Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
638/06.2TACBR.CL
Nº Convencional: JTRC
Relator: CALVÁRIO ANTUNES
Descritores: CRIME DE ROUBO
ARMA
CASO JULGADO
Data do Acordão: 10/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 29º, 5,CRP, 275º, 1 CP, 3º, 1 AL. D) D.L. 207-A/75
Sumário: Estamos perante uma situação de caso julgado quando o arguido condenado por um crime de roubo com arma é julgado por ter sido encontrado cerca de uma hora depois prática daquele crime por elementos das forças policiais que procediam já à respectiva investigação, num momento em que ainda trazia consigo a arma que havia utilizado
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
Para julgamento em processo comum singular, o Ministério Público acusou:
1- C..., solteiro, natural de Sé Nova, Coimbra, residente na R…, Coimbra e actualmente preso no EPC;
2- P..., divorciado, natural de Eiras, Coimbra, residente na T…, Coimbra;

imputando-lhes a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pela conjugação dos artºs 275º, nº 1 do Código Penal e 3º, nº 1, alínea d), do DL nº 207-A/75, de 17.04 e actualmente pelo artº 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23.02.
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Procedeu-se a julgamento, tendo sido decidido julgar “parcialmente procedente a acusação, e em consequência, condeno o arguido C... pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pela conjugação dos artºs 275º, nº 1 do Código Penal e 3º, nº 1, alínea d), do DL nº 207-A/75, de 17.04 na pena de vinte e dois meses de prisão efectiva.”
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2. Inconformado, o arguido C... interpôs o presente recurso, formulando nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. Pela douta sentença de que se recorre, foi o Recorrente condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida.
2. Contudo, salvo o devido e merecido respeito, não se pode concordar com a mesma.
3. O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não valorou devidamente os depoimentos das testemunhas J... e Z..., inspectores da Polícia Judiciária.
4. Pois não considerou a circunstância de tais testemunhas terem afirmado peremptoriamente que já haviam deposto sobre os factos em apreço no Tribunal de Cantanhede.
5. Estes factos estão de tal forma interligados com aqueles pelos quais o Recorrente foi condenado no foro de Cantanhede, não fazendo sentido a sua autonomização.
6. Com efeito, a qualificação jurídica de ambos os factos é exactamente a mesma - crime de detenção de arma proibida -, sendo prevista e punida pelos mesmos preceitos legais.
7. A arma é a mesma - espingarda de marca "J. Gaucher", calibre 9mm, com o número de série 196714, com o cano e a coronha serrados.
8. As provas que instruíram os dois processos e que sustentaram as condenações do Recorrente são basicamente as mesmas.
9. Duas das testemunhas, comuns aos processos em apreço, prestaram depoimento sobre os mesmos factos.
10. Relativamente à prova documental, o Colectivo de Cantanhede já havia considerado o auto de revista e apreensão e o relatório de exame à arma de fogo, juntos aos presentes autos.
11. O circunstancialismo fáctico sub iudice teve lugar na sequência do assalto a uma farmácia, apenas uma hora depois e dentro da mesma comarca.
12. O lapso temporal corresponde apenas ao desfecho do facto histórico julgado em Cantanhede.
13. De acordo com as regras da experiência, é de esperar que o Recorrente, após o assalto, não se desfaça imediatamente da arma.
14. O Tribunal a quo efectuou apenas uma apreciação perfunctória da matéria de facto relevante para a decisão.
15. Se tivesse constatado todas estas evidências, a decisão não seria condenatória, pelo que se verifica erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410°, nº 2, alínea c) do CPP.
16. Pelo contrário, teria sido absolvido, de acordo com o princípio "ne bis in idem", plasmado no art. 29° nº 5 da CRP.
17. Tem igualmente assento no art. 4° do Protocolo nº7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e art. 14º nº7 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
18. Consubstanciado na máxima de que "Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime", tem subjacente razões de justiça, segurança e paz jurídica.
19. Pelo que a sentença penal ditada no processo em que se julgou um concreto arguido por um determinado facto, tem força de caso julgado, excluindo forçosamente um segundo processo contra o mesmo sujeito pelo mesmo facto.
20. A factualidade em apreciação é indubitavelmente indissociável do pedaço de vida julgado em Cantanhede, formando com ele uma unidade de sentido, pelo que já transitou em julgado.
21. Atendendo aos poderes de cognição do juiz, é certo que o Colectivo de Cantanhede se debruçou sobre a operação de detenção do ora Recorrente e a inerente apreensão da arma.
22. O tipo legal de crime em apreço é de realização permanente, cujo preenchimento se inicia com a aquisição da arma e se mantêm enquanto durar esta forma de actuação.
23.Verifica-se uma só acção que se protela no tempo.
24.Neste sentido, a utilização e detenção da arma configura uma única actividade criminosa, punível apenas no início da execução.
25. Na audiência de julgamento, em sede de disposições introdutórias, a defesa invocou a existência de caso julgado relativamente ao processo que correu termos no Tribunal Judicial de Cantanhede.
26. Esta questão foi decidida de modo perfunctório, com recurso a conceitos abstractos, carecidos de concretização no domínio da factualidade.
27. O Principio da Legalidade exige que o Tribunal fundamente, de forma objectiva, o processo de formação da sua convicção, de modo a que a decisão não seja arbitrária.
28. A decisão recorrida padece de um vício de falta de fundamentação, infringindo o art. 205º nº1 da CRP e os arts.374° nº2 e 379° nº1 al.a) do CPP.
29. Ainda assim, a sentença deverá sempre ser declarada inconstitucional por violação flagrante do imperativo constitucional- art.29º nº 5 da CRP.
30. Não interpretando a realidade factual no sentido de a subsumir ao conceito de "mesmo crime", o Julgador violou esta norma constituciona1.
31. Ofende também o preceituado no art. 4° nº1 do Protocolo nº7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
32. Pelo que deverá ser revogada e proferida decisão de absolvição do Recorrente pela prática do crime de detenção de arma proibida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”
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3 Após a notificação prevista no artº 411, nº 6, veio o Magistrado do Ministério Público oferecer a resposta, de fls. 206/207, onde sustenta que a sentença recorrida não merece reparos, devendo manter-se inalterada.

