Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3214/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: CURA MARIANO
Descritores: ARRESTO
IMPUGNAÇÃO PAULIANA EM CASOS DE PARTILHA DE HERANÇA
RESPONSABILIDADE DOS HERDEIROS DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 11/29/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 406º E 407º, Nº 2, DO CPC ; 616º, NºS 1 E 2, DO C. CIV. .
Sumário: I – A providência cautelar do arresto visa uma apreensão de bens integrantes da garantia patrimonial de um crédito, cuja satisfação se encontra em risco.
II – O artº 407º, nº 2, do CPC permite que o arresto possa ser deduzido como preliminar da acção pauliana, demonstrando o requerente os factos que tornam provável a precedência desta, ou seja os requisitos da impugnação .

III – Pode, por isso, pedir-se o arresto de bens já alienados pelo devedor, como preliminar da acção pauliana em que se impugne o acto de alienação .

IV – A consequência da procedência da impugnação pauliana não é a possibilidade de executar os bens no património do herdeiro ao qual eles foram adjudicados, nos termos do artº 616º, nº 1, do C. Civ. , mas sim a responsabilização dos herdeiros intervenientes de má fé na partilha impugnada, pela perda da garantia patrimonial dos débitos dos co-herdeiros, nos termos do artº 616º, nº 2, do C. Civ., uma vez que esta situação é equivalente ao desaparecimento dos bens alienados pelo devedor do património do adquirente .

Decisão Texto Integral:

Requerentes: A...
B...
C...
D...

Requeridas: E...
F...
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As requerentes deduziram procedimento cautelar de arresto, alegando, em síntese, o seguinte:
- G... foi condenado em processo crime a pagar, a título de indemnização, por ter morto em 2-11-2002 H..., as seguintes quantias:
a A..., €. 40.000 e juros de mora;
a B..., €. 30.000 e juros de mora;
a C..., €. 35.000 e juros de mora;
a D..., €. 30.000 e juros de mora.
- Em 17-7-2003, por escritura de partilhas, G... e as requeridas efectuaram a partilha dos bens da herança deixada por I..., tendo todos os bens imóveis sido adjudicados às requeridas e a G... apenas o usufruto de um dos imóveis, recebendo tornas.
- G... faleceu em Setembro de 2004.
- Ao efectuarem deste modo a partilha as requeridas e G... tiveram como finalidade evitar que aquele pudesse satisfazer o montante da indemnização que viesse a ser determinada pela morte de H....
- Estão reunidos os requisitos para os requerentes deduzirem impugnação pauliana à partilha efectuada, de modo a poderem executar os referidos imóveis no património das requeridas.
- Estas efectuaram diligências no sentido de transmitirem a terceiros os referidos imóveis, o que causa receio deste património poder ser dissipado.
Concluíram, pedindo o arresto dos referidos quatro imóveis.

Produzidos os meios de prova arrolados pelos requerentes foi proferida decisão, sem audição prévia das requeridas, que decretou o arresto requerido.

Notificadas desta decisão, vieram as requeridas interpor recurso, com os seguintes fundamentos:
“- Os prédios mandados arrestar são de propriedade plena a exclusiva das ora agravantes.
- E isto por virtude de escritura de partilha datada de 17/Julho/2003, feita no seguimento, da morte de I..., ocorrida no dia 8/Dezembro/2002.
- Nessa escritura, o então ainda vivo, G..., recebeu, além do usufruto como consta de tal escritura, todas as tornas e isto em quantitativo superior e a que chegaram a acordo.
- Todos os outorgantes na aludida escritura de partilha agi-ram, usando de um direito que a lei lhe confere e com a maior boa fé.
- Aquele G... foi, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 19/Maio/2004, entre o mais, condenado a pagar indemnizações aos ora agravados.
- Deste modo, nenhum dos prédios das Agravantes pode ou deve responder por qualquer dos créditos dos Agravados, pois os prédios não pertencem e nem nunca pertenceram àquele G... e nem qualquer das Recorrentes tem qualquer responsabilidade por qualquer dessas dívidas de seu pai, concretizadas muito tempo depois da escritura.
- Nunca, em suma, poderia e deveria ter sido decretado qual-quer arresto”.
Concluíram, pelo provimento do agravo e consequente revogação da decisão que decretou o arresto dos quatro imóveis.

Os requerentes apresentaram contra-alegações, onde pugnam pela manutenção da decisão recorrida.

