Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
117-G/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO JESIS
Descritores: REGISTO PREDIAL
SEU EFEITO DECLARATIVO
TERCEIROS PARA EFEITOS DE REGISTO
DOAÇÃO DE IMÓVEL
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Data do Acordão: 02/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE S. PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 4º, Nº 1, 5º, NºS 1 E 4, E 7º, DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL; 408º, Nº 1, E 954º, AL. A), DO C.CIV.
Sumário: I – O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, não tendo natureza constitutiva.

II – Entre nós os actos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo quaisquer direitos a não ser excepcionalmente.

III – Do nº 4 do artº 5º do C. R. Predial, na redacção dada pelo D.L. nº 533/99, de 11/12, decorre um conceito restrito de terceiro, segundo o qual a inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo, pressupõe que ambos os direitos advenham de um mesmo transmitente comum (excluindo-se os casos em que o direito em conflito com o direito não inscrito deriva de uma diligência judicial, seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial).

IV – Flui do supra exposto que, ocorrendo conflito entre uma aquisição anterior não levada ao registo e um direito derivado de uma diligência judicial posterior registado, aquela obsta à eficácia desta última, prevalecendo sobre ela.

V – No caso de uma doação de imóvel (negócio jurídico translativo de propriedade imobiliária, com eficácia real), o momento da aquisição ou da transferência do direito de propriedade é o da celebração da escritura que o formaliza, por via do qual a propriedade efectivamente se transfere.

VI – Uma doação é apenas ineficaz relativamente a um credor impugnante (impugnação pauliana) - não é nula -, que poderá executar os bens doados no património do donatário, para quem reverterá o que eventualmente sobrar do pagamento ao credor (carácter pessoal da impugnação pauliana).

VII – As inscrições registrais provenientes da impugnação pauliana não prejudicam em nada os registos das transmissões anteriores, designadamente o da doação, que permanecem válidos e eficazes.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I- RELATÓRIO


 

A..., residente na rua Alexandre Herculano, lote 1º, 2º C, Pêra, Armação de Pêra, moveu a presente acção ordinária contra os credores da B..., E... e F... com sede em S. Pedro do Sul, pedindo o reconhecimento de que a autora é a proprietária das fracções que identifica no art.1º da petição e do estabelecimento comercial de hotelaria identificado no art. 17º da petição, bem como do mobiliário e mercadoria  nele existente e, como tal, a restituição dos mesmos à sua posse e livre disponibilidade, e o pagamento da importância de 25 000,00 € a título de compensação por danos não patrimoniais e de outra a liquidar em execução de sentença pelo prejuízo decorrente do encerramento e apreensão do estabelecimento. Por fim pede o cancelamento de todos os registos inscritos sobre esses bens e que sejam incompatíveis com o direito que invoca.

A Massa Falida e a credora CCAM contestaram impugnando os factos alegados pela autora, excepcionando ainda, as duas, a utilização de meio processual desconforme e a caducidade da acção, e a segunda, a ilegitimidade das rés.

A autora respondeu sustentando o infundado das excepções

Saneado, com a improcedência das excepções, e condensado o processo, veio a acção a ser julgada improcedente.

Inconformada, apelou a autora que tira as seguintes conclusões:

a) Inscrita no registo, em data anterior à escritura de doação, a aquisição a favor do doador de um bem, presume-se a existência, a tal data, do direito na esfera patrimonial do doador;

            b) Não posto em causa tal aquisição, é título suficiente para a prova do direito do donatário a escritura de doação, por ser acto idóneo à transmissão do direito de propriedade, transmissão que opera por efeito do contrato;

            c) A tal não obsta que tal inscrição não seja registada;

            d) Ainda assim, devem ser dados com provados os factos constantes dos nºs 1 a 10, 12º a 18º da base instrutória, face aos depoimentos gravados e aos documentos constantes dos autos;

            e) Foram violadas as normas dos artigos 954º, al. a)do Cod. Civil, 1º, 5º, nºs1 e 4 do Cod. Reg. Predial e 668º, nº 1 al. c) e 156º nº1do C. P. C.

                        Não houve contra-alegação.

