Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
624/07.5GBAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
Data do Acordão: 03/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 152º
Sumário: 1. O tipo definido no art.º 152º do CP tanto consente uma reiteração de condutas que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflicção de agressões físicas ou psíquicas ao cônjuge, como uma só conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar.
2. Os crimes cuja execução se prolonga no tempo, se durante o seu decurso surgir uma lei nova, ainda que mais gravosa, é esta a aplicável a todo o comportamento uma vez que não é possível distinguir partes do facto
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal da Relação de Coimbra
I –
1- No referido processo comum A... foi condenado por violência doméstica ao cônjuge M... na pena de 1ano e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Também foi condenado no pagamento de €143,50 acrescidos dos respectivos juros de mora aos HUC pela assistência médica aí dispensada à ofendida.
2- O arguido recorre, concluindo –
a) Manifesta-se erro notório na apreciação da prova, tal como o define o art.° 410/1 do Código de Processo Penal, porquanto não se produziu a prova suficiente e necessária para a condenação do arguido; na certeza de que o tribunal se baseou unicamente no depoimento da ofendida, nitidamente parcial por ter interesse na sua condenação, e no depoimento do filho da ofendida que com ela vive e a quem se subordina psicologicamente e destarte apenas referir ter ouvido, sem qualquer enquadramento temporal e/ou geográfico, supostas e diversas expressões ofensivas.
b) Os pontos 4 a 10, 14 a 19, 22 e 23 dos «factos provados» não encontram correspondência probatória, ou seja, não ficou provado que o recorrente tenha agredido a ofendida com a violência narrada e de molde a provocar-lhe as lesões que, sequer, a sentença estabelece inapelavelmente enquanto correlativas, ou seja, enquanto denunciadoras de causa/efeito entre as supostas agressões e as lesões apresentadas.
c) Muito menos se estabelecendo a autoria do recorrente na produção das lesões.
d) A exegese feita pelo tribunal no sentido de concluir pela coerência do testemunho de pessoa que se trava de razões contra o recorrente e, ainda, dum filho que não presenciou tais factos, é errónea e atentatória do princípio «in dubio pro reo».
e) Falhando o tribunal no balizar temporal constante dos pontos 4 a 10, 22 e 23 dos «factos provados», não podia aplicar ao caso a actual redacção do art.º 152º do Código Penal por entrada em vigor apenas em 15/9/2007. Mesmo que se partisse do supostamente «provado» constante dos n.ºs 14 a 19 e consequente possibilidade de aplicação da actual redacção do art.º 152. °, sempre haveria que ponderar a sua integração como meras ofensas à integridade física.
f) Necessário se torna, pois, que se reitere o comportamento em determinado período de tempo.
g) No caso ainda que se entenda possível a ocorrência de alguns dos factos indiciados, é evidente que não se verifica o aludido crime de maus-tratos/violência doméstica, previsto e punido pelo art.º  152.° Código Penal.
h) Mormente não se concretizou/indiciou a prática reiterada, a dimensão dos referidos hematomas e nódoas negras, nem as consequências directas de tais lesões na capacidade de trabalho da ofendida.
i) As lesões psíquicas também não foram minimamente identificadas, não se verificando nem uma particular intensidade ou gravidade das lesões nem a sua prática reiterada.
j) Da mesma forma não se encontra demonstrado as datas, ainda que aproximadas, dos supostos maus tratos, as consequências concretas, a génese de tais pretensos comportamentos, antes avançando a acusação pelo terreno da generalização, o que consubstancia a nulidade da sentença no particular deste crime.
k) O tribunal violou o disposto no art.º 152/1, alínea a) do Código Penal.
