Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1065/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ISAÍAS PÁDUA
Descritores: DIVÓRCIO LITIGIOSO
VIOLAÇÃO DO DEVER DE RESPEITO
Data do Acordão: 05/18/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALVAIÁZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 1672º E 1779º, Nº 1, DO C. CIV.
Sumário:

I – Nos termos do artº 1779º, nº 1, do C. Civ. , o divórcio só poderá ser decretado se houver violação culposa dos deveres conjugais ( deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência ) que, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade de vida em comum .
II – O dever de respeito, como dever negativo, é também um dever de não praticar actos ou adoptar comportamentos que constituam “ injúrias indirectas “ , porquanto, a partir do acto matrimonial, o cônjuge passa efectivamente a não estar só na vida social, mas solidariamente ligado, numa parte essencial da sua personalidade, ao seu consorte . E cada um dos cônjuges, na sua vida futura, passa não só a responder pela sua honra e pelo seu bom nome, mas também pela imagem que a sua conduta projecta sobre a pessoa do outro cônjuge .
III – O facto de o réu se encontrar preso não pode configurar uma violação culposa dos deveres conjugais de coabitação, cooperação e assistência, mas pode configurar uma violação culposa do dever de respeito, mormente se se tratar de uma segunda detenção e num espaço de tempo curto.
Decisão Texto Integral:
Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1- A autora, BB, veio instaurar contra o réu, CC, ambos melhor id. nos autos, a presente acção especial de divórcio litigioso, pedindo que fosse decretado o divórcio entre ambos, com base no comportamento culposo do último violador dos deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência.

2- Na sua contestação, o réu defendeu-se negando, em síntese, que o seu comportamento fosse violador dos sobreditos deveres conjugais.
Pelo que terminou pedindo a improcedência da acção.

3- No despacho saneador afirmou-se a validade e a regularidade da lide, tendo-se depois passado à organização da selecção da matéria da facto, que não foi objecto de qualquer censura.

4- Mais tarde, teve lugar a realização do julgamento – com a gravação da audiência.
4-1 A resposta aos diversos pontos (quesitos) da base instrutória teve lugar, sem que tivesse merecido então qualquer reclamação das partes.

5- Seguiu-se a prolação da sentença, a qual acabou, com base nos fundamentos nela aduzidos, por julgar a acção procedente e, em consequência, decretou o divórcio entre a autora e o réu, dissolvendo o casamento que ambos haviam celebrado entre si, declarando o último o principal culpado.

6-Não se tendo conformado com tal sentença, o réu dela interpôs recurso, o qual foi admitido como apelação.
6-1 Nas correspondentes alegações de recurso que apresentou, o réu concluiu as mesmas nos seguintes termos:
“1- O tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto em discussão.
2- Da conjugação de todos os depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, jamais poderiam ter sido dadas as respostas que foram aos pontos 13º, 22º, 23º, 24º, 27º e 28º da Base Instrutória.
3- Factos que o MMº Juiz a quo deveria ter dado como provados e que assim não decidiu porque não quis aceitar, na íntegra, o depoimento da testemunha Tito Marques Duarte, cujo depoimento se encontra registado de voltas 1427 a 2034 do lado A da cassete (cuja transcrição se junta), que mereceu toda a credibilidade ao tribunal.
4- A decisão recorrida alicerça-se em dois aspectos fundamentais: a) Violação, por parte do Réu, do dever de respeito; e b) Separação de facto. Não se verificando, em nossa modesta opinião, nenhum deles.
5- Na verdade, se o R. foi detido pela 2ª vez em Abril de 2001, tendo, até essa data, vivido com a A. e seus filhos menores, não estão verificados os pressupostos de que a lei (art. 1.781, al. a) do C.C.) faz depender a separação de facto como fundamento de divórcio.
6- Depois, o R. não violou reiterada e culposamente o dever de respeito. A carta de 21/8/2000, não poderá assumir qualquer relevo para os autos, uma vez que, após a mesma A. e R. viveram juntos, até à data em que este foi novamente detido, i.é, em Abril de 2001. Tal facto, mesmo a constituir motivo de divórcio, jamais poderia fundamentar a presente decisão, uma vez que a A., com o seu comportamento, mostrou ter perdoado ao R. tal atitude.
7- No que respeita às cartas de 21 e 27 Agosto de 2001 e 7 de Outubro de 2001, das afirmações contidas nas mesmas, não é perceptível qualquer ofensa que, pela sua gravidade e reiteração, comprometa a vida em comum. Mas mais, as afirmações nelas contidas são consequência da atitude da A. que, após a prisão do R. em Abril de 2001, não mais quis saber dele, votando-o ao mais completo ostracismo e delapidando todo o património comum do casal. O que, aliás, resulta da prova produzida nos autos.
8- Pelo que, à A., não era nem é lícito requerer o divórcio, por os factos invocados como fundamento do mesmo, terem sido por si provocados intencionalmente, ou, pelo menos, por a A. ter criado as condições propícias à sua verificação.
9- Impondo-se, ao tribunal a quo, decisão diferente da aplicada, qual seja a de absolvição do R. do pedido contra si formulado pela A., ou quando assim se não entenda, deveria, pelo menos, ter considerado ambos os cônjuges culpados e em igual medida.
10-A douta decisão recorrida, ao decidir como decidiu, violou, por erro de interpretação e/ou aplicação, entre outros de cujo o douto suprimento desde já se requer, os preceitos legais contidos nos artigos 3-A; 655º, nº 1 e 668º, nº1, al. c) do C. P. Civil; e artigos 1.672º, 1.779º; 1.781º, 1.782º al. a) e 1.787º, do Código Civil.
Pelo que, nestes termos...deve o presente recurso obter provimento e, consequentemente, revogar-se a douta sentença recorrida, substituindo-se por outra que julgue a acção improcedente por provada, absolvendo o R. do pedido contra si formulado..”.

