Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1017/03.9TBGRD-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: FALÊNCIA
PENHORA
SALÁRIO
FALIDO
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 03/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 150º, Nº 1, DO CPEREF (DL Nº 132/93, DE 23/04)
Sumário: I – Uma vez declarada a falência, o falido fica imediatamente privado da administração e do poder de disposição dos seus bens, que passam a integrar a massa falida, sendo-lhe apreendidos e entregues a um liquidatário judicial.

II – Porém, preceitua o nº 1 do artº 150º do CPEREF que se o falido carecer absolutamente de meios de subsistência e os não puder angariar pelo seu trabalho, pode o liquidatário, com o acordo da comissão de credores, arbitrar-lhe um subsídio a título de alimentos e à custa dos rendimentos da massa falida.

III – Foi intenção do legislador, com tal preceito, “poupar” o falido do dever de entregar à massa falida os proventos ou rendimentos por ele entretanto auferidos com o seu trabalho (obtidos após a declaração de falência), separando-os dos outros meios de garantia patrimonial geral dos credores.

IV – A garantia dos credores é apenas composta por aqueles bens que já faziam parte do acervo patrimonial do falido aquando da sua declaração de falência/insolvência, e sobre os quais os seus credores tinham já legítimas expectativas de poder servir-se deles para obter a satisfação dos seus créditos.

V – Donde que no processo de falência não devam ser apreendidos a favor da massa falida os rendimentos do trabalho ou salários auferidos pelo falido no exercício da sua actividade laboral e após a declaração de sua insolvência.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. No 2º Juízo da Comarca da Guarda correm termos os autos de processo de falência, autuados sob o nº 1017/03.9TBCRD, nos quais é requerente a A... e requeridos B... e sua mulher C..., tendo os últimos ali sidos declarados falidos por sentença proferida em 2003/07/15, já devidamente transitada.

2. Entretanto, e na sequência do despacho judicial (de fls. 407 desses autos) que ordenou a apreensão de 1/3 de todos os rendimentos periódicos auferidos pelo falido/marido – sendo que já antes fora ordenado o mesmo em relação à falida/mulher, o que veio também ser atacado por recurso autónomo deste -, veio a ser penhorado, e apreendido à ordem de tais autos, 1/3 do vencimento ou salário mensal daquele.

3. Com o fundamento na ilegalidade de tal penhora, veio o falido/marido, através do seu requerimento de fls. 493/496 desses autos, solicitar o levantamento da mesma.

4. Pedido esse que, todavia, veio a ser indeferido, pelo despacho de fls. 499.

5. Não se tendo conformado com tal despacho decisório, o falido B...dele interpôs recurso, o qual foi admitido como agravo, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.

