Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
780/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
COMPROPRIEDADE
LIMITES DA CONDENAÇÃO
Data do Acordão: 07/11/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 661.º N.º 1 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 1403.º NºS 1 E 2 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Não tendo a autora nem os réus provado o direito de propriedade exclusivo sobre o trato de terreno entre os prédios de ambos e a estrada, ambos lograram provar ter adquirido a respectiva propriedade por usucapião, sendo aquele logradouro comum de ambos os prédios.
2. Apesar de não se ter provado a acção nem a excepção na sua totalidade, provou-se parcialmente a acção e a excepção. E dizer isto não é ir além do pedido; não é condenar em quantidade superior ou em objecto diverso (artigo 666º nº1 do CPC); é proferir uma decisão que cabe nos limites do pedido.

3. Existe propriedade comum ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa, dia o nº1 do artigo 1403º do CC. Por Isso, a autora e os réus são comproprietários daquele trato de terreno.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... demandou, na comarca de Tomar, B... e C..., pedindo que se declare ser proprietária duma faixa de terreno situada entre a estrada e a entrada da sua garagem e arrecadação implantada no prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial, condenando-se os réus a reconhecer esse direito e a absterem-se de perturbar o seu exercício, bem como a indemnizá-la em 2.500,00 € por danos que já lhe causou e bem assim numa sanção pecuniária compulsória de 100,00 € por cada nova infracção futura do exercício do seu direito de propriedade exclusivo.
Subsidiariamente, para o caso de se não provar o direito de propriedade, os réus devem ser condenados a reconhecer-lhe um direito de servidão de passagem nesse espaço de terreno, para acesso à garagem e arrecadação, abstendo-se igualmente de praticar actos que o impeçam.
Alega, em síntese, que adquiriu, por doação, a propriedade do prédio que identifica nos artigos 1.º a 3.º da petição inicial e que sobre a faixa de terreno entre a estrada e esse prédio, onde de há muito está construído um barracão, para arrecadação e garagem, tem vindo a exercer a posse correspondente ao direito de propriedade por tempo suficiente para a ter já adquirido por usucapião.
Propõe esta acção contra os réus porque estes têm vindo a obstar ao exercício do direito, obstando designadamente a que a autora use o terreno para aceder à sua garagem e arrecadação, alegando que o questionado terreno lhes pertence.

2. Os réus contestaram, opondo, também em síntese, que a autora não tem o direito que se arroga e que são eles réus quem tem esse direito, porque o questionado trato de terreno é um logradouro do seu prédio, que a autora já identifica na petição inicial. Conclui pela improcedência da acção.

4. A acção prosseguiu a sua tramitação normal e, após audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença que a julgou improcedente.
Inconformada a autora apela a esta Relação, para que reaprecie a prova produzida e aplique o direito aos factos, dando-se-lhe a razão que diz ter.
Não foram juntas contra-alegações. Estão colhidos os vistos. Cumpre conhecer e decidir.
Vejamos os factos que vêm provados da 1.ª instância, seguindo a ordem por que constam da sentença recorrida.
1) No dia 20 de Abril de 1993, na Secretaria Notarial de Tomar, José de Lima Rodrigues declarou dar a sua filha, a autora A..., que declarou aceitar, no limite da sua quota disponível, a meação e quinhão hereditário que tem na herança por óbito de sua mulher, Virgínia dos Santos Rodrigues, fazendo parte dessa herança um imóvel inscrito na matriz urbana, sob o artigo 2109 da freguesia de Asseiceira ( alínea A) da matéria assente );
2) Na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n.º 01359/250393, encontra-se descrito o prédio urbano, sito em Santa Cita, freguesia da Asseiceira, concelho de Tomar, composto de um barracão que se destina a arrecadação e garagem com a área de 42 m2 ( alínea B) da matéria assente );
3) Antes deste barracão e até 11 de Março de 1994, o mesmo prédio encontrava-se descrito como lote de terreno destinado a construção urbana, com a área de 42 m2, a confrontar do Norte e Poente, com José de Lima Rodrigues, Nascente, com a estrada e do Sul, com urbano de Manuel Rodrigues, inscrito na matriz sob o artigo 2109 (alínea C) da matéria assente);