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Admitido o recurso, a fls. 208, foi ordenada a remessa dos autos a este Tribunal.
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4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer que emitiu (fls. 214/225), pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.

Notificados, nos termos e para os efeitos consignados no artº 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido não se pronunciou.

Foram colhidos os vistos legais.
Os autos foram à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

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II. Fundamentação.

1. Delimitação dos poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:
É hoje entendimento pacífico que as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Por isso, temos, como

Questões a decidir:
a) A recorrente levanta a questão da existência de erro notório na apreciação da prova, bem como violação do princípio in dubio pro reo, pelo que deverá o arguido ser absolvido - conclusão 15º e 16º.
b) Além disso refere ainda que existe falta de fundamentação da decisão, infringindo-se o disposto no artº 205º, nº1 da CRP e artºs 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a) do CPP - conclusão 28.
c) Se existe violação do disposto no artº 29º, nº 5 da CRP, ou seja, saber se estamos perante a existência de caso julgado relativamente ao processo que correu termos no Tribunal Judicial de Cantanhede - conclusão 29.

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2. Na sentença recorrida foram dados como provados e não provados os seguintes factos (por transcrição):

“1- No dia 11.04.2005, cerca das 18.30 horas, depois de haver participado num assalto à Farmácia V…, o arguido C..., transportando o arguido P..., dirigiu-se da zona do Ingote para a zona dos Olivais em Coimbra, conduzindo o veículo automóvel de matrícula Fiat, modelo Tempra, de matrícula …
2- O arguido C... ainda trazia consigo a arma que havia utilizado no dito assalto, uma espingarda, de calibre 9 mm, com o nº de série 196714, com um cano de alma lisa de 112 mm de comprimento, em bom estado de funcionamento, com a coronha e o cano cortados.
3- Por volta das 19.00 horas ambos os arguidos se encontravam num café sito na C… quando, na sequência da reacção ao dito assalto, chegaram agentes da PJ de Coimbra.
4- Então, os agentes policiais encontraram a dita arma, põe debaixo do tapete atrás do banco do pendura daquele Fiat Tempra.
5- O arguido C... tinha também consigo, no bolso do blusão que trazia vestido, um cartucho de calibre 9 mm sem qualquer vestígio de percussão.
6- O arguido C... tinha a arma com a coronha e os canos serrados para mais facilmente a ocultar, proporcionar maior velocidade de disparo e de lhe ampliar o leque de dispersão do projéctil.
7 - O arguido C... sabiam que não podia trazer consigo a mencionada arma pois era proibida devido às transformações sofridas.
8- O arguido C... agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tal comportamento é proibido e punido criminalmente.
9- O arguido C… foi julgado nos seguintes processos:
9.1- processo comum colectivo nº 3/94, do Tribunal de Círculo de Coimbra, onde foi condenado, por decisão de 01.02.1994, pela prática dos crimes de violação e de sequestro na pena única de 5 anos de prisão;
9.2- processo comum colectivo nº 8/97, do 2º Juízo do Tribunal de Círculo de Coimbra, onde foi condenado, por decisão de 20.03.1997, pela prática dos crimes de roubo, furto de uso de veículo e detenção de estupefacientes na pena única de 3 anos e 7 meses de prisão;
9.3- processo comum colectivo nº 22/97, do 1º Juízo do Tribunal de Círculo de Coimbra, onde foi condenado, por decisão de 21.05.1997, pela prática do crime de consumo de estupefacientes na pena de 20 dias de multa;