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OS FACTOS
Encontram-se provados os seguintes factos Não se inclui a matéria contida nos pontos 14 e 15 da decisão recorrida, uma vez que a mesma não se traduz em factos, contendo apenas juízos de valor e conclusões.:

I - Por sentença judicial do Tribunal Judicial de Castelo Branco, que corre termos pelo 3º Juízo, com o proc. n.º 47/2002.2GGCTB, transitada em julgado, G..., foi condenado pela prática do crime de homicídio qualificado previsto e punido no artigo 132.º, n.º 1 e 2, alínea d), do Código Penal, na pessoa de H..., na pena de 17 anos e um mês de prisão, posteriormente, reduzida a medida da pena para doze anos e um mês, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

II - G... foi ainda condenado pela mesma sentença, no pagamento de uma indemnização cível aos familiares do falecido H..., aqui Requerentes, que se discrimina da forma seguinte:
– À viúva A..., a quantia de €. 40.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros, à taxa de 7%, desde a data da notificação até ao dia 01 de Maio de 2003 e a partir daí até efectivo pagamento, à taxa de 4%.
- Ao filho B... a quantia de €. 30.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros à taxa de 7% desde a data da notificação até ao dia 1 de Maio de 2003 e a partir daí até efectivo pagamento à taxa de 4%.
– À filha C... a quantia de €. 35.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros à taxa de 7% desde a data da notificação até ao dia 01 de Maio de 2003 e a partir daí até efectivo Pagamento à taxa de 4%.
- Ao filho D..., a quantia de €. 30.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros à taxa de 7% desde a data da notificação até ao dia 1 de Maio de 2003 e a partir daí até efectivo pagamento, à taxa de 4%.

III - As circunstâncias do referido crime de homicídio ocorreram no dia 31 de Outubro de 2002, tendo a vitima, H..., vindo a falecer no dia 02 de Novembro de 2002.

IV - Oportunamente, fora requerida no processo acima mencionado, a prestação de caução económica por parte do então arguido G..., em 27 de Novembro de 2002.

V - Em resposta, o então arguido, fez juntar aos respectivos autos, documento comprovativo de partilha judicial, realizada em 17 de Julho de 2003, no Segundo Cartório Notarial de Castelo Branco, por óbito da cônjuge de G..., ocorrido no dia 08 de Dezembro de 2002, com o teor descrito nos pontos VII a X.

VI - À falecida, I..., sucederam como únicos herdeiros legitimários o arguido e cônjuge sobrevivo, G... e as filhas F... e E....

VII – Estes, por escritura procederam à partilha dos bens pertencentes ao casal da falecida e de G..., constituído por dois prédios urbanos e dois rústicos, que são os seguintes:
NÚMERO UM: Prédio urbano, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 799, com o valor patrimonial e atribuído de mil duzentos e dois euros e trinta cêntimos, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco;
NÚMERO DOIS: Prédio urbano, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 684, com o valor patrimonial e atribuído de quatrocentos e oitenta e quatro euros e seis cêntimos, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco;
NÚMERO TRÊS: Prédio rústico, inscrito na matriz cadastral sob o artigo 243 da Secção D, com o valor patrimonial e atribuído de vinte e um euros e vinte e sete cêntimos, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco;
NÚMERO QUATRO: Prédio rústico, inscrito na respectiva matriz cadastral sob o artigo 242 da Secção D, com o valor patrimonial e atribuído de vinte e quatro euros e oitenta cêntimos, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco.

VIII - Atribuiu-se aos referidos prédios o valor igual ao seu valor patrimonial, pelo que o valor dos bens a partilhar foi de €. 1.732,51;

IX - Sobre aquele montante, a meação do viúvo G... foi de €. 866,26, sendo a herança da falecida dividida em três partes iguais pelo cônjuge e filhas no montante de €. 288,65 cada;

X - Os herdeiros legitimários procederam à partilha do seguinte modo:
- Ao interessado G..., foi adjudicado o usufruto da verba atrás identificada sob o número um, no valor de €. 360,71, mais as tornas devidas.
- À interessada E..., foi adjudicada a nua propriedade de metade da verba relacionada sob o número um e metade de cada uma das verbas números dois, três e quatro, no valor global de €. 685,90, repondo €. 397,15, em tornas.
- À interessada F..., foi adjudicada a nua propriedade de metade da verba número um e metade de cada uma das verbas números dois, três e quatro, no valor global de €. 685,90, repondo €. 397,15, em tornas.

