais de admissibilidade, decida em conformidade.
Sem custas.