7- Nas suas contra-alegações a autora pugnou pela improcedência do recurso, e, consequentemente, pela manutenção do julgado.

8- Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos apreciar e decidir.
***
II- Fundamentação
1- Delimitação do objecto do recurso
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se que se define o objecto e delimita o âmbito dos recursos, isto é, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitados pelas conclusões das alegações dos recorrentes, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. disposições conjugadas dos artºs 664, 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, todos do CPC, bem ainda, a esse propósito, entre muitos outros, Acs. da RC de 5/11/2002; do STJ de 27/9/94, de 13/3/91, de 25/6/80, e da RP de 25/11/93, respectivamente, in “CJ, Ano XXVII, T5, pág 15; CJ, Acs. do STJ, Ano II, T3 – 77; Act. Jur. Ano III, nº 17, pag. 3; BMJ nº 359-522 e CJ, Ano XVIII, T5 –232).
Por outro lado, como resulta do prescrito no nº 2 do artº 660 do CPC, é dever do julgador resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a derimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec, e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.)

2- Ora calcorreando as conclusões do recurso verifica-se que as questões que importa aqui apreciar são, essencialmente, as seguintes:
a) Procedência, ou não, da impugnação da decisão matéria de facto feita pelo apelante (no que concerne às respostas dadas aos pontos 13º, 22º, 23º, 24º, 27º e 28º da Base Instrutória - que doravante designaremos somente por BI)?
b) Face à matéria factual dada como assente, por provada, deverá, ou não, a acção se julgada totalmente improcedente, ou, pelo menos, ser o divórcio decretado com culpa, em igual medida, de ambos os cônjuges (tal como defende o apelante e ao contrário do que foi decidido pelo tribunal a quo) ?