XI - G... veio a falecer em Setembro de 2004, sendo que o usufruto que incidia sobre o prédio acima identificado como número um, se extinguiu por morte do usufrutuário.

XII - O arguido G... nunca pagou qualquer quantia dos montantes referidos em II aos aqui Requerentes.

XIII - Ao realizarem a escritura de partilha extrajudicial, ficando apenas o arguido G... com o usufruto do prédio urbano acima identificado como número um, o então arguido e suas duas filhas, aqui Requeridas, pretenderam unicamente evitar que aquele fosse proprietário de qualquer bem imóvel que pudesse satisfazer o montante global de indemnização que se viesse a apurar pelo assassínio de H..., ou seja, €. 135.000,00, devidos aos aqui Requerentes.

XIV - Os Requerentes tomaram conhecimento que as aqui Requeridas tomaram diligências no sentido de venderem a terceiros os imóveis sobreditos.

XV - À cerca de dois meses, que se encontram afixados cartazes, pertencentes a uma sociedade de mediação imobiliária, em todos os prédios acima identificados, com a designação de “vende-se”.

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O DIREITO
Neste recurso compete verificar se os bens das requeridas integravam a garantia patrimonial dos créditos dos requerentes e, portanto, se poderiam ou não ter sido arrestados para defesa dessa garantia.
A providência cautelar especificada de arresto visa uma apreensão de bens integrantes da garantia patrimonial de um crédito, cuja satisfação se encontra em risco (artº 406º, do C.P.C.).
Em princípio, o arresto deve recair sobre bens do devedor (artº 619º, nº 1, do C.C.), pois, são estes que integram a garantia geral do cumprimento das obrigações por ele assumidas (artº 601º, do C.C.).
Contudo, excepcionalmente, o credor pode também requerer o arresto contra o adquirente de bens do devedor.
Na verdade, o artº 619º, nº 2, do C.C. Esta norma decalcou o 2º parágrafo, do artº 2905, do C.C. Italiano.
, veio introduzir no nosso sistema a possibilidade de ser requerido arresto de bens do adquirente, desde que tivesse sido já impugnada a sua aquisição, no que foi acompanhado pela revisão do C.P.C. de 1967, decorrente da publicação do C.C. de 1966 que, no artº 403º, nº 2, consagrou igual possibilidade. Perante os novos efeitos da impugnação pauliana, nomeadamente a permanência dos bens no património do seu adquirente, passou a admitir-se o arresto de bens de terceiro, alheio à relação de crédito, como incidente da acção pauliana. Exigiu-se, como requisito da proposição desta providência cautelar de apreensão dos bens transmitidos a terceiro, no património deste, que previamente já tivesse sido deduzida a impugnação pauliana.
Como posteriormente se verificou que esta exigência podia colocar em risco o secretismo necessário ao procedimento de arresto A sua dedução, obrigatoriamente por apenso ao processo de impugnação, possibilitaria o seu conhecimento pelo requerido, interveniente naquela acção. Vide, ressaltando essa violação do secretismo necessário à eficácia da providência cautelar especificada de arresto, RITA CRUZ, em “O arresto”, em “O Direito”, Ano 132, vol. I e II, pág. 160.
, o D.L. 180/96, de 25 de Setembro, passou a permitir no nº 2, do artº 407º, do C.P.C. Na revisão operada pelo D.L. 329-A/95, de 12 de Dezembro, mantinha-se a redacção do nº 2, do anterior 403º, do C.P.C., a qual transitava ipsis verbis para o nº 2, do artº 407º.
, que o arresto também pudesse ser deduzido como preliminar da acção pauliana, demonstrando o requerente os factos que tornassem provável a procedência desta, ou seja os requisitos da impugnação Esta alteração impõe uma interpretação correctiva do nº 2, do artº 619º, do C.C., cuja redacção mantém a consonância com o anterior nº 2, do artº 403º, do C.P.C..
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Pode, pois, pedir-se o arresto de bens já alienados pelo devedor, como preliminar da acção pauliana em que se impugne o acto de alienação.
Foi esta pretensão cautelar que foi deduzida no presente caso.
Provou-se a existência de créditos dos requerentes sobre G..., entretanto falecido.
Perante o decesso do devedor, são responsáveis os herdeiros deste, mas apenas com os bens da herança, como, de forma original, se consagrou no nosso direito positivo (artº 2071º, do C.C.) Sobre as razões históricas desta solução de responsabilidade limitada do herdeiro no nosso direito pode ler-se JOÃO GOMES DA SILVA, em “Herança e sucessão por morte”, pág. 143 e seg..