4) Em 25 de Março de 1993, o prédio identificado nas alíneas A) a C) foi inscrito, na mesma Conservatória do Registo Predial de Tomar, sem determinação de parte ou direito, em nome da autora A... e de José de Lima Rodrigues, “por dissolução da comunhão conjugal e sucessão legítima de Virgínia dos Santos Rodrigues” (alínea D) da matéria assente);
5) Em 7 de Maio de 1993, na mesma Conservatória do Registo Predial, o prédio descrito em A) a C) passou a estar em nome da autora, “por doação de José de Lima Rodrigues” (alínea E) da matéria assente);
6) E está, actualmente, inscrito na matriz, sob o artigo 2220 (alínea F) da matéria assente);
7) A autora, por si e pelos seus antecessores, desde sempre, ainda quando era prédio rústico, amanharam e cultivaram o prédio identificado em A) a C) (alínea G) da matéria assente);
8) Colheram os produtos agrícolas (alínea H) da matéria assente);
9) Plantaram e podaram as árvores e vinha (alínea I) da matéria assente);
10) Cuidaram da sua limpeza (alínea J) da matéria assente);
11) Colheram os frutos (alínea L) da matéria assente);
12) Directamente ou por intermédio de empregados (alínea M) da matéria assente);
13) A autora e seus antecessores praticaram os factos descritos em G) a M) à vista e com o conhecimento de toda a gente (alínea N) da matéria assente);
14) Sem entrave de quem quer que fosse (alínea O) da matéria assente);
15) Sem quaisquer interrupções (alínea P) da matéria assente);
16) Na convicção de exercerem um direito próprio (alínea Q) da matéria assente);
17) E de não estarem a ofender o direito de outrem (alínea R) da matéria assente);
18) Nos finais de Abril ou inícios de Março de 2003, os réus depositaram, na faixa de terreno que existe entre a estrada e a entrada da garagem e arrecadação descritas em B), ervas, paus, ramos de roseiras, de parreiras e pereiras (alínea S) da matéria assente);
19) No dia 03 de Março de 2003, a autora deparando-se com tal situação, solicitou aos réus que retirassem dali aquelas ervas, paus e ramos de roseiras, de parreiras e de pereiras (alínea T) da matéria assente);
20) Os quais impediam a passagem da autora, por essa faixa de terreno (alínea S) da matéria assente);
21) Como nada tenha sido feito pelos réus, a autora mandou chamar a G.N.R., ao local, que tomou conta da ocorrência (alínea U) da matéria assente);
22) Para além disso, os réus, frequentes vezes, apesar dos repetidos pedidos da autora, “estacionam” os seus veículos automóveis, junto à entrada da sua propriedade (alínea V) da matéria assente);
23) A autora guarda na casa existente no prédio identificado em A) a C), objectos pessoais, móveis, e um veículo ciclomotor (alínea X) da matéria assente);
24) A autora é trabalhadora avícola, nos Aviários de Santa Cita (alínea Z) da matéria assente);
25) Que distam da sua habitação cerca de 5 km (alínea AA) da matéria assente);
26) Pelo que utiliza o seu veículo ciclomotor, diariamente, para se deslocar para o trabalho e a outros locais (alínea BB) da matéria assente);
27) O acesso à garagem e arrecadação a que alude a alínea B) sempre se fez através da faixa de terreno entre a entrada dessa garagem e a estrada, a Sul (alínea CC) da matéria assente);
28) Passando a autora e seus antecessores, por essa parcela de terreno, com carros de tracção animal e, mais tarde com tractores (alínea DD) da matéria assente);
29) Que guardavam nessa garagem e arrecadação (alínea EE) da matéria assente);
30) A autora e seus antecessores praticam os factos referidos em DD) e EE) à vista de toda a gente (alínea FF) da matéria assente);
31) Continuadamente (alínea GG) da matéria assente);
32) Sem oposição de ninguém (alínea HH) da matéria assente);
33) Na convicção de o fazerem no exercício de um direito (alínea II) da matéria assente);
34) Os réus dizem, em público, que a faixa de terreno que vai da entrada da garagem e arrecadação identificados em B), até à estrada é tudo deles e que a autora só passa ali por seu consentimento pessoal (resposta ao nº 2 da base instrutória);
35) E persistem em estacionar os seus veículos automóveis, mesmo à porta da garagem mencionada em B) (resposta ao nº 3 da base instrutória);
36) Com as condutas a que aludem a alínea V) e o nº 3, a autora fica impedida de entrar, na garagem e arrecadação identificados em B) (resposta ao nº 4 da base instrutória);
37) Bem como de ter acesso ao interior das mesmas arrecadação e garagem (resposta ao nº 5 da base instrutória);