9.4- processo comum singular nº 57/98, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, onde foi condenado, por decisão de 18.06.1998, pela prática do crime de detenção de estupefacientes para consumo na pena de 50 dias de prisão;
9.5- processo comum colectivo nº 57/97, do 3º Juízo do Tribunal de Círculo de Coimbra, onde foi condenado, por decisão de 24.05.1999, pela prática de 3 crimes de roubo e um de sequestro na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão; em cúmulo jurídico com outros processos na pena única de 8 anos de prisão.
9.6- processo comum colectivo nº 161/05.2GBCNT, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, onde foi sido condenado, por decisão de 30.05.2006, por factos ocorridos em 04.04.2005, 05.04.2005, 07.04.2005, 10.04.2005, 11.04.2005, pela prática de 4 crimes de roubo qualificados consumados, 1 crime de roubo qualificado tentado e um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 7 anos de prisão.
10- no processo 760/94, do TEP de Coimbra, por decisão do de 28.01.2002, o arguido C... havia sido libertado condicionalmente pelo período decorrente até 02.06.2005; tal liberdade condicional foi-lhe revogada por decisão de 02.03.2007.
11- A arma por cuja detenção o arguido foi condenado no processo comum colectivo nº 161/05.2GBCNT, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede era a mesma que foi encontrada pelos agentes da PJ no interior do veículo nos moldes supra descritos.
12- O arguido C... é solteiro, trabalhava como serralheiro mecânico e está actualmente preso no EPC em cumprimento de pena.
13- A arma encontrava-se registada em nome de CM… .
*
Nenhuns outros factos com relevância para a decisão se provaram em audiência, nomeadamente, não se demonstrou que:
a- o arguido P... participou no corte dos canos e da coronha da arma;
b- o arguido P... sabia que a arma se encontrava no interior do automóvel;
c- a arma foi subtraída ao dono entre 29 de Março e Abril de 2005.
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Motivação
A decisão do tribunal fundou-se na análise crítica e conjugada das declarações do arguido C... e dos depoimentos das testemunhas J…, V..., F..., Z… e A....
O arguido P... gozou o «direito ao silêncio».
O arguido C...admitiu a prática dos factos relatando como tinha feito o assalto na Farmácia e depois foi surpreendido pela PJ quando já tinha estacionado o veículo e estava dentro do café; sustentou que o arguido P... não sabia da arma.
As testemunhas J…, V..., F..., Z… e A..., agentes da PJ, relataram o modo como surpreenderam o arguido e encontraram a arma dentro do carro e o cartucho na posse do arguido C… .
Os depoimentos destas testemunhas mostraram-se sérios, serenos, coerentes e consistentes pelo que mereceram credibilidade no âmbito do conhecimento decorrente do respectivo contacto com a situação em apreço.
A situação pessoal do arguido C... foi apurada a partir das suas próprias declarações.
Foi igualmente analisado o exame de fls 20 acerca das características da arma, bem como o auto de revista de fls 8 e o auto de apreensão de fls 10.
Antecedentes criminais: CRC.
No que respeita aos factos não provados os meios de prova produzidos em audiência de julgamento não permitem uma afirmação convicta acerca da sua ocorrência ou resultam de diferente perspectiva da realidade apurada.
Na verdade, o arguido P... optou pelo silêncio, o arguido C... libertou-o (o P… «não tinha nada a ver com ísto») e os agentes da PJ nada de concreto sabiam acerca da imputada actuação deste arguido.”
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3- Apreciando.