3- Respondeu o Ministério Público pelo infundado do recurso, no que foi secundado pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II –
1- Decisão de facto inserta na sentença –
a) Factos provados –
1) O arguido e M... contraíram [entre si] matrimónio em 30 de Abril de 1977;
2) R... nasceu em 30 de Julho de 1997 e é filho do arguido e de M...;
3) R... reside na casa dos pais;
4) No decurso do ano de 2004, após [a ofendida] se ter convencido de que o arguido mantinha relações extra-conjugais, o arguido, em diversas ocasiões não concretamente determinadas, sacudiu a M...;
5) Desferiu-lhe bofetadas;
6) E empurrões;
7) E pontapés;
8) E chamou-lhe “puta”, “vaca”, “mula”;
9) E disse-lhe expressões do teor: “quem manda aqui sou eu”; “não vales nada”; “não prestas para nada”;
10) E do teor “qualquer dia faço-te o mesmo que o teu pai fez à tua mãe”, referindo-se ao facto de a mãe da ofendida ter ficado paraplégica, na sequência de uma agressão perpetrada pelo respectivo marido e pai da ofendida;
11) A partir dessa altura o arguido deixou de contribuir para as despesas correntes do lar, com alimentação, vestuário e educação do filho mais novo, levando M... a trabalhar horas suplementares na fábrica que a emprega;
12) Em consequência desta situação, M... a tem vindo a sentir medo do arguido;
13) E a sentir tristeza;
14) No dia 24 de Novembro de 2007, pelas 18H00, no interior da casa de morada de família do casal composto pelo arguido e por M..., sita na V…, Anadia, na sequência de discussão havida entre ambos, o arguido dirigiu-se a M... e disse-lhe expressões do teor: “não vales nada”, “sempre comeste à minha conta”, “vou pôr-te junto à tua mãe”, “eu mato-te”.
15) De seguida, o arguido deu encontrões à ofendida;
16) O que provocou a queda desta última;
17) Quando a M... se encontrava caída, o arguido agarrou-lhe a cabeça e bateu com ela no chão;
18) O arguido desferiu um pontapé na nádega direita M...;
19) E pegou em um pau e com ele desferiu uma pancada na cabeça da M...;
20) Como consequência directa e necessária destes comportamentos ocorridos em 24 de Novembro de 2007, resultaram, para a M...: na face, na hemifronte direita, área escoriada com 3 cm x 2 cm; no membro inferior direito, no quadrante infero-interno da nádega, equimose fortemente violácea com 8 cm x 6 cm;
21) O que demandou para cura o período de 6 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional;
22) Em consequência destes comportamentos ocorridos em 24 de Novembro de 2007, nessa mesma data, M... foi assistida no serviço de urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra;
23) Contando-se em €143,50 o custo desta assistência;
24) Com aqueles comportamentos, o arguido agiu deliberada e conscientemente, com o propósito de molestar física e psiquicamente a ofendida, quer na sua honra e consideração, quer no seu corpo e na sua saúde;
25) Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e que incorria em responsabilidade criminal;
26) O arguido exerce a profissão de comercial por conta de outrem, auferindo a remuneração média mensal de cerca de € 520,00;
27) Habita casa própria;
28) Despende, mensalmente, a quantia de cerca de €220 para pagamento de crédito para aquisição de habitação;
29) Encontra-se separado de M..., mas reside na mesma casa;
30) Paga, mensalmente, prestação de alimentos devida ao filho menor, no valor de cerca de € 180;
31) O arguido não tem averbada ao seu registo criminal qualquer condenação.
b) Factos não provados –
1) P... nasceu em 16 de Agosto de 1977;
2) O arguido dirigiu a M... expressão do teor “se queres comer vai trabalhar, porque o meu salário é só para mim”;
3) O arguido arrastou a ofendida para o exterior da habitação;
c) Motivação da decisão de facto –
Os factos dados como provados foram assim considerados tendo em atenção a prova produzida e analisada em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do tribunal (art.ºs 127.º e 355.º do CPP), mas também tendo em atenção o valor conferido pela lei à prova pericial (art.º 163.º do CPP). Designadamente:
O vínculo matrimonial existente entre o arguido e M... ficou assente perante a certidão do respectivo assento de casamento junta aos autos.