2-1 Apreciemos aquela primeira questão (impugnação da matéria de facto).
O réu-apelante impugna a decisão da matéria de facto, por incorrecta valoração da prova, no que concerne à resposta dada, pelo tribunal a quo, aos pontos (quesitos) 13º, 22º, 23º, 24º, 27º e 28 (defendendo que devem ser dados como provados, ao contrário do que se fez).
Teçamos, a propósito, algumas considerações de cariz teórico-técnico.
Dispõe o artº 690-A do CPC que:
“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida...”
Por sua vez, o artº 712, daquele mesmo diploma legal, prevê, além do mais, que:
“1. A decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outras provas;”
Como é sabido, a possibilidade de documentação da prova foi introduzida no nosso ordenamento jurídico através do DL nº 39/95 de 15/12, com a justificação de assegurar “a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”.
Calcorreando o preâmbulo desse mesmo diploma é possível ainda ler-se que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Dentro de tal contexto e do espirito do diploma atrás citado, e na sequência de um exercício de hermenêutica interpretativa, escreveu-se no acordão desta Relação (Ac. RC de 3/10/2000, in “CJ, Ano XXV, T4 – 28”) “...é preciso não esquecer que a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas inserto no artº 655 do CPC...E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova - seja audio, seja vídeo -, por mais fiel que ela seja das incidências concretas da audiência. Na formação da convicção do juíz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis...”
O que é necessário e imprescindível (como escreve Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág., 348”) é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». No mesmo sentido vai, aliás, também o Tribunal da Relação do Porto, através do acordão de 19/09/2000 (in “CJ, Ano XXV, T4 – 186”), ao traçar os parâmetros balizadores dos poderes da Relação quanto à matéria de facto, e cuja síntese ficou exemplarmente no sumário que foi feito do mesmo e que aqui, com a devida vénia, transcrevemos:
“I- A reforma processual operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, dando nova redacção ao artº 712 do C. P. Civil, ampliou os poderes da Relação quanto à matéria de facto, mas não impõe a realização de novo e integral julgamento, nem admite recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto.
II- Porque se mantêm vigorantes os princípios de imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados”. (sublinhado nosso)
Assim, nessa esteira, e dentro de tais princípios, tem dominantemente a nossa jurisprudência entendido que só quando os elementos dos autos levem inequivocamente a uma resposta diversa da dada na 1ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas dadas pela 1ª instância. Só perante tal situação é que haverá erro de julgamento. Situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estamos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal sindicar (artº 655 do CPC), e pelas razões já supra expandidas (vidé, por todos, Michel Taruffo in “La Prueba De Los Hechos, Editorial Trotta, 2002, págs. 435 e ss”, Ac. RC de 17/02/2002 in “Rec. Apelação nº 3380/2002- 3ª Sec” e ainda, entre outros, os acordãos desta mesma Relação e secção referentes aos recursos de apelação com os nºs 4221/03, 548/04 e 219/04”, dos quais fomos também relator).
Por último, não resistimos, a tal propósito, citar aqui um brilhante artigo do srº. conselheiro dr. Pires da Rosa - na altura ainda juiz desembargador nesta Relação (publicado no Jornal “Comunicar Justiça”, Ano II, nº 1, Janeiro 2003, pag. 13”), onde defende que “como actividade humana que é, feita por homens e mulheres concretos e normais, susceptíveis de errar, a Justiça é ainda e sempre uma questão de fé”, sendo que “em algum momento é preciso acreditar em alguém”. E, mais à frente, ao referir que há um momento em que é preciso assumir um juízo de convicção, escreveu “esse juízo é (...) não a assunção pelo tribunal da 2ª instância de uma nova convicção probatória – a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação da prova inscrito no artº 655, nº 1, do CPCivil – mas tão só a procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem um suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos dos autos, naturalmente) pode exibir perante si”. Para terminar, acrescenta “mesmo, se bem pensarmos, não pode o tribunal da 2ª instância substituir uma razoabilidade, qual seja a afirmada por si próprio. O que ao tribunal de recurso está reservado é apenas substituir uma desrazoabilidade por uma razoabilidade”. Aliás, sempre na esteira do pensamento e do exercício de hermenêutica interpretativa sobre a temática que vimos abordando, veja-se ainda, entre outros, Acs. da RLx de 27/03/2001 e de 13/11/2001, in “CJ, Ano XXVI, T2 – 86 e T2 – 85”, e Ac. RC de 17/12/2002 in “Rec. Apelação nº 3168/2002.”
Posto isto, dado que houve gravação da prova e atento o disposto artº 712, nº 1, do CPC, nada obstará a que, em princípio, se reaprecie a matéria de facto e, se for caso disso, se altere a decisão da 1ª instância.
Mas será que no caso em apreço, e tendo sempre presentes as considerações teóricas acabadas de expôr, se impõe tal alteração da matéria de facto (nos termos em que defende o apelante)?
Vejamos
Pretende o recorrente que seja alterada a resposta que foi dada aos pontos (quesitos) 13º, 22º, 23º, 24º, 27º e 28 da BI, ou seja, que, em todos eles, tal resposta seja “provado”.
Quesitos esses que tinham a seguinte redacção:
Nº 13 “A autora tinha conhecimento de todas as actividades que o réu desenvolvia?”.
Nº 22 “Podendo fazê-lo uma vez que o património comum do casal assim o permitia?”. – tendo sido formulado na sequência do quesito nº 21, onde se perguntava se a autora “não assumiu o pagamento de qualquer advogado para representar o réu?”.
Nº 23 “A A. tem gasto, desde a segunda vez que o réu foi preso, uma quantia superior a esc. 30.000.000$00//€ 149.639,37?”
Nº 24 “Quantia que resultou da venda de inúmeras viaturas?”
Nº 27 “A A. desde que o R. foi detido pela 2ª vez, nunca mais permitiu que este visse ou falasse com os seus filhos”?
Nº 28 “Impedindo-os, de atender os telefonemas que o R. lhes faz”?
Quesitos esses que mereceram como resposta um “não provado”.