                        Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


        ª


As conclusões dos recorrentes--- balizas delimitadoras do objecto do recurso ( arts. 684º nº3 e 690 nº 1º do Cod. Proc. Civil)--- consubstanciam as seguintes questões:

a) Modificabilidade da decisão de facto com a pretensão de alteração das respostas dadas aos quesitos 1º a 10º, e 12º a 18º;

b) .Efeitos do contrato de doação de um imóvel celebrado por escritura pública, não inscrito no registo predial, sobre posterior apreensão judicial, registada, do mesmo bem.


ª

II-FUNDAMENTAÇÃO


DE FACTO

Foram considerados provados os factos seguintes:

1 – Por escritura pública outorgada em 17.1.92, C... e mulher, D..., declararam doar a A..., menor, com 17 anos de idade, uma fracção autónoma designada pela letra D, correspondente a uma habitação no r/c e 1º andar do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito nos limites do Lugar de Calvário, Santa Cruz da Trapa, inscrito na matriz sob o artigo 957, e descrito na CRP sob o nº 376.

2 - Por escritura pública outorgada em 24.8.93, António Manuel Pereira dos Santos Dias declarou doar a A..., e esta declarou aceitar a doação, de uma fracção autónoma designada pela letra F, correspondente ao r/c traseiras do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito no Lugar de Calvário, Santa Cruz da Trapa, inscrito na matriz sob o artigo 974, e descrito na CRP sob o nº 376.

3 - C... e mulher, D... foram declarados falidos por sentença de 13.10.00, transitada em julgado em 17.11.00.

4 - A apreensão, para a massa falida, dos imóveis supra identificados ocorreu em 30.10.00.

5 - Por escritura pública outorgada em 3.12.92, C... e mulher, D... declararam trespassar gratuitamente a A..., e esta declarou aceitar o trespasse, de um estabelecimento comercial, com todos os elementos que o integram, instalado nas fracções D, F e H do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito no Lugar de Calvário, Santa Cruz da Trapa, inscrito na matriz sob o artigo 974, e descrito na CRP sob o nº 376.

6 - Em 5.7.02 foram entregues ao Sr. Liquidatário Judicial os imóveis referidos em 1, 2 e 5.

DAS RESPOSTAS À BASE INSTRUTÓRIA:

7 - Quando residia em S. Pedro do Sul a A. habitava, conjuntamente com os seus pais C... e mulher, D..., no 1º andar do prédio aludido em 1 e 2.

8 - Quando habitava no 1º andar do prédio aludido em 1 e 2 a A. aí guardava os seus bens e pertenças e aí tomava refeições.

9 - Aquando da declaração de falência e da apreensão dos imóveis, o direito de propriedade sobre aqueles encontrava-se inscrito, no registo predial, a favor dos falidos.

10 - Pelo menos desde 5.7.02 que o estabelecimento referido em 5 não funciona.

11 - Afectos a tal estabelecimento encontravam-se um número não concretamente apurado de mobílias, e bem assim mobiliário diverso, como mesas individuais, um cofre-forte, secretárias, cadeiras, mobiliário de cozinha, electrodomésticos e máquinas de costura.

12 - Bem como carnes, legumes, peixe, massas, leite e lacticínios.

13 - E roupas, designadamente toalhas e roupas de cama.

14 - E plantas ornamentais.


ª

DE DIREITO

A) Modificabilidade da decisão de facto com a pretensão de alteração das respostas dadas aos quesitos 1º a 10º,12ºa 18º;


[…]

ª


            B) Efeitos do contrato de doação de imóvel celebrado por escritura pública, não inscrito no registo predial, sobre posterior apreensão judicial, registada, do mesmo bem.

 

A segunda questão colocada pela recorrente reside em saber se a circunstância de a doação, anterior à apreensão dos bens do doador inscrita no registo predial, não se encontrar inscrita nesse registo é invocável pelo donatário e qual o seu efeito.

Na sentença apelada partiu-se da consideração de que as escrituras de doação acima referenciadas nos nºs 1 e 2 dos factos provados não estando inscritas registralmente apenas obrigavam os seus intervenientes não possuindo eficácia perante terceiros de acordo com o disposto no art.406º nº 2 do Cód. Civil.