6. Nas correspondentes alegações do recurso que apresentou, o agravante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
1ª - A decisão de que se recorre indeferiu o levantamento da penhora do vencimento do Recorrente.
2ª – A referida decisão atendeu aos mesmos fundamentos vertidos no anterior despacho que se debruçou sobre a mesma questão: ‘o processo não está para ser arquivado por insuficiência de bens. Foram apreendidos novos bens e poderão vir a ser apreendidos novos bens entretanto adquiridos ou localizados’.
– A manter-se o despacho ora recorrido, nunca o processo findaria, mantendo-se eternamente aberta a fase de liquidação a aguardar a entrada de rendimentos gerados pela actividade do Falido.
– Não haveria lugar a rateio final (artigo 234º CPEREF), não haveria lugar à cessação de efeitos da falência (artigo 238º CPEREF).
– Não decorreriam os cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão que apreciasse as contas finais do liquidatário, contrariando assim ao al. c) do nº 1 do citado artigo 238º, e consequentemente nunca haveria lugar à reabilitação do Falido (artigo 239º CPEREF).
– Um dos objectivos do processo é a reintegração do falido no tráfico jurídico comercial, nos termos do art. 238º e 239º do CPEREF, uma vez findo o período afecto ao pagamento dos credores.
– A lógica subjacente ao CPEREF é de, a partir da sentença de declaração de falência, ser congelada a situação patrimonial do falido e serem os seus bens liquidados e rateados.
– Lógica esta que é agora expressamente manifestada no novo CIRE, como se pode ler no nº 1 do artigo 182º, sob a epígrafe Rateio Final –“… o encerramento da liquidação não é prejudicado pela circunstância de a actividade do devedor gerar rendimentos que acresceriam à massa.”
9ª – “É pois possível que à data da declaração do rateio e distribuição final, o insolvente esteja envolvido em situações com projecção patrimonial, das quais se gerem rendimentos que, se o processo devesse continuar vivo, integrariam a massa.”
10ª – Com a declaração da falência é apreendida a massa falida que passa a constituir um património autónomo, separado, mas o Falido não deixa de ter o seu património, geral.
11ª – O produto do trabalho realizado pelo Falido integra o seu património, geral, e não pode ser apreendido para a massa falida.
12ª – Sendo que o direito do Falido ao trabalho é estabelecido no art. 150º do CPEREF, actualmente, art. 84º do CIRE, mas há muito reconhecido pelo legislador, no artigo 1189º do CPC.
13ª – O produto angariado pelo trabalho não integra a massa falida sob pena de que “o falido [não] se desinteressasse pela angariação de proveitos pelo seu trabalho, porque o desconto se viria normalmente a arrastar e também, por uma razão de Humanidade, o legislador considerou conveniente e justo entregar-lhe inteiramente os ganhos obtidos pela sua actividade (…)”
14ª – Por outro lado, se o Falido tivesse solvabilidade para pagar as suas obrigações, faseadamente, faltaria o requisito essencial do qual depende a declaração de falência de devedor: impossibilidade de cumprir pontualmente as suas obrigações.
15ª – “O CPEREF introduziu uma profunda modificação ao regime falencial, ao eliminar a dicotomia entre o processo de falência (tendencialmente privativo dos devedores comerciantes) e o processo de insolvência (aplicável aos devedores não comerciantes). […] Assim, a situação jurídica do devedor insolvente que não seja titular de empresa encontra-se definida de forma idêntica à de uma empresa. […] Por isso, o pressuposto de declaração de falência do devedor que não seja titular de uma empresa é só um: a situação de insolvência”.
16ª – À luz do artigo 150º ficarão sempre ressalvados da apreensão os meios de subsistência da falida e do seu agregado, cujo critério de graduação deve ponderar a condição social deste [falido], sem se ficar limitado ao absolutamente necessário.
17ª – Não obstante o Falido auferir rendimentos, a verdade é que esse rendimento apenas permite ao Falido fazer face às despesas do lar, mensalmente distribuídas pela alimentação, vestuário, educação, saúde, electricidade, água, telefone, transportes e restantes despesas do agregado com que absorve esse rendimento, não ficando com mais recursos para dar resposta a outras despesas da família e muito menos para suportar a retenção ordenada pelo tribunal, sob pena de ficar em situação de carência económica, contrariando o disposto no art. 150º do CPEREF.
Deve, assim, o douto despacho ser revogado e substituído por outro que ordene o levantamento da penhora sobre um terço do vencimento do Falido (...)”.

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. O srº juiz a quo, ainda que de forma tabelar, sustentou o despacho recorrido.

9. Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II-Fundamentação.
A) De facto
Com interesse relevante para a decisão do presente recurso, devem ter-se como assentes os factos atrás descritos sob o ponto I, e que resultaram do teor das peças processuais juntas a estes autos.
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B) De direito
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações do recursos que se fixa e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs 684, nº 3, e 690, nº 1, todos do CPC).
Ora, compulsando as respectivas conclusões do presente recurso – tal como, aliás, decorre do que supra se deixou exarado –, a única questão que importa aqui verdadeiramente apreciar e decidir traduz-se, no fundo, em indagar da legalidade ou ilegalidade da penhora/apreensão (na proporção de 1/3) do vencimento ou salário mensal do falido/agravante.
Questão essa que, no fundo, se traduz em saber se no processo de falência é ou não legalmente admissível ordenar-se, a favor da massa falida, a penhora/apreensão do salário ou vencimento mensal do falido (enquanto pessoa singular), após a declaração da sua falência?
É o que iremos ver.
Começaremos por salientar que o caso em apreço, atenta a data em que foi proferida a sentença que decretou a falência do ora agravante, será analisado à luz do C.P.E.R.E.F. (aprovado DL 132/93 de 23/4, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL nº 315/98 de 18/10), face ao disposto no artº 12, nº 1, do actual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL nº 53/2004 de 18/03 e que, entretanto, revogou tal diploma. Se bem que, podemos desde já adiantar, a solução final seria sempre a mesma, independentemente do diploma aplicável, dada a similitude dos normativos e princípios chamados a dirimir a situação. Desse modo, serão daquele primeiro diploma legal os normativos doravante indicados sem a menção da sua fonte.
Grosso modo, pode-se dizer que começando a falência/insolvência por ser um instituto tendencialmente privativo dos comerciantes acabou, depois, por se estender às pessoas singulares ou colectivas sem qualquer ligação ao comércio.
É sabido que, uma vez declarada a falência, o falido fica imediatamente privado da administração e do poder de disposição dos seus bens, que passam a integrar a massa falida (hoje designada massa insolvente), a qual passa, por sua vez, ser administrada pelo liquidatário judicial (hoje administrador judicial), com o objectivo último de, com o seu produto, proceder, mais tarde, ao pagamento dos créditos que foram reclamados sobre o falido (incluindo, em primeira linha, naturalmente as despesas originadas com o processo). Para o efeito, com a declaração de falência os bens do falido são-lhe imediatamente apreendidos e entregues ao liquidatário judicial, e se o não forem deve o último providenciar para que tal aconteça, devendo essa a apreensão ser feita por arrolamento ou por entrega directa através de balanço, sendo de tudo lavrado um auto, do qual, além do mais, deve constar a descrição desses bens apreendidos, os quais irão compor a sobredita massa (cfr., nomeadamente, os artºs 147, 148, nº 1, 175, 176 e 179).
Processo esse que, com o objectivo atrás referido, se pretende o mais célere possível, e de tal forma que, nos termos do disposto no artº 179, nº 1, logo que transitado em julgado a sentença declaratória da falência (ou proferida em 1ª instância a decisão que rejeite os embargos que lhe tenham sido opostos), proceder-se-á venda de todos os bens arrolados para a massa falida, independentemente da verificação do passivo.
Porém, preceitua o nº 1 do artº 150 que “se o falido ou, no caso de sociedades ou pessoas colectivas, os seus administradores carecerem absolutamente de meios de subsistência, e os não puderem angariar pelo seu trabalho, pode o liquidatário, como o acordo da comissão de credores, arbitrar-lhes um subsídio, a título de alimentos e à custa dos rendimentos da massa falida”. (sublinhado nosso)
Subjacentes a tal normativo estão, por um lado, razões de humanidade ou dignidade humana, de forma a não privar o falido (e o seu agregado familiar) dos meios necessários ao seu sustento, e, por outro, razões que visam estimulá-lo e encorajá-lo a “levantar a cabeça” e a providenciar, pelo menos, pela angariação, através do seu trabalho, do seu sustento (e quiçá do seu agregado familiar), e por forma a não prejudicar ainda mais os seus credores já que, no caso de tal não acontecer, os mesmos acabariam ainda por assistir à diminuição da massa falida (normalmente já de si insuficiente para dar cobertura total aos seus créditos), em virtude da retirada dela dos valores necessários para providenciar pelo sustento daquele (e porventura do seu agregado familiar). Preocupação essa que, aliás, sempre esteve presente no espírito do legislador ao regular o estatuto do falido, consagrando regimes em tudo idênticos ou similares (cfr., além do citado artº do CPEREF, quer o regime instituído à luz do CPC vigente à data da reforma de 95 – artº 1189, nº 2 -, quer o actual regime consagrado pelo CIRE – artº 84, nº 1). Vidé ainda, a tal propósito, Pedro Sousa Macedo, “in “Manual de Direito das Falências, Vol. II, pág. 61”.