Também o respectivo assento de nascimento relevou quanto à filiação e idade de R....
Quanto às circunstâncias de tempo, modo e local dos eventos, foram atendidas as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de julgamento, em conjugação e no confronto com os depoimentos das testemunhas M... (ofendida) e P..., filho do arguido e da queixosa.
Assim, a ofendida descreveu de forma circunstanciada o desenrolar dos eventos, tendo o filho corroborado que já em outras ocasiões presenciara, designadamente, expressões do teor das supra descritas, que enunciou.
Crível se mostra, portanto, o depoimento de M..., ademais, ponderadas as lesões apresentadas nos boletins clínicos e constantes do exame médico-legal levado a efeito. Aliás, o próprio arguido admitiu a existência, no dia 24 de Novembro de 2007, de um desentendimento entre o casal, reconhecendo ter empurrado aquela, levando-a a cair, por esta o ter tentado atacar com uma vassoura, explicação que vai, em parte, ao encontro do depoimento da ofendida, sendo certo que se mostra pouco merecedor de crédito que o arguido a tenha apenas empurrado, por um lado, pela própria narração, mais escorreita, dos eventos, feita pela mesma, por outro, atendendo à natureza das lesões apresentadas, compatíveis com o acto de agarrar a cabeça e bater com ela no solo e de desferir pontapés.
Para determinação das consequências da actuação do arguido na pessoa da ofendida e assistência médica prestada, relevou o respectivo depoimento, em conjugação com o teor do documento intitulado “factura”, junto aos autos, emitido pelos Hospitais da Universidade de Coimbra, bem como o aludido relatório de exame médico-legal.
A consciência da ilicitude e vontade de acção extrai-se do próprio desenrolar dos eventos e seu protelar no tempo, não sendo crível outra actuação que não a deliberada ou sequer que o arguido desconhecesse as consequências do seu comportamento para com a ofendida ou a punibilidade do comportamento, do geral conhecimento dos cidadãos.
As condições pessoais e económicas do arguido fixaram-se com base nas declarações do próprio.
No que respeita à ausência de antecedentes criminais do arguido, foi atendido o certificado do registo criminal junto aos autos.
Os factos não provados consideraram-se como tal em virtude de se não ter produzido prova sobre os mesmos.
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2- O arguido discorda da decisão de facto naquilo que o compromete com um comportamento criminoso, invocando o erro notório na apreciação da prova nomeadamente na vertente da violação do princípio «in dubio pro reo».
Apela também para a errada aplicação do tipo na sua versão actual (versão da Lei 59/2007, de 4/9).
3- Apreciação –
3.1- O recorrente faz apelo à presença na sentença do erro notório na apreciação da prova, nomeadamente na versão da violação do princípio «in dubio pro reo», vício enunciado no art.º 410º/2 alínea c) do Código de Processo Penal.
 Contudo, fá-lo sem razão. É que o referido vício há-de resultar do texto da decisão de facto por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, i é, sem o lançar de mão de outros elementos constantes dos autos [excepção feita à prova tarifada].
O erro notório é o erro evidente constante da decisão por a fundamentação ir num sentido diverso do assentamento dos factos, quando claramente se violam as regras da lógica ou da experiência comum ou «leges artis» nas quais se inclui o princípio «in dubio pro reo».
Ora nada disto se verifica no caso, sendo a decisão lógica e racional. E o recorrente faz errada invocação do princípio «in dubio pro reo», cuja violação tem de resultar do texto da decisão recorrida. A sua violação traduz-se, como se disse, em erro notório na apreciação da prova.
O princípio entronca neste outro da presunção de inocência e assenta na ideia de que a impunidade do culpado é mais tolerável do que a condenação dum inocente. Noutros termos, pode afirmar-se que é resultante de dois postulados processuais, o da exigência dirigida ao juiz de decidir sempre e o que tem por inadmissível uma condenação penal em que o tribunal se não haja convencido da efectiva responsabilidade e culpabilidade do arguido.