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Os bens cujo arresto se requereu não pertencem à herança do devedor, G..., mas antes da realização da respectiva partilha, integraram a herança deixada por morte de I..., da qual aquele era um dos interessados. Isto é, o devedor nunca foi proprietário dos bens cujo arresto se requereu para garantia da satisfação dos seus débitos, tendo apenas sido co-titular duma herança, entretanto partilhada, que incluía esses bens.
Ora, da impugnação do acto de partilha Sobre a impugnabilidade destes actos, enquanto modificativos de direitos, vide VAZ SERRA, em “Responsabilidade patrimonial”, no B.M.J. nº 75, pág. 245-248, ROSARIO NICOLÒ, em “Tutela dei diritti”, em “Commentario del codice civile”, dirigido por António Scialoja e Giuseppe Bianca, pág. 244-245, da ed. de 1960, e LINA GERI, em “Dela tutela dei diritti”, em “Commentario del Codice Civile”, Livro VI, tomo 4, 2ª ed. da UTET, pág. 152-153.
, em que se assiste à transformação de um direito indiviso sobre uma totalidade num direito exclusivo sobre uma parte daquela, ou o seu equivalente, deve considerar-se que o direito que integrava a garantia patrimonial do credor (o direito à quota) se modificou com o acto de partilha, não existindo já no património dos intervenientes na partilha, pelo que é aplicável a consequência prevista no artº 616º, nº 2, do C.C., relativamente aos herdeiros em que se verifique o requisito da má fé VAZ SERRA, em “Responsabilidade patrimonial”, no B.M.J. nº 75, pág. 248-249.
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Na verdade, a consequência da procedência da impugnação pauliana não é, pois, a possibilidade de executar os bens em causa no património do herdeiro ao qual ele foi adjudicado, nos termos do artº 616º, nº 1, do C.C., mas sim a responsabilização dos herdeiros intervenientes de má-fé na partilha impugnada, pela perda da garantia patrimonial dos débitos dos co-herdeiros, nos termos do artº 616º, nº 2, do C.C., uma vez que esta situação é equivalente ao desaparecimento dos bens alienados pelo devedor do património do adquirente.
Assim, apesar de não ser possível que os imóveis em causa passem a integrar a garantia patrimonial dos créditos dos requerentes sobre a herança de G..., da procedência da impugnação pauliana de que este arresto é incidental, pode resultar a responsabilização das requeridas pela impossibilidade de satisfação daqueles créditos, sendo essa responsabilidade garantida pelo património destas (artº 601º, do C.C.), onde se incluem os imóveis cujo arresto se encontra em discussão.
Há, pois, que apurar se nesta providência cautelar se indiciam suficientemente os requisitos para as requeridas, herdeiras a quem foram adjudicados os bens cujo arresto se requer, poderem ser responsabilizadas, nos termos do artº 616º, nº 2, do C.C..
São requisitos de procedência da impugnação pauliana, que o crédito seja anterior ao acto impugnado (artº 610º, nº 1, a), do C.C.), que deste resulte a impossibilidade para o credor obter a satisfação integral do seu crédito (artº 610º, nº 1, b), do C.C.) e, no caso do acto ser oneroso, se tiver sido praticado de má fé (artº 612º, do C.C.).
O acto impugnado (a partilha) ocorreu em 17-7-2003 e os créditos dos requerentes constituíram-se com a morte de H... em 2-11-2002, uma vez que os créditos de indemnização por responsabilidade civil nascem quando se verifica o evento determinante da obrigação de indemnizar, pelo que os créditos são de origem anterior ao acto impugnado.
A impossibilidade para o credor de obter a satisfação do seu crédito afere-se através duma avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto a impugnar. É o peso comparativo do montante das dívidas e do valor dos bens conhecidos do devedor que indicará se desse acto resultou a mencionada impossibilidade. Se aquele montante for superior ao valor dos bens do devedor, verifica-se uma lesão da garantia patrimonial do credor que permite a utilização da impugnação pauliana; mas se for inferior ou igual, deve considerar-se que aquela garantia não foi afectada pelo acto praticado, não se verificando um prejuízo que justifique qualquer reacção.