3.1. Como resulta da motivação e das conclusões o recorrente discorda da apreciação efectuada pelo tribunal a quo quanto ao facto de não ter considerado a existência de caso julgado, pois que no entender do recorrente, os factos que levaram á sua condenação neste processo já haviam sido apreciados e fundamentado uma condenação no processo de Cantanhede.
Por isso e uma vez que caso esta fundamentação do recorrente seja procedente, tal levará á absolvição do arguido/recorrente, este tribunal de recurso, começa por apreciar, em primeiro legal esta questão.
Ou seja, vamos analisar se se verificou ou não a violação do caso julgado, isto é se se violou ou não o artº 29º, nº 5 da CRP, como defende o recorrente.
Vejamos então.
Conforme acima se referiu, o arguido/recorrente, C..., foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pela conjugação dos artºs 275º, nº 1 do Código Penal e 3º, nº 1, alínea d), do DL nº 207-A/75, de 17.04 na pena de vinte e dois meses de prisão efectiva. Tal condenação baseou-se nos factos de: “1- No dia 11.04.2005, cerca das 18.30 horas, depois de haver participado num assalto à Farmácia V…, o arguido C..., transportando o arguido P..., dirigiu-se da zona do Ingote para a zona dos Olivais em Coimbra, conduzindo o veículo automóvel de matrícula Fiat, modelo Tempra, de matrícula … .
2- O arguido C... ainda trazia consigo a arma que havia utilizado no dito assalto, uma espingarda, de calibre 9 mm, com o nº de série 196714, com um cano de alma lisa de 112 mm de comprimento, em bom estado de funcionamento, com a coronha e o cano cortados.
3- Por volta das 19.00 horas ambos os arguidos se encontravam num café sito na Calçada do Gato, em Lordemão quando, na sequência da reacção ao dito assalto, chegaram agentes da PJ de Coimbra.
4- Então, os agentes policiais encontraram a dita arma, põe debaixo do tapete atrás do banco do pendura daquele Fiat Tempra.
5- O arguido C... tinha também consigo, no bolso do blusão que trazia vestido, um cartucho de calibre 9 mm sem qualquer vestígio de percussão.
(……….)
8- O arguido C... agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tal comportamento é proibido e punido criminalmente.
(……………)
11- A arma por cuja detenção o arguido foi condenado no processo comum colectivo nº 161/05.2GBCNT, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede era a mesma que foi encontrada pelos agentes da PJ no interior do veículo nos moldes supra descritos.
Para fundamentar tais factos o tribunal “a quo” explicou que o seu convencimento se ficou a dever ao facto de “O arguido C...admitiu a prática dos factos relatando como tinha feito o assalto na Farmácia e depois foi surpreendido pela PJ quando já tinha estacionado o veículo e estava dentro do café; sustentou que o arguido P... não sabia da arma.
As testemunhas J..., V..., F..., Z… e A..., agentes da PJ, relataram o modo como surpreenderam o arguido e encontraram a arma dentro do carro e o cartucho na posse do arguido C… .
Os depoimentos destas testemunhas mostraram-se sérios, serenos, coerentes e consistentes pelo que mereceram credibilidade no âmbito do conhecimento decorrente do respectivo contacto com a situação em apreço.
A situação pessoal do arguido C... foi apurada a partir das suas próprias declarações.
Foi igualmente analisado o exame de fls. 20 acerca das características da arma, bem como o auto de revista de fls. 8 e o auto de apreensão de fls. 10.
Antecedentes criminais: CRC.”
Por outro lado, a fls.37/50 dos autos está junta certidão do acórdão, com nota de trânsito em julgado, proferido no Processo Comum (Tribunal Colectivo), nº 161/05.2GSCNT, 2º juízo, do Tribunal Judicial de Cantanhede, a que a sentença ora recorrida se refere, no âmbito do qual o recorrente C... foi condenado como autor de 4 crimes de roubo qualificado, um crime tentado de roubo qualificado e um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 7 anos de prisão.
Analisado tal acórdão, constatamos com facilidade que um dos crimes de roubo por que ali foi condenado, refere-se aos factos ocorridos no dia 11 de Abril de 2005, mais concretamente ao "assalto" da Farmácia Veiga, na localidade do Botão, a que se faz expressa referência na sentença recorrida.
Naquele acórdão (de fls.37/50) foi dado como provado, além do mais, que:21°. No dia 11 de Abril de 2005 por volta das 17 horas e 30 minutos o arguido C... e outro indivíduo dirigiram-se para a localidade do B…; ali chegados/ resolveram assaltar a Farmácia V….
22°. Para tal entraram ambos no interior das instalações da referida farmácia/ colocando-se o arguido C... junto a vitrina, de costas para o balcão, enquanto o outro indivíduo se dirigiu para junto do balcão e dirigindo-se à empregada de nome G..., disse-lhe ''isto é um assalto; passa para cá o dinheiro todo".