Decorre do princípio que todos os factos relevantes para a decisão que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
O princípio tem aplicação no domínio probatório e significa que a dúvida se resolve a favor do arguido e só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida na apreciação das provas decidir nessa situação contra o arguido.
Nas circunstâncias a invocada violação do princípio só seria de atender se resultasse da sentença, mormente da respectiva fundamentação, que o tribunal num estado de dúvida sobre algum ou alguns pontos da matéria de facto sobre eles optasse por entendimento desfavorável ao arguido.
Ora não é isto que ocorre, sendo patente na fundamentação que o tribunal não manifesta dúvidas sobre a ocorrência dos factos que deu por provados.
3.2 - Com base nos depoimentos prestados o arguido discorda da decisão sobre a matéria de facto nos segmentos do provado que o comprometem criminalmente.
Contudo, ao discordar da decisão de facto, o recorrente não cumpriu com o ónus de impugnação nos termos previstos nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal.
Por estes segmentos legais o impugnante da decisão de facto terá de indicar, para além dos pontos de facto que tem por mal julgados [o que o recorrente fez], as provas que imponham decisão diversa. E quando as provas tenham sido gravadas, a indicação daquelas provas há-de fazer-se por referência aos suportes magnéticos e pela concreta indicação das passagens das declarações/depoimentos em que se apoia a impugnação [o que o recorrente não fez].
O recorrente não pode pretender que este tribunal faça um segundo e novo julgamento arrasando por completo o decidido na 1ª instância. A um novo julgamento nestes termos opõem-se os princípios da oralidade e da imediação.
Não tendo o recorrente dado cabal cumprimento ao ónus de impugnação nos termos referidos e não havendo lugar a despacho de aperfeiçoamento (cfr. art.º 417º/3 do Código de Processo Penal) este tribunal não conhecerá da impugnação da decisão de facto; antes partirá desta, tal como se lhe apresenta, para conhecer do mais que vem alegado.        
3.3- Quanto à integração típica obtida na sentença, temo-la por correcta.
O tipo legal de crime de violência doméstica inclui comportamentos que de forma reiterada ou intensa lesam a dignidade humana do cônjuge.
O bem jurídico por ele protegido é a saúde do cônjuge nas suas vertentes física, psíquica e mental.
Como refere a exposição de motivos da proposta de Lei n.º98/X “na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, não sendo imprescindível uma continuação criminosa”. Efectivamente a actual redacção do tipo ( art.º 152º do CP) estatui-se que «Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
O tipo assim definido tanto consente uma reiteração de condutas que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflicção de agressões físicas ou psíquicas ao cônjuge, como uma só conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar.
E como se diz em Acórdão do STJ invocado pelo recorrente[1], os maus tratos físicos consistem em actos de violência física, enquanto os maus tratos psíquicos consistem em actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, tais como as injúrias, as humilhações, as ameaças, etc.
Ora no caso verificam-se todas estas violências, mesmo que se não tivesse verificado a situação reportada ao ano de 2004.
E sendo diversa a previsão nos tipos vigentes em 2004 e em 24/11/2007 bem andou o tribunal em aplicar a actual redacção, já que com as sucessivas alterações legislativas que lhe foram sendo introduzidas o que se verificou foi uma sucessão de leis pois o facto sempre foi punível por todas elas.
A doutrina tradicional é a de que nos crimes cuja execução se prolonga no tempo, se durante o seu decurso surgir uma lei nova, ainda que mais gravosa, é esta a aplicável a todo o comportamento uma vez que não é possível distinguir partes do facto[2].
III –
Decisão –
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça que se fixa em 5 UCs.
Coimbra, 


           [1] Ac do STJ de 4/2/2004/ Processo 2857/03-3
           [2] cfr. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. II, p. 32 e 62; vol. I, p. 278 ed. Verbo, 1998/1997.