O artº 611º, do C.C., estabelece que “incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a provar de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor” Esta regra específica já constava do artº 1043º, do Código de Seabra, tendo-se apenas previsto que a prova do valor dos bens penhoráveis existentes no património do devedor incumbe não só a este, mas também ao terceiro adquirente, como resultava do nº 4, do artº 168º, do Anteprojecto de Vaz Serra (B.M.J. nº 99, pág. 33).
Apesar desta norma especial não constar do C.C. Espanhol e do C.C. Brasileiro, a doutrina e a jurisprudência dominante nestes países defendem igual solução, referindo-se muitas vezes ao artº 661º, do nosso C.C. (vide FERNÁNDEZ CAMPOS, em “El fraude de acreedores: la acción pauliana”, pág. 47-61, da ed. de 1998, TORRES PEREA, em “Pressupuestos de la accíon rescisoria”, pág. 217-220, da ed. de 2001, e YUSSEF CAHALI, em “Fraudes contra credores”, pág. 190-201, da 3ª ed.).
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Aliviou-se o credor da prova do facto negativo da inexistência de bens no património do devedor suficientes para, através deles, se obter o pagamento das dívidas conhecidas deste, competindo antes ao devedor ou ao terceiro interessado demonstrar que aquele tem bens suficientes para garantir esse pagamento.
Ao credor bastará apenas provar a existência das dívidas conhecidas, procedendo a impugnação se o devedor ou o terceiro interessado não ripostar com a prova da existência no seu património de bens cujo valor seja igual ou superior ao montante dessas dívidas.
Neste procedimento cautelar apurou-se a existência dos créditos dos requerentes, que somam €. 135.000, tendo resultado que da partilha efectuada apenas coube ao devedor o usufruto de um prédio a cuja propriedade foi atribuído o valor de €. 1.202,30.
Não foi alegada pelas requeridas a existência de outros bens no património do devedor após a efectivação da partilha impugnada, pelo que se conclui que do acto impugnado resultou a impossibilidade manifesta do património do devedor garantir a satisfação dos créditos dos requerentes.
Quanto à necessidade da prova da má fé, questiona-se a natureza dos actos de divisão, como a partilha de herança ou da comunhão conjugal ou de divisão de coisa comum, de modo a apurar da necessidade de demonstrar a má fé dos seus outorgantes, quando destes actos resultou debilitado o património garante. É que só quando a impugnação recai sobre actos onerosos é que é necessária a prova da má fé dos seus outorgantes (artº 612º, nº 1, do C.C.).
A dúvida resulta do facto de nas partilhas de heranças não existir neste acto plurilateral uma verdadeira troca de prestações, mas sim uma modificação de direitos, nomeadamente quanto ao seu objecto e conteúdo.
Contudo, uma vez que destes actos resulta para todos os outorgantes a transformação de um direito indiviso sobre uma totalidade num direito exclusivo sobre uma parte daquela, ou o seu equivalente, verifica-se que à “saída” de um direito corresponde a “entrada” de outro, na esfera jurídica de todos os participantes, pelo que o acto deve ser considerado como oneroso Neste sentido opinaram VAZ SERRA, em “Responsabilidade patrimonial”, no B.M.J. nº 75, pág. 248, ARMANDO LEMOS TRIUNFANTE, em “Dos meios conservatórios da garantia patrimonial do credor”, pág. 69, da ed. de 1996, LUIGI COSATTINI, em “La revoca degli atti fraudolenti”, pág. 172, da ed. de 1939, C. MASSIMO BIANCA, em “Diritto civile”, vol. 5º, pág. 447, da ed. de 1995, ROSARIO NICOLÒ, em “Tutela dei diritti”, em “Commentario del codice civile”, dirigido por António Scialoja e Giuseppe Bianca, pág. 244-245, da ed. de 1960, pág. 244-245, LINA GERI, em “Dela tutela dei diritti”, “Commentario del Codice Civile”, Livro VI, tomo 4, 2ª ed. da UTET, pág. 153, CIPRIANO COSSU, em “Revocatoria ordinaria (azione)”, em “Digesto-Discipline Privatistiche”, pág. 470, da 4ª ed., UGO NATOLI, em “Azione revocatoria. Revocatoria ordinária”, em “Enciclopedia del Diritto”, vol. IV, pág. 897, da ed. de 1959, e YUSSEF CAHALI, em “Fraudes contra credores”, pág. 311-313, da 3ª ed..
Neste sentido dispunha expressamente o artº 256º, nº 7, do articulado mais extenso do Anteprojecto de Vaz Serra (B.M.J. nº 99, pág. 278).
O acórdão do S.T.J. de 5-6-2003, no site www.dgsi.pt, relatado por QUIRINO SOARES, decidiu no mesmo sentido.