38) Os actos descritos em V) e 3º, por vezes, sucedem de noite (resposta ao nº 6 da base instrutória);
39) E a autora só se apercebe da situação, quando de manhã cedo, ao pretender ir para o trabalho, se vê impossibilitada de aceder ao seu veículo e de o utilizar (resposta ao nº 7 da base instrutória);
40) Pelo menos uma vez, a autora, foi forçada a recorrer ao auxílio dos seus familiares para se deslocar até ao seu local de trabalho (resposta ao nº 8 da base instrutória);
41) Em virtude de ter a entrada e saída da sua garagem e arrecadação obstruída pelo estacionamento das viaturas dos RR (resposta ao nº 9 da base instrutória);
42) O único acesso ao prédio descrito em A) a C) é a faixa de terreno que vem descrita em CC) (resposta ao nº 13 da base instrutória);
43) E sem que o mesmo prédio tenha qualquer outra forma de acesso à estrada (resposta ao nº 12 da base instrutória);
44) Os factos a que se referem as alíneas DD) a II) foram praticados pela autora e seus antecessores durante mais de 20 anos (resposta ao nº 13 da base instrutória);
45) Até ter sido cimentado, o referido caminho, manteve-se, desde sempre e durante todo esse tempo o seu leito calcado pela passagem de pessoas e animais (resposta ao nº 14 da base instrutória);
46) E o barracão identificado em B) tem a área de 59 m2 (resposta ao nº 15 da base instrutória)
47) No prédio inscrito na matriz sob o artigo 2080 da freguesia de Asseiceira existe uma casa que, quando foi comprada pelos réus, em 1990, tinha a área coberta de 160 m2 e que, actualmente, com a construção de uma garagem, tem a superfície coberta de 194,60 m2 e um logradouro que, em 1990, tinha a área de 130 m2 (resposta ao nº 17 da base instrutória)
48) Este logradouro encontra-se cimentado (resposta ao nº 29 da base instrutória);
49) Casa essa que é onde os réus vivem (resposta ao nº 18 da base instrutória);
50) Desde há mais de 20, 30 anos os RR, por si e seus antecessores, utilizam o logradouro referido em 17º, para acesso da casa e para estacionar os carros e para lazer (resposta ao nº 19 da base instrutória);
51) O que têm feito, na convicção de usarem o que é seu (resposta ao nº 20 da base instrutória);
52) À vista de toda a gente (resposta ao nº 21 da base instrutória);
53) Sem interrupções (resposta ao nº 22 da base instrutória);
54) Sem oposição de qualquer pessoa (resposta ao nº 23 da base instrutória);
55) E na convicção de não ofenderem os direitos de outrem (resposta ao nº 24 da base instrutória);
56) O prédio descrito em A) a C) é, presentemente, constituído por um barracão com a área de 59 m2 e uma faixa de terreno adjacente com a área de 41,50 m2 ( resposta ao nº 25 da base instrutória );
57) No dia 12 de Novembro de 1990, perante o Notário do primeiro cartório notarial de Tomar, José de Lima Rodrigues declarou vender aos réus, que declararam comprar-lhe, pela importância de esc. 2.750.000$00, o prédio urbano, sito em Santa Cita , freguesia de Asseiceira, concelho de Tomar, composto de casa de habitação de r/c com a superfície coberta de cento e sessenta metros quadrados e logradouro com a área de cento e trinta metros quadrados, a confinar do Norte com a Rua e José Lima Rodrigues, Sul, José Lima Rodrigues e outro, Nascente a dita Rua e Poente, José Lima Rodrigues, inscrito na matriz sob o artigo 2.080, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o nº 00839/231090 ( alegado nos arts. 19 da petição inicial e 22 da contestação e escritura pública cuja certidão se encontra a fls.. 84 e seguintes );
58) Este prédio encontra-se assim descrito, na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 00839/231090 (certidão de registo predial cuja junção foi ordenada a fls. 70);
59) E, em 23 de Outubro de 1990, foi inscrito, na mesma Conservatória do Registo Predial de Tomar, sem determinação de parte ou direito, em nome da autora A... e de José de Lima Rodrigues, « por dissolução da comunhão conjugal e sucessão legítima de Virgínia dos Santos Rodrigues » (certidão de registo predial cuja junção foi ordenada a fls. 70 );
60) Na mesma data, foi inscrito, naquela Conservatória, em nome dos réus, «por compra» (certidão de registo predial cuja junção foi ordenada a fls. 70);

5. Com estes factos a sra. Juiz concluiu que nenhuma das partes logrou provar ser proprietária exclusiva do trato de terreno questionado e por isso não pode reconhecer que é propriedade da autora a quem cabia o ónus da prova do direito que invocou.