23°. De imediato o arguido C... apontou-lhe a arma já referida; receando pela sua vida e integridade física, a G... retirou o dinheiro que se encontrava na caixa registadora e colocou-o dentro de um saco de tipo mochila que lhe foi dado pelo outro indivíduo.
24°. Pondo-se o arguido C… e o outro indivíduo em fuga, levando consigo a quantia de cerca de quinhentos euros. E ainda se acrescentou e decidiu no mesmo, que "a arma de fogo e cartuchos subsistentes examinados a fls. 1632 e segs. São declarados perdidos a favor do estado, por terem servido e poderem servir para a prática de outros de crimes como os ora julgados, ao abrigo do art 109º, nº 1, do Código Penal, ordenando-se a sua entrega ao Comando Distrital da P.S.P,/ de acordo com o art 7º, nº 1, do D.L nº 207-A/75 de 17/4."
Assim sendo, face a tal factualidade, a questão que agora se nos coloca é a de determinar se estamos perante uma situação de caso julgado penal da primeira decisão, a qual levará a impedir um segundo julgamento relativamente aos mesmo factos, com parece ter sucedido no Tribunal de Coimbra. Isto é, houve ou não violação do princípio ne bis in idem?
Olhando para os factos, parece que poderemos dizer que o arguido e ora recorrente, nas circunstâncias descritas na sentença, foi encontrado pelos elementos da Polícia Judiciária, numa situação que poderá classificar-se como de "quase flagrante delito". Na verdade, o recorrente foi encontrado cerca de uma hora depois de ter "assaltado" uma farmácia na localidade do Botão, área da comarca de Cantanhede, por elementos da Polícia Judiciária que procediam já à respectiva investigação, num momento em que, no dizer da sentença recorrida, o recorrente/arguido ainda trazia consigo a arma que havia utilizado no dito assalto, encontrando-se "num compasso de espera num café e com a arma escondida no carro”( ... )"
Face a tal que concluir?
Como se sabe, o Código de Processo Penal de 1987, ao contrário do que sucedia com o Código de Processo Penal pré-vigente, não regula de forma expressa ou implícita o instituto jurídico do caso julgado ou da exceptio judicati, sendo certo que só em duas disposições se refere àquele instituto, designadamente no artigo 84º, ao estatuir que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhece do pedido cível constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis, e no artigo 467º, n.º 1, ao estabelecer que as decisões penais condenatórias, uma vez transitadas, têm força executiva.
É evidente que a circunstância de a lei adjectiva penal vigente não regular o caso julgado não significa que o processo penal prescinde daquele instituto, consabido que nesta concreta área do Direito se sente com muito maior intensidade e acuidade a necessidade de protecção do cidadão contra situações decorrentes da violação do caso julgado, instituto que também encontra fundamento num postulado axiológico, qual seja o da justiça da decisão do caso concreto, para além de outros, com destaque para a garantia da segurança e da paz jurídicas.
Aliás, é a nossa Constituição da Republica, na senda da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, que consagra, de forma irrefutável, o caso julgado penal, ao dispor no seu artigo 29º, n.º 5, que: “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime”.
A lei fundamental ao referir-se ao duplo julgamento e ao mesmo crime carece, contudo, de interpretação, a qual, conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, deverá ter em especial atenção que os preceitos constitucionais não podem ser considerados isoladamente e interpretados a partir de si próprios, devendo assim considerar-se as conexões de sentido que se estabelecem entre os seus preceitos, bem como a concepção e ratio de cada divisão da Constituição.
Por outro lado, certo é também que a tarefa interpretativa dos preceitos constitucionais não prescinde igualmente de uma visão global dos ramos de direito em que se projectam, e que ao fim e ao cabo pretendem nortear.
Quanto à expressão “julgado mais do que uma vez”, atenta a situação concreta dos autos em que o que está em causa são dois julgamentos e respectivas sentenças, a mesma não suscita nem impõe labor interpretativo. Refira-se, em todo o caso, que a lei fundamental ao aludir ao duplo julgamento não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase processual “rainha”, isto é, o julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo.