           A solução para a questão tem a ver essencialmente com o conceito de terceiros, para efeitos de registo predial.           
           Como se sabe, os factos sujeitos a registo podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros, mesmo que não registados (art.º 4º, n.º 1 do Cód. Reg. Predial). Já no que respeita à oponibilidade do registo predial a terceiros prescreve o art.º 5º, n.º 1 do Cód. Reg. Predial que "
os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo registo". Significa isto que, inter partes, os factos sujeitos a registo são plenamente eficazes, mesmo que não registados; para com terceiros interessados, a sua eficácia depende do registo.
           Importa, todavia, ter presente que o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art.º 1º do Cód. Reg. Predial), não tendo natureza constitutiva. Entre nós, os actos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, a não ser excepcionalmente, quaisquer direitos, 

           Na decisão recorrida considerou-se manter-se incólume a presunção legal derivada da inscrição registral dos imóveis a favor dos falidos e, sendo assim, a pretensão da donatária de que lhe fosse reconhecido o seu direito de propriedade tinha de soçobrar. De facto, a presunção que a inscrição registral da aquisição de um direito confere ao titular inscrito— a de que o direito existe e pertence a esse titular— está consagrada no art. 7ºdo Cod, Reg, Predial de 1984, tal como já o estava no art. 8ºdo mesmo          código  de 1967.

              Após longa controvérsia doutrinal e jurisprudencial, o conceito de terceiros obteve consagração legal, através do Dec-Lei 533/99, de 11 de Dezembro, que aditou ao art.º 5º do Cód. Reg. Predial o  nº4 do seguinte teor:    
          “
Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.”        

            Esta formulação legal corresponde a uma das posições doutrinais que, acerca do conceito, vinham dividindo ao meio a doutrina e a jurisprudência. O próprio legislador não deixou de o assinalar escrevendo no preâmbulo daquele diploma que «aproveita-se, tomando partido pela clássica definição de Manuel de Andrade, para inserir no art. 5º do Código do Registo Predial o que deve entender-se por terceiros, para efeitos de registo, pondo-se cobro a divergências jurisprudenciais geradoras de insegurança sobre a titularidade dos bens”.

A ideia defendida por Manuel de Andrade in Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pág.19, é a de que terceiros são aqueles que adquiriram do mesmo autor ou transmitente direitos entre si incompatíveis sobre o mesmo prédio. Entendimento adoptado pelo acórdão do Supremo Tribunal n.º 3/99, de 18.05.99, (uniformizador de jurisprudência), publicado no D.R., 1ª série— A, de 10/07/99, que reviu a doutrina fixada pelo seu homólogo 15/97 de 20.05.97.    
            Daquele normativo decorre, então, um conceito restrito de terceiro, segundo o qual a inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo, pressupõe que ambos os direitos advenham de um mesmo transmitente comum, «
excluindo-se os casos em que o direito em conflito com o direito não inscrito deriva de uma diligência judicial, seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial» (cfr, Ac. do STJ de 7/7/99, CJ/STJ, ano VII, Tomo II, pág. 164).
            Flui, pois, do que fica referido que, ocorrendo conflito entre uma aquisição anterior não levada ao registo e um direito derivado de uma diligência judicial posterior registado, aquela obsta à eficácia desta última, prevalecendo sobre ela.           
           Significa isto que as doações operadas com as escrituras públicas de17/01/92 e 24/08/93, apesar de terem as suas inscrições registrais canceladas
[1], produzem efeitos contra a apreensão levada a cabo em 30/10/00 para a massa falida, podendo a donatária invocar triunfantemente perante esta o seu direito de propriedade. Assim, no caso de negócio jurídico translativo de propriedade imobiliária, a doação no caso sob análise, o momento da aquisição ou da transferência do direito de propriedade é o da celebração da escritura que o formaliza, por via do qual a propriedade efectivamente se transfere[2]. Vale isto por dizer que os imóveis quando foram alvo de apreensão para a massa falida já haviam saído do património dos falidos. A propriedade transferiu-se por mero efeito das escrituras públicas de doação celebradas entre os pais— falidos— e o irmão da apelante e esta, como donatária, conforme estabelecem os art.ºs 408º nº 1 e 954º al. a) do Cod. Civil e 80º nº 1 do Cod. do Notariado, e tal sucedeu independentemente de qualquer registo.