E também não pode declarar o direito de servidão, não só porque se trata de prédios urbanos, mas também porque se não provou ser esse terreno propriedade dos réus.
Pois bem. Se bem entendemos, a autora pede se declare ser proprietária do trato de terreno por onde diz ter vindo a passar para aceder à sua garagem e arrecadação, alegando a usucapião. Os réus apenas opõem que esse trato de terreno é logradouro do seu prédio, alegando igualmente a usucapião.
A autora pede que se declare ter o direito de propriedade exclusivo sobre esse trato de terreno, e os réus excepcionam serem titulares exclusivos desse mesmo direito.
E provou-se, conforme o factos acima descritos, que a autora tem a posse, já iniciada pelo seus antecessores, não só do prédio que identifica nos artigos 1.º a 3.º da petição inicial (o barracão para garagem e arrecadação), como ainda do questionado trato de terreno; posse pública e pacífica, que dura há mais de vinte anos (cfr. alíneas G a R e CC a II dos factos assentes e respostas aos pontos 11.º, 13.º e 14.º, da Base Instrutória).
Por outro lado, também está provado que os réus são proprietários do prédio que a própria autora já descreve na petição inicial, constituído por casa de habitação e logradouro e que este também é possuído pelos réus e seus antecessores há mais de 20 e 30 anos (cfr. resposta aos pontos 17.º a 19.º e 20.º a 24.º da Base Instrutória).
Ambos provaram, pois, ter adquirido a propriedade por usucapião (artigos 1316.º, 1287.º, 1251.º, 1252.º, 1255.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º e 1296.º do Código Civil); o que quer dizer que aquele trato de terreno entre os prédios da autora e dos réus e a estrada, a nascente, é logradouro comum de ambos os prédios. Ou seja, os factos provados – que não dizem se o trato de terreno é de um ou de outro em exclusivo – dizem que é de ambos. Isto é, não se provou a acção nem a excepção na sua totalidade, mas provou-se parcialmente a acção e a excepção. E dizer isto não é ir além do pedido; não é condenar em quantidade superior ou em objecto diverso (artigo 661.º, n.º 1 do Código de Processo Civil); é proferir uma decisão que cabe nos limites do pedido.
Existe propriedade comum ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa, diz o n.º 1 do artigo 1403.º do Código Civil. Por isso a autora e os réus são comproprietários daquele trato de terreno que vai da estrada aos seus prédios e que se destina, no mínimo, a que uma e outros lhes acedam, na medida das necessidades de cada prédio, de tal modo que nenhuma das partes pode fazer um uso do terreno que impeça o acesso ao prédio da outra. Qualitativa e quantitativamente é esse o direito de cada consorte (artigo 1403.º, n.º 2 do Código Civil).

6. Assim vistas as coisas, não faz sentido que ainda assim se analisem as questões sobre o julgamento de facto dos concretos pontos referidos na alegação da autora, mantendo-se a factualidade julgada em 1.ª instância.
Sobre as questões da indemnização e da cláusula pecuniária compulsória diremos sumariamente que confirmamos o julgado em 1.ª instância. No primeiro caso porque, além do mais, não nos parece haver culpa do autor da lesão, face às circunstâncias do caso em análise (483.º, n.º 1 e 487.º, n.º 2 do Código Civil), tendo em conta que é suposto os réus terem agido na convicção de que eram titulares do direito de propriedade exclusivo. No segundo caso porque parece evidente não se verificar o pressuposto da sanção pecuniária, que tem a ver com a execução específica de obrigações (n.º 1 do artigo 829.º do Código Civil), tendo como objectivo forçar o devedor a cumprir, que não é seguramente o caso.

7. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, em consequência do que revogam a sentença recorrida e condenam os réus a reconhecer que a autora é comproprietária da faixa de terreno identificada no artigo 20.º da petição inicial e a respeitar esse direito, devendo abster-se de praticar quaisquer actos que impeçam o seu exercício, designadamente quanto à utilização dessa parcela de terreno para aceder ao seu prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial.
Sobre a indemnização mantém-se o decidido. Improcede o pedido da sanção pecuniária compulsória.
Custas em ambas as instâncias na proporção de vencimento.
Coimbra,