Começaremos por dizer que nos casos em que é impugnada a matéria de facto constante das respostas dadas a diversos quesitos, e tal como vem sendo defendido dominantemente pelos tribunais superiores, não se impõe ao Tribunal da Relação que dilucide, ponto por ponto, ou seja, individualmente, cada uma das aludidas respostas, se a decisão final, sobre todas elas, for coincidente (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
Posto isto será então que, no que caso em apreço e tendo sempre presentes as considerações teóricas acabadas de expôr, se impõe a alteração da matéria de facto, no que concerne a tais quesitos, e, nomeadamente, no sentido propugnado pelas apelantes?
A resposta a tal questão passa, assim e desde logo, por analisar e saber se o srº. juíz do tribunal a quo apreciou, ou não, de forma correcta ou válida tal prova, e, especialmente, no que concerne aos pontos concretos acima referidos em que a decisão da matéria de facto foi impugnada.
Começaremos por dizer que não existem elementos probatórios (nomeadamente de índole documental) juntos autos que só por si impusessem, no que concerne a tais factos, um decisão diversa ou então que destruíssem a prova em que assentou a decisão (cfr. als. b) e c) do citado artº 712 do CPC).
Sendo assim, o que a este tribunal, de 2ª jurisdição, compete é, então, apurar se existe uma flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, ou melhor da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau de jurisdição face aos elementos probatórios carreados para os autos.
Como resulta do atrás já expresso, este tribunal (de 2ª jurisdição) não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova, e que, por isso, só estão ao alcance do tribunal “a quo”) mas sim à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.
Vejamos então como o srº Juíz do tribunal a quo fundamentou a respostas a tais quesitos, cuja resposta foi posta em crise.
Na fundamentação das respostas o srº juíz do tribunal a quo exarou o seguinte:
“Esta decisão sobre a matéria de facto controvertida assentou nos depoimentos de Amílcar Fernandes de Oliveira, que trabalhou como mecânico para o R. e sabia que o R., em França, adquiria viaturas acidentadas para peças e para reparar e vender, posteriormente, que o mesmo foi detido, por duas vezes, em França, sendo da última por causa de um barco; de Maria Gomes Dias, mãe da A., que esclareceu como a A. obteve o montante para a caução e como foram pagos os respectivos empréstimos; e de Tito Marques Duarte, que conhece bem o casal de A. e R., sabendo das duas detenções, que a A., há mais de um ano deixou de viver na casa em que vivia com o R., que, após a 2ª detenção não mais quis saber do R., quando veio, após a 1ª detenção, reiniciou a sua actividade empresarial, trabalhando dia e noite”.
Pelo que atrás se deixou exarado, a fundamentação da decisão da matéria de facto feita na 1ª instância não constitui um modelo daquilo que é exigido pelo artº 653, nº 2, do CPC.
É sabido que com a revisão de 95/96 dada a tal normativo foi abandonada a fundamentação minimalista até então seguida, que consistia na simples indicação dos meios de prova convincentes, passando-se a exigir uma análise critica da provas e a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador. Todavia, a falta de fundamentação da decisão da matéria de facto ou a correcção dos erros dessa fundamentação, incluindo a forma de indicação, em termos críticos, dos meios de prova convincentes, continua a depender do requerimento do interessado feito nesse sentido, sendo que lei não estabelece qualquer sanção para essa falta de fundamentação e a Relação não pode oficiosamente ordenar tal correcção (cfr. nº 5 do artº 712 do CPC e neste sentido vidé, por todos, Ac. do STJ de 10/1/2002, in “Rev. Nº 2705/01, 2ª sec., Sumários, 1/2002” e Ac. do STJ de 10/1/2002 in “Rev. Nº 3294/01, 7ª sec., Sumários, 1/2002”).
Ora compulsando os autos verificamos que o apelante não protestou contra qualquer deficiência de fundamentação ou requereu qualquer correcção de erro da mesma, pelo que estava, desde logo, impedido este tribunal de daí extrair consequências (jurídicas), sendo que o apelante-recorrente se limitou no seu recurso a alegar que o tribunal a quo apreciou incorrectamente a prova (no que concerne aos pontos 13º, 22º, 24º, 27º e 28º da BI), defendendo que os respectivos quesitos deveriam ser dados como provados e não com as respostas negativas que lhes foram dadas.
Posto isto, diremos que, apesar de enfermar de algumas deficiências (mais de cariz técnico, nomeadamente pela falta de análise critica das respostas, especialmente das negativas), afigura-se-nos que para além da convicção do julgador da 1ª instância se encontrar razoavelmente fundamentada, auscultando a gravação da prova que foi produzida em audiência de julgamento, podemos constatar que nenhum desvio, em termos de razoabilidade, foi feito quanto à prova ali produzida, ou seja, a convicção alicerçada - traduzida nas respostas dadas aos quesitos e especialmente no que concerne àqueles que foram directamente postos em crise no presente recurso - pelo srº juíz do tribunal a quo encontra-se razoavelmente em sintonia com prova produzida em audiência, não se vislumbrando qualquer desvio gritante ou grosseiro, bem antes pelo contrário.
Ora, face a tal, e considerando, por um lado, que matéria factual objecto dos pontos da BI em causa não está sujeita a qualquer limitação de prova, e, por outro, tendo em conta as considerações atrás expostas sobre as limitações da sindicância que este tribunal de recurso tem sobre a decisão da matéria de facto do juíz da 1ª instância e bem assim o princípio da liberdade do tribunal (do julgador) na apreciação das provas (que aprecia segundo a sua livre convicção), consignado no citado artº 655 do CPC, teremos de concluir que não se vislumbram razões (de direito) suficientemente sérias e fortes para este tribunal alterar a matéria de facto, nomeadamente aquela acima referida, que foi decidida pelo tribunal da 1ª instância e especialmente no que concerne aos factos que resultaram das respostas dadas aos pontos 13º, 22º, 24º, 27º e 28º, razão essa por que o recurso, concernente à parte daquela 1ª questão, terá de naufragar, julgando-se, assim, nessa medida, improcedente.