Foi, assim, a nosso ver, e desde logo por tais motivos, intenção do legislador em “poupar” o falido (enquanto pessoa singular, ou os seus administradores no caso de sociedades ou pessoas colectivas) do dever de entregar à massa falida os proventos ou rendimentos entretanto por si auferidos com o seu trabalho, separando-os dos outros meios de garantia patrimonial geral dos credores. É claro que tal só pode ocorrer em relação aos proventos ou rendimentos laborais obtidos após a declaração de falência, já que aqueles apreendidos, por qualquer modo ou forma, até essa data serão naturalmente integrados na massa falida. E percebe-se que assim seja, já que a partir dessa altura, e ao contrário daquilo que até então acontecia, o falido ficou com todo o seu património apreendido, sem que dele possa dispor, constituindo, pois, aqueles rendimentos laborais os únicos de que passará a dispor para poder prover pelo seu sustento (e porventura do seu agrado familiar) e bem como pela sua reabilitação futura. Situação essa que, a nosso ver, a torna diferente daquela outra que permite, em princípio, no processo de execução a penhora de parte do vencimento salarial do executado (cfr. artº 824 do CPC), já que aí (no processo de execução), ao contrário daqui, não ocorre uma privação imediata dos poderes administração e disposição do último sobre os bens que compõem o seu património .
Estamos, assim, e a nosso ver, perante realidades jurídicas distintas, uma que tem a ver com a garantia dos credores e que é composta por aqueles bens que já faziam parte do acervo patrimonial do falido aquando da sua declaração de falência/insolvência, e sobre os quais os seus credores tinham já legítimas expectativas de poder servir-se deles para obter a satisfação dos seus créditos (sendo por isso, desde logo, integrados na massa falida), e outra que tem a ver com os direitos de personalidade, ao nível da defesa da dignidade humana e do direito ao recebimento de retribuição pelo trabalho desenvolvido, realidades essas que encontram mesmo espelho ou consagração constitucional (cfr. artºs 61º, nº 1, 1º e 59º, nºs 1 al. a) e 2 al. a), da CRPort e 70 do CCivil).
Pode, assim, considerar-se que o citado artº 150 representa, de qualquer modo, uma excepção à regra (que tem a sua expressão naqueles normativos logo no início citados e que têm a sua correspondência no artº 46, nº 1, do actual CIRE) da assimilação pela massa falida de todos os bens e direitos, ainda que porventura futuros, do falido.
E do que supra se deixou exposto, partimos para a conclusão de que no processo de falência não devem ser penhorados ou apreendidos a favor da massa falida os rendimentos auferidos pelo falido (enquanto pessoa singular) no exercício da sua actividade laboral e após a declaração da sua falência/insolvência, e mais concretamente os salários ou vencimentos mensais do falido provindos, após tal data, do exercício da sua actividade laboral. (Em sentido idêntico decidiu também, embora proferido por outro colectivo de juizes, o acordão desta Relação de 24/10/2006, referente ao Agravo nº 1017/03.9TBGRD-F.C1 da 1ª sec., e que teve por objecto o outro despacho judicial que, nos mesmos autos originais, ordenara também a apreensão/penhora do vencimento mensal da falida/mulher).
Aliás, interpretação contrária poderia conduzir a uma eternização dos processos de falência/insolvência (dado, desde logo, os escassos montantes aprendidos/penhorados em cada mês e face aos normalmente elevados montantes dos créditos reclamados à espera de serem pagos), o que, por um lado, iria contrariar os princípios e objectivos de celeridade que estão subjacentes a este tipo de processos e, por outro, impedir ou dificultar a reabilitação do falido, a qual, legalmente, pode ser desencadeada logo que decorram cinco anos sobre a data do trânsito em julgado da decisão que aprecie as contas finais do liquidatário (cfr. artºs 238, nº 1 al. c), e 239). Nesse sentido, e comentando o artº 182, nº 1 do actual CIRE, escrevem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Vol. I, Quid Juris, pág. 612, nota 5”) que tal normativo “vem, precisamente, excluir a possibilidade de a liquidação se manter aberta apenas e só pela expectativa dos rendimentos gerados pela actividade do insolvente”.
Termos, pois, em que, na procedência do recurso, se considera ilegal o despacho que determinou a apreensão de 1/3 dos rendimentos periódicos do falido (vulgo penhora de 1/3 do seu vencimento ou salário mensal), ordenando-se, consequentemente, o levantamento dessa apreensão/penhora, revogando-se, assim, tal despacho.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, concede-se provimento ao recurso (de agravo), revogando-se o despacho que determinou a apreensão de 1/3 dos rendimentos periódicos do falido (vulgo penhora de 1/3 do seu vencimento ou salário mensal), ordenando, consequentemente, o levantamento dessa apreensão/penhora.
Sem custas