Porém, ter-se-á que ter em conta que “mesmo crime” não deve ser interpretado no seu estrito sentido técnico-jurídico, mas sim em função do valor que o princípio assume para a dignidade da pessoa humana, de forma a garantir-se, como diz Frederico Isasca, que “aquele que viveu a dramática experiência de um processo penal, que não possa mais, por aquele acontecimento, voltar a ser incomodado, assegurando-se, assim, ad futurum, a paz jurídica ao cidadão” (vidé Frederico Isasca, Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, págs. 220-221).
Ou seja, como é referido no douto acórdão do STJ (de 15/03/2006 Proc. 05P4403, relator Cons. Oliveira Mendes, www.dgsi.pt), que nos permitimos transcrever: «O termo “crime” não deve pois ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal. Fixado o sentido do termo “crime”, convirá agora precisar o que se deve entender por comportamento referenciado ao “facto”, como expressão da conduta penalmente punível, consabido que o instituto do caso julgado só funciona quando existe identidade de “facto” e de sujeitos constantes de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão ou, por outras palavras, o que se deve entender por mesmo “objecto processual” (...) À luz do que ficou dito, decorre que o conteúdo e limites do caso julgado só podem ser fornecidos pelo objecto do processo; sendo o objecto do processo o mesmo estaremos perante a exceptio judicati, caso contrário não ocorrerá violação do princípio ne bis in idem. Ora, comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível, não pode deixar de ser o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. Daqui resulta que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do “objecto do processo”».
Ou seja, temos de concluir que realidade histórica, "o pedaço de vida" que foi submetido a julgamento e que determinou a condenação do arguido na sentença recorrida, é ainda o mesmo que já antes fora objecto do processo pelo qual o arguido foi julgado e condenado, para além de outros crimes, também pelo crime de detenção da mesma arma proibida.
Ora, sendo o objecto do processo formado por todos os factos perpetrados pelo arguido até à decisão final que de forma directa se correlacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, os factos que não foram apreciados e que deviam tê-lo sido por fazerem parte integrante do mesmo "recorte de vida" não podem ser posteriormente apreciados, uma vez que essa apreciação constituiria flagrante violação do princípio ne bis in idem
Consequentemente, sendo um crime de "execução permanente", as concretas circunstâncias em que a arma veio a ser apreendida "pertencem" ainda aos factos ocorridos na área da comarca de Cantanhede, existindo entre estes e aqueles outros (correspondentes à sua localização no café e posterior detecção/apreensão da arma) um fio condutor que cremos se mantinha ainda no momento em que o recorrente veio a ser abordado pelos agentes da Polícia Judiciária.
Constituindo os factos julgados nestes autos uma unidade com aqueles que foram apreciados e julgados no Processo Comum (Tribunal Colectivo), nº161/05.2GBCNT, 2° juízo, do Tribunal Judicial de Cantanhede, com trânsito em julgado, não pode deixar de se considerar consumido o respectivo direito de acusação, pois a todos aqueles factos se deve ter por estendido o valor daquela decisão. (neste sentido, vidé Acs. deste TRC, de 28-04-2009,Processo: 8/06.2IDCTB.C1, Relator: Dr. Fernando Ventura; Ac. de 28-10-2008, Proc nº 3/04.6TATCS, relator Dr. Ribeiro Martins; Ac. de 28-05-2008, Procº nº14/03.9IDAVR.C1, Relator: Dr. Alberto Mira; Ac. de 15-03-2006, Processo nº 4337/05, Relator: Dr. Belmiro Andrade; Acórdão do TRL de 04-06-2008, Processo: 3715/2008-3, Relator: Varges Gomes, todos in www.dgsi.pt)
Pelo exposto, verificando-se uma situação de caso julgado, impõe-se a absolvição do recorrente do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pela conjugação dos arts 275°, nº1 do Código Penal e 3º, nº1, d) do DL nº 207-A/75, de 17.04, por que foi julgado e condenado na sentença ora em recurso, que se declarará, neste recurso.
3.2. Sendo procedente o recurso no que se refere a esta questão, ficam prejudicadas todas as outras de que se não conhecerá, pois que o objectivo pretendido pelo arguido/recorrente, que era a sua absolvição, neste autos, já se encontra alcançado.

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III – Decisão.

Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso do arguido C..., e, por verificação da excepção do caso julgado, altera-se a decisão recorrida, no tocante ao crime de detenção de arma proibida, de que, consequentemente, se absolve o arguido.
Sem custas.
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(Processado e revisto, pelo relator, o primeiro signatário)

Coimbra, 21 de Outubro de 2009.



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(Calvário Antunes)



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(Mouraz Lopes)