2-2 Ao quesito 25º, onde se perguntava, “depois disso a A. deixou a casa de morada de família?, foi dada pelo tribunal a quo a seguinte resposta “provado que a A., há mais de um ano, deixou de viver na casa da morada de família”.
Ora essa resposta tal como se apresenta, e tendo em conta, por um lado, que tal saída da casa da morada de família só ocorreu depois da 2ª prisão do réu (ocorrida em meados do ano de 2001 – cfr. respostas aos quesitos, 6º, 7º, 8º e 9º), e, por outro, que a presente acção foi instaurada em 2/1/2002, poderia, assim, parecer haver contradição entre tais respostas e mesmo com a resposta ao quesito 18º, onde consta ou se respondeu que “desde que o réu foi detido pela segunda vez a A. não mais se interessou pelo R.”.
Tal resposta ao quesito 25º “há mais de um ano” só pode compreender-se se for reportada à data em que foi realizado o julgamento e não à data da entrada da acção em juízo, sendo, todavia, que é a esta última que devem reportar-se os factos, atento o princípio da estabilidade da instância consagrado no artº 268 do CPC.
Ora para além de resultar daquelas outras respostas que a autora só deixou de viver na casa da morada da família depois da 2ª detenção do réu, é isso que resulta também efectivamente da prova produzida em audiência (cfr., nomeadamente, o depoimento da mãe da autora, que foi ouvida como testemunha), embora não se saiba a data exacta ou precisa em que tal saída ocorreu.
Desse modo, e para dissipar dúvidas e possíveis contradições entre as respostas, decide-se, à luz do disposto no artº 712, nº 1 al. a), do CPC, alterar a resposta ao quesito 25º no seguintes termos: “provado apenas e com o esclarecimento que a autora algum tempo depois da ocorrência da 2ª detenção do réu, mas em data não concretamente apurada, deixou de residir na casa da morada da família”.