           Deste modo, a douta sentença recorrida não está conforme à doutrina plasmada no referido acórdão n.º 3/99 e no n.º 4 do art.º 5.º do Cod.Reg.Predial, porque o Sr. Juiz ainda teve em linha de conta o conceito de terceiro em sentido amplo já postergado, o que implica o êxito do recurso nesta parte e a sua revogação.

            Por seu turno, o estabelecimento hoteleiro a funcionar naquelas fracções foi objecto de trespasse por escritura pública de 3/12/92.O trespasse importa a transferência definitiva da exploração do estabelecimento e da sua titularidade, o mesmo é dizer que o trespassante perde a sua titularidade.[3]

            Assiste razão à recorrente, como trespassária, em pretender o reconhecimento desse seu direito e a sua restituição.

            Outro tipo de questão, é o interesse que estes bens podem ter para a massa falida e o propósito, porventura doloso, que possa ter estado na origem das doações e trespasse, mas tais questões estão fora do âmbito deste recurso e para tal dispõe a massa falida de meio processual adequado de reacção no âmbito do Dec. Lei nº 132/93 de 20/10 ainda aqui aplicável.

            Sintetizando:

            I – Ocorrendo conflito entre uma aquisição anterior não levada ao registo e um direito derivado de uma diligência judicial posterior registado, aquela obsta à eficácia desta última, prevalecendo sobre ela, dado o conceito restrito de terceiro consagrado no art.5º nº4 do Cod. Reg. Predial;

            II – A doação é um contrato de eficácia real (quod effectum), no sentido de que a transferência da propriedade ou da titularidade do direito se verifica em consequência do próprio contrato;

            III – Os imóveis quando foram alvo de apreensão para a massa falida já haviam saído do património dos falidos.



III – DECISÃO


            Na sequência do que ficou dito, acorda-se em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogando-se a sentença apelada, condenam-se os réus a:

a) Reconhecerem a autora como proprietária das fracções identificadas no art. 1ºda petição inicial e do estabelecimento de hotelaria identificado no art. 17ºda mesma petição;

b) Reconhecerem a autora como proprietária do acervo mobiliário e mercadoria existente nesse estabelecimento;

c) Restituírem esses bens à posse e livre disponibilidade da autora.

Ordena-se o cancelamento do registo do acto de apreensão

      Custas pelas apeladas.


Coimbra,


[1]Estão as partes de acordo em que as inscrições registrais das doações foram canceladas por procedência de uma acção de impugnação pauliana intentada por outro credor na comarca de Albergaria-a-Velha, facto documentado na certidão do registo predial oferecida por uma das rés-apeladas e junta de fls. 61 a 92.
Como é sabido, a doação impugnada não é nula. A doação é apenas ineficaz relativamente ao credor impugnante que poderá executar os bens doados no património do donatário, para quem reverterá o que eventualmente sobrar do pagamento ao credor. Este carácter pessoal da impugnação pauliana mostra que a doação não é afectada por qualquer vício intrínseco gerador da sua nulidade, mantendo-se, pois, válida. (vide Vaz Serra na Rev.Leg.Jur., Ano 100º, pág.206; Ac. STJ de28/03/96 na CJ 1996-I-159).
O acto sujeito à impugnação pauliana não tem algum vício genético, é válido e eficaz, mantendo a sua pujança jurídica em tudo quanto exceda a medida do interesse do credor impugnante.
Portanto, as inscrições provenientes da impugnação pauliana não prejudicam em nada os registos das transmissões anteriores, designadamente o da doação, que permanecem válidos e eficazes. Labora, assim, em manifesto erro a massa falida quando na contestação (art. 11º) alega que a ineficácia da doação determinou o cancelamento do prédio a favor da autora.

[2]A doação é um contrato de eficácia real (quod effectum), no sentido de que a transferência da propriedade ou da titularidade do direito se verifica em consequência do próprio contrato” – P. de Lima e A.Varela no Cod. Civil Anotado, Vol. II, 4ª ed., pág. 257.

[3] Cfr. Coutinho de Abreu, Da Empresarialidade- As Empresas no Direito, pág.310; Pais de Sousa, Cardona Ferreira, Lemos Jorge, Arrendamento Urbano Notas Práticas, 1996, pág. 169; Orlando de Carvalho, na RLJ, Ano 115º, págs. 11 e 12.