O acórdão da Relação de Guimarães de 15-10-2003, na C.J. XXVIII, tomo 4, pág. 279, relatado por ROSA TCHING, qualificou uma partilha de bens, precedida de renúncia à doação feita por conta da quota disponível como um negócio misto, sujeito ao regime dos actos gratuitos, se o valor dos bens doados exceder o valor dos bens partilhados.
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Esta qualificação exige a demonstração da má fé dos seus autores, nos termos do artº 612º, nº 1, 1ª parte, do C.C.. Mas se é imprescindível a má fé do devedor, já, relativamente aos terceiros condividentes, não é necessária a má fé de todos eles para que o acto seja impugnável VAZ SERRA, em “Responsabilidade patrimonial”, no B.M.J. nº 75, pág. 248-249, que efectuou proposta nesse sentido no artº 256º, nº 7, do articulado mais extenso do seu Anteprojecto (B.M.J. nº 99, pág. 278).
Em sentido contrário, exigindo a má fé de todos os intervenientes, por considerarem o negócio unitário, vide LUIGI COSATTINI, em “La revoca degli atti fraudolenti”, pág. 172, da ed. de 1939, C. MASSIMO BIANCA, em “Diritto civile”, vol. 5º, pág. 447, da ed. de 1995, e em “Comunione. Condomínio negli edifici, no livro 3º, “Dela proprietà”, do “Commentario del Codice Civile”, dirigido por António Scialoja e Giuseppe Bianca, pág. pág. 313-315, da ed. de 1982, UGO NATOLI, em “Azione revocatoria. Revocatoria ordinária”, em “Enciclopedia del Diritto”, vol. IV, pág. 897, da ed. de 1959, ROSARIO NICOLÒ, em “Tutela dei diritti”, em “Commentario del codice civile”, dirigido por António Scialoja e Giuseppe Bianca, pág. 244-245, da ed. de 1960, e LINA GERI, em “Dela tutela dei diritti”, em “Commentario del codice civile”, Livro VI, tomo 4, 2ª ed. da UTET, pág. 153, e YUSSEF CAHALI, em “Fraudes contra credores”, pág. 311-313, da 3ª ed.
. Basta que um deles tenha actuado com a consciência do prejuízo que causava aos credores do seu parceiro na divisão, para que este acto possa ser atingido pela impugnação pauliana. Nesta hipótese, apenas os interesses do terceiro de má fé devem sacrificar-se perante os interesses dos credores daquele, aplicando-se a consequência prevista no artº 616º, nº 2, do C.C. VAZ SERRA, em “Responsabilidade patrimonial”, no B.M.J. nº 75, pág. 248-249.
. Quanto aos condividentes de boa fé a sua posição não deve ser minimamente afectada pela lesão do direito de garantia ocorrida, mantendo-se incólumes os resultados para eles advindos do acto de divisão.
Nesta situação provou-se que ao realizarem a escritura de partilha extrajudicial, ficando apenas o devedor G... com o usufruto de um prédio urbano, este e as suas duas filhas, aqui requeridas, pretenderam unicamente evitar que aquele fosse proprietário de qualquer bem imóvel que pudesse satisfazer o montante global de indemnização que se viesse a apurar pelo assassínio de H..., ou seja, €. 135.000,00, devidos aos aqui requerentes, pelo que todos os herdeiros agiram de má fé ao efectuarem a partilha no modo que o fizeram.
Estando aqui indiciados todos os requisitos necessários à procedência da impugnação pauliana do acto de partilha, o resultado previsível desta acção será a responsabilização das requeridas pela perda da garantia patrimonial dos créditos dos requerentes, nos termos do artº 616º, nº 2, do C.C., pelo que os imóveis cujo arresto se requereu, como bens integrantes do património das requeridas garantem a efectivação dessa responsabilização.
Tendo-se também provado que as requeridas iniciaram diligências no sentido de venderem a terceiros os imóveis sobreditos, e que à cerca de dois meses, que se encontram fixados cartazes, pertencentes a uma sociedade de mediação imobiliária, em todos os prédios, com a designação de “vende-se”, é fundado o receio dos requerentes perderem a garantia patrimonial do seu crédito sobre as requeridas, pelo que se justifica o arresto desses imóveis, nos termos do artº 406º e 407º, nº 2, do C.P.C..
Atento o raciocínio exposto, deve o recurso de agravo ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

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DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso de agravo, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas do recurso pelas requeridas.


Coimbra, 29 de Novembro de 2005