3- Os Factos
Assim, face ao atrás exposto, devem ter-se como provados os seguintes factos (que foram dados como assentes pela 1ª instância, com a alteração atrás introduzida):

3.1 A A. e o R. contraíram, entre si, casamento católico em 9-8-1986 – al. A) dos factos assentes da selecção da matéria de facto, e a cuja peça pertencerão as alíneas seguintes.
3.2 Na constância de tal matrimónio nasceram os seguintes filhos menores: Patrícia Andreia Dias Gomes, a 28-4-1987; Tiago Miguel Dias Gomes, a 4-3-1991 – al. B).
3.3 O R. foi detido e preso, à ordem de um tribunal francês, em Fevereiro de 2000 – al. C).
3.4 Entretanto, foi-lhe concedida a liberdade provisória, mediante a prestação de uma caução de boa conduta de F.F. 500.000 (aproximadamente Esc. 15.000.000$00) – al. D).
3.5 Da prisão, o R., em carta datada de 15-5-2000 e enviada à A., afirma que a A. "merece comer merda e devia dormir na barraca do cão" –al. E).
3.6 Em carta datada de 21-8-2001, referindo-se à A., afirma o R. que "se se apanhar em Vilar Formoso, ou no Aeroporto de Lisboa (...) deve levar com o que calhar em cima das costelas (...) eu trato-lhe do pêlo (...) é mesmo ordinária" – al. F).
3.7 Em carta datada de 27-8-2001, enviada à A., afirma o R. "com tantas ordinarices (...) se eu sair daqui a caminhar, podes estar em apuros" – al. G);
3.8 Por último, por carta datada de 7-10-2001, o R. afirma que a A. precisa é de "chá de marmeleiro" – al. H);
3.9 O R. dirigia-se, regularmente, a França, onde adquiria veículos automóveis de "ocasião" e peças auto – resposta ao quesito 2º da base instrutória, e a cuja peça pertencerão os nºs seguintes.
3.10. As quais fazia, posteriormente, chegar a Portugal, onde as revendia - 3º.
3.11 Para conseguir o dinheiro necessário ao pagamento da caução referida em 3.4 a A. recorreu ao empréstimo de tal quantia junto de familiares e amigos - 5º.
3.12 Em meados de 2001, o R. foi novamente detido, situação em que se mantém, por causa de um barco - 6º, 7º, 8º e 9º.
3.13 A A. ficou com dois filhos menores a seu cargo - 11º.
3.14 Os aludidos empréstimos, para pagamento da sobredita caução, foram pagos, pelo menos em parte, com o produto da venda de bens afectos à actividade comercial de sociedade pertencente, em exclusivo, a ambos os cônjuges - 14º e 15º.
3.15 Logo que foi posto em liberdade (após a 1ª detenção), o R. reiniciou a sua actividade empresarial - 16º.
3.16 O R. trabalhava, dia e noite, para prover às necessidades básicas do seu agregado familiar - 17º;
3.17 Desde a data em que o R. foi detido pela 2ª vez, a A. não mais se interessou pelo R. - 18º.
3.18 Deixando-o detido num país estrangeiro, completamente só - 19º.
3.19 Não se preocupando com o seu estado de saúde - 20º.
3.20 Não contratou, nem assumiu o pagamento de qualquer advogado para representar o R. - 21º;
3.21 A autora algum tempo depois da ocorrência da 2ª detenção do réu, mas em data não concretamente apurada, deixou de residir na casa da morada da família - 25º.
3.22 E abandonou todas as actividades empresariais a que ela e o R. se dedicavam - 26º.

4- O Direito
4-1 Apreciação da 2ª Questão
Face à matéria factual dada como assente, a questão que agora importa apreciar e decidir neste recurso, consiste em saber se estão reunidos os pressupostos necessários para que possa ser decretado o divórcio entre a autora e o réu (tal como foi decidido na sentença recorrida) ou se, pelo contrário, faltam esses requisitos e a acção deve ser julgada totalmente improcedente, não se decretando o divórcio ou, pelo menos, ser o divórcio decretado com culpa, em igual medida, de ambos os cônjuges (tal como defende o réu apelante)?
Vejamos então
Nos termos do estatuído no artº 1779, nº 1, do C. Civil, o divórcio só poderá ser decretado se houver violação culposa dos deveres conjugais que, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade de vida em comum.
Os deveres a que os cônjuges estão reciprocamente vinculados são os de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artº 1672 do CC).
Dado o acerto e a profundidade com que na douta sentença recorrida se discorreu sobre cada um dos aludidos deveres conjugais, por uma questão de economia, dispensamo-nos aqui falar e desenvolver novamente os mesmos, para ali nos remetendo, apenas dando mais alguns retoques ou pinceladas sobre o dever conjugal de respeito, já que foi exclusivamente com base na sua violação que na sentença da 1ª instância se decretou o divórcio (e não também, como se alega nas conclusões do recurso, com base na separação de facto. Na referida sentença após se concluir, na sua parte final, que os cônjuges se encontram actualmente separados de facto, por iniciativa da autora, conclui-se ainda que tal situação não é impeditiva da violação dos sobreditos deveres conjugais por parte de algum dos cônjuges e que essa violação não colabore ou não contribua para a impossibilidade da vida em comum. Aliás nem tal situação de separação de facto poderia servir, no caso em apreço, de fundamento – directo - para decretar o divórcio, já que não foi alegada como causa de pedir, quer pela autora, quer pelo réu, que não deduziu sequer reconvenção).
Dissecando tal dever, escrevem a esse propósito os profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (in “Curso de Direito de Família, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora 2003, págs. 389/390”) (...) «o dever de respeito é um dever ao mesmo tempo negativo e positivo. Como dever negativo, ele é, em primeiro lugar, o dever que incumbe a cada um dos cônjuges de não ofender a integridade física ou moral do outro, compreendendo-se na “integridade moral” todos os bens ou valores da personalidade cuja violação, na lição ainda actual de Manuel de Andrade, constituía “injúria”....Infringe o dever de respeito o cônjuge que maltrata ou injuria o outro; ....Mas o dever de respeito como dever de non facere é ainda, em segundo lugar, o dever de cada um dos cônjuges não se conduzir na vida de forma indigna, desonrosa e que o faça desmerecer no conceito público. Na vigência da “Lei do Divórcio” a nossa doutrina falava aqui de “injúrias indirectas”. Embora não dirigidas ao outro cônjuge, a relevância destas injúrias fundava-se na ideia de que o casal é uma “unidade moral” (como dizia alguma jurisprudência), de tal modo que a dignidade, a honra e a reputação de um dos cônjuges são ao mesmo tempo a dignidade, a honra e a reputação do outro. Transportando-se estas ideias para o direito actual, dir-se-á que o dever de respeito como dever negativo é também o dever de não praticar actos ou adoptar comportamentos que constituam “injúrias indirectas”. Mas o dever de respeito é porém ainda um dever positivo. Não o dever de cada um dos cônjuges amar o outro, pois a lei não o impõe nem pode impor sentimentos. O “mariage de raison” é conforme ao direito, tanto quanto o “mariage d´amour”. Mas o cônjuge que não fala ao outro, que não mostra o mínimo interesse pela família que constituiu, que não mantém com o outro qualquer comunhão espiritual, não respeita a personalidade do outro cônjuge e infringe o correspondente dever».
Aliás, no mesmo sentido podemos ainda citar os profs. Pires de Lima e A. Varela (in “Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª ed., revista e actualizada, Coimbra Editora, 1992, págs. 256/257”) quando escrevem que «o dever de respeito que recai sobre cada um dos cônjuges perante o outro abrange, em primeiro lugar, os direitos inerentes à personalidade (quer como pessoa humana, quer como cidadão), que a comunhão conjugal não afecta. E estende-se ainda aos direitos inerentes à situação de casado, que cada um dos cônjuges adquire com a celebração do casamento. A partir do acto matrimonial, o cônjuge passa efectivamente a não estar só na vida social, mas solidariamente ligado, numa parte essencial da sua personalidade, ao seu consorte. E cada um dos cônjuges, na sua vida futura, passa não só a responder pela sua honra e pelo seu bom nome, mas também pela imagem que a sua conduta projecta sobre a pessoa do outro cônjuge». Vidé ainda, sobre o dever que vimos analisando, para maiores desenvolvimentos, o prof. A. Varela (in “O Direito da Família , Livraria Petrony, 1982, págs. 292 e ss” e Brandão Ferreira Pinto in “Causas do Divórcio, Livraria Almedina Coimbra 1980, págs. 52 e ss”).
A propósito do artº 1779 refere o prof. Pereira Coelho (in “RLJ, 117-92”) “deve, pois, o cônjuge autor alegar e provar, não apenas a objectividade da violação do dever conjugal, senão ainda os factos tendentes a demonstrar a culpa do cônjuge ofensor e a gravidade da violação cometida ou a reiteração das faltas, factos de que possa inferir-se a conclusão de que a vida em comum se acha comprometida em consequência da violação ou das violações praticadas”.
Significa tal que, à luz do artº 342, nº 1, do CC, o autor da acção de divórcio (litigioso) tem o ónus da prova dos factos que correspondem à previsão legal em que se baseia a sua pretensão, quer sejam positivos, quer sejam negativos, e que, desse modo, são constitutivos do seu alegado direito ao divórcio (vidé, a propósito, entre outros, profs. A. Varela. M. Bezerra e S. Nora, in “Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 455”, e assento nº 5/94 do STJ de 26/1/94, publicado no DR, Iª série, de 24/3/94, acerca da violação do dever conjugal de coabitação, e Ac. do STJ de 23/4/1998, in “Acs do STJ , CJ Ano VI, T2-54”).
Ora face ao exposto e sobretudo face ao estatuído no citado artº 1779 podemos concluir que para que proceda um pedido de divórcio, que não tenha como causa de pedir a separação de facto entre os cônjuges, é necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: a) que haja violação de um ou mais deveres conjugais que atrás enunciámos; b) que essa violação seja culposa; c) que o facto ofensivo seja grave ou reiterado; e) e que o facto violador comprometa a possibilidade de vida em comum.
4-2 Postas, para já, estas breves considerações teórico-legais, debrucemo-nos, agora, mais de perto sobre o caso em apreço, subsumindo aquelas aos factos acima descritos dados como assentes.
Ora perante tais factos, podemos resumir a situação configurada, essencialmente, ao seguinte:
O réu, casado com a autora desde o ano de 1986, e de cujo casamento existem dois filhos menores, dirigia-se com regularidade a França, onde adquiria veículos automóveis de “ocasião” e peças para os mesmos, e que depois revendia em Portugal.
No mês de Fevereiro do ano de 2000, numa dessas idas a França o réu veio a ser ali detido e preso.
Ainda na prisão, o réu, em 15/5/2000, enviou uma carta à autora contendo, nomeadamente, as expressões descritas no nº 3.5 do ponto II.
Porém, mais tarde, veio-lhe a ser concedida a liberdade provisória, após ter prestado uma caução de boa conduta no montante então aproximado de esc. 15.000.000$00.
Para reunir esse dinheiro, para pagamento da aludida caução, a autora teve de recorrer a empréstimos contraídos junto de familiares e amigos, e que mais tarde vieram a ser saldados, pelo menos em parte, com a venda de património comum.
Porém, o réu, e após ter reiniciado a sua actividade empresarial, e quando apenas tinha decorrido à volta de 1 ano após a sua anterior libertação, veio ser novamente preso, em meados do ano de 2001, naquele mesmo país estrangeiro, e por causa de um barco; situação em que ainda se encontra.
Entretanto, da prisão, o réu, através das cartas datadas de 21/8/2001, 27/8/2001 e 7/10/2001, profere contra a autora, nomeadamente, as expressões descritas nos pontos 3.6, 3.7 e 3.8.
A partir daquela 2ª detenção, a autora, que ficou aos dois filhos menores ao seu encargo, deixou de se interessar completamente pelo réu, deixando-o à sua sorte, não mais lhe prestando qualquer apoio, tendo, inclusivé, tempos depois, abandonado o lar conjugal, ou seja, a casa que até então fora a morada da família, e bem assim as actividades empresariais a que ela e o réu se dedicavam até então.
Como resulta do já atrás exarado, a presente acção foi instaurada pela autora pretendendo divorciar-se do réu com o fundamento da violação, por parte do mesmo, dos deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência.
Como bem se salientou na sentença recorrida, dado o facto de o réu se encontrar actualmente preso, não pode, a nosso ver, dizer-se que existe por parte do mesmo uma violação culposa dos referidos deveres conjugais de coabitação, cooperação e assistência, pois o cumprimento de tais deveres não está actualmente na sua disponibilidade ou ao seu alcance.
Porém, a nosso ver, o mesmo já não se poderá dizer, e tal como também se concluiu na sentença recorrida, no que concerne ao dever de respeito.
A violação desse dever (de respeito) resulta do seguinte:
Por um lado, do comportamento do réu traduzido nas expressões injuriosas e ameaçadoras da integridade física da autora insertas nas três últimas cartas acima aludidas que lhe dirigiu e que se encontram descritas sob os nºs 3.6, 3.7 e 3.8 do ponto II.
Porém, e ao contrário do que se fez na sentença recorrida, não se considerarão para o efeito as expressões contidas na 1ª carta que o réu enviou à autora, em 15/5/2000, aquando da sua 1ª prisão. E isso porque, não obstante as mesmas serem igualmente susceptíveis de poderem ser consideradas injuriosas e atentórias da dignidade moral da autora, todavia, depois disso, e após o réu ter sido libertado, a autora aceitou o mesmo, continuando a viver com ele. Logo essa atitude da autora deve ser interpretada como tendo, pelo menos de forma tácita, perdoado ao réu tal comportamento, não considerando então o mesmo impeditivo de continuarem a vida em comum, pelo que, nos termos e por força do estatuído no artº 1780, nº 1 al. b), do CC, não poderá o referido comportamento do réu, traduzido nas aludidas expressões contidas naquela 1ª carta que enviou à autora, servir de fundamento ao pedido de divórcio. Todavia, e não obstante isso, esse acto comportamento não poderá deixar de ser tomado em consideração a outro nível, nomeadamente para efeitos de concluir pela reiteração da conduta violadora do dito dever por parte do réu.
Ora as expressões contidas naquelas últimas três cartas dirigidas à autora não poderão deixar, por um lado, de ser consideradas atentórias da integridade física e moral da última e bem assim da sua dignidade, as quais para além de serem em si graves, são igualmente contínuas ou reiteradas, e como tal susceptíveis de só por si comprometerem qualquer possibilidade de vida em comum, e levarem, como tal, ao decretamento do divórcio, por violarem o dever de respeito que é devido à autora e a que o réu, como seu marido, está obrigado.
Por outro lado, todo o comportamento do réu acima descrito relacionado com as duas detenções prisionais em que se viu envolvido, sendo que actualmente ainda se encontra preso, não pode, a nosso ver, deixar igualmente de ser considerado atentório do dever de respeito devido à autora-sua mulher.
E mais ainda se tivermos em conta que tais prisões ocorreram num espaço de temporal muito curto, ou seja, num período de tempo à volta de um ano. E se no que concerne à 1ª prisão não poderemos deixar de fazer e aplicar o mesmo raciocínio que atrás foi feito para a 1ª carta que o réu enviou à autora, o mesmo já não poderá suceder em relação à 2ª prisão que envolveu o réu, já que desta vez não poderá dizer-se que a autora lhe perdoou. Que assim não foi, e ao contrário da atitude atrás descrita que tomou aquando da primeira detenção, basta atentar no facto de que a partir da 2ª prisão a autora nunca mais quis saber do mesmo, desinteressando-se completamente dele e da sua sorte, a ponto de ter, algum tempo depois, abandonado aquela que fora até então a casa da morada da família e bem assim ainda as actividades empresariais a que se vinha dedicando conjuntamente com o réu. Factos esses bem demonstrativos da gravidade que para a autora assumiu o comportamento do réu e da impossibilidade de continuar a viver com ele.
Comportamento da autora perfeitamente compreensível, por um lado, se tivermos em conta que ficou com dois filhos menores ao seu encargo e sobretudo aquilo que passou aquando da 1ª detenção do réu, tendo andado a “bater à porta” de amigos e familiares para deles conseguir obter, via empréstimo, a quantia necessária para o pagamento da caução de boa conduta imposta ao mesmo, de aproximadamente esc. 15.000.000$00, para que ele pudesse sair em liberdade provisória, o qual depois foi saldado com a vendas de bens do património comum do casal, e por outro lado, se tivermos ainda em conta o estigma e a carga social negativa resultantes desse tipo de comportamentos relacionados ou envolvendo situações de prisão.
Dever de respeito esse, traduzido num non facere, ou nas chamadas injúrias indirectas, que, desse modo, o réu violou também, atingindo, com tal, igualmente a honra, a consideração e a dignidade que publicamente são devidas à autora.
A tal conclusão não obsta, a nosso ver, e ao contrário do entendimento perfilhado na sentença recorrida, o facto de não terem sido carreados para os autos elementos probatórios (nomeadamente de teor documental) que nos permitam saber se o réu foi ou não já julgado e condenado (muito embora tudo aponte nesse sentido dado o tempo em que já se encontra preso), e, em caso afirmativo, se a sentença condenatória já transitou ou não em julgado, e ainda, nesse caso, porque crimes foi o mesmo condenado (muito embora tudo aponte que tais prisões, e sobretudo a última, estejam relacionadas com a actividade que então desenvolvia o réu e bem assim com ilícitos cometidos contra o património, pois ficou provado que a última detenção teve a ver com um barco).
É que para o caso em apreço, e pelas razões supra expandidas, não é. A nosso ver, decisivamente relevante o velho princípio de que todo arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória. É que mais do que essa questão técnica-jurídica, relevante no domínio do direito penal, o que está aqui em causa, para efeitos civis, é a situação de prisão em que se encontra os réu e os reflexos que isso tem ou representa, a par dos demais factos atrás relatados que a envolveram, para autora, sua mulher, em termos da sua imagem pública, da sua honra, consideração e dignidade.
Assim, por tudo o exposto, somos levados a concluir que todo o comportamento do réu supra descrito, é violador do dever conjugal de respeito que tinha para com a autora, sua mulher, e que, quer pela sua gravidade, quer pela sua reiteração, compromete, inovidavelmente, qualquer possibilidade de continuação de vida em comum dos cônjuges.
Pelo que se verificam, assim, todos os requisitos legais, para que possa ser decretado, como foi, o divórcio entre a autora e o réu, com a consequente dissolução do casamento que ambos haviam celebrado.
Desse modo, e por tudo o que atrás deixou exarado, afigura-se-nos que o réu deveria ser considerado, único culpado dessa situação (aqui se divergindo ligeiramente da sentença recorrida que apenas o declarou como principal culpado) – cfr. artº 1787, nº 1, do CC.
Todavia, dado que a autora se conformou com a sentença da 1ª instância, dela não tendo interposto recurso, e em obediência, desde modo, ao princípio da “proibição da reformatio in pejus” (que se encontra aflorado no nº 4 do artº 684 do CPC), não se toca em tal parte da decisão recorrida, mantendo-se, portanto, a declaração do réu como principal culpado.
Nestes termos ter-se-á de julgar improcedente o recurso.
***
III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso da apelação, confirmando-se – ainda que por fundamentos não totalmente coincidentes – a sentença da 1ª instância.
Custas pelo réu-apelante (muito embora se deva ter em consideração que o mesmo goza, até ao momento, do benefício de apoio judiciário na modalidade, além do mais, de dispensa total de pagamento de custas).

Coimbra, 18/05/2004