Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
902/10.6TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: JUROS DE MORA
JUROS COMERCIAIS
COOPERATIVA
Data do Acordão: 01/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA VARAS MISTAS 2ª
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.559, 804, 806 CC, 102 C COMERCIAL, DL Nº 32/2003 DE 17/2, CÓDIGO COOPERATIVO (LEI Nº 51/96 DE 7/9), DL Nº 502/99 DE 19/11
Sumário: A taxa de juros moratórios relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais não é aplicável às cooperativas.
Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em 29.6.2010, “C (…), Lda. – Empreiteiros de Obras Públicas e Construção Civil” propôs, no Tribunal Judicial de Coimbra/Varas de Competência Mista, a presente acção declarativa sob a forma ordinária contra “Cooperativa de Habitação e Construção T (…), C.R.L.”, pedindo a condenação da Ré a pagar à A. a quantia de € 86 719,73, acrescida dos juros vincendos até integral pagamento.

 Alegou, em síntese, que, no âmbito da sua actividade de construção civil e afins, celebrou com a Ré, e juntamente com outras duas cooperativas, um contrato de empreitada para execução de todos os trabalhos de infra-estruturas exteriores da urbanização “ E (...)”, em Coimbra, pelos valores constantes do documento reproduzido a fls. 9 a 11, sucedendo que a Ré não pagou a totalidade do valor de 10 facturas, constituindo-se em mora, com o consequente vencimento de juros moratórios.

A Ré, citada, apresentou a contestação de fls. 51, referindo, designadamente, que se encontram prescritos os juros moratórios que ultrapassem os 5 anos anteriores à sua citação, a taxa aplicável é a dos juros civis e só é devida a quantia global de €51 428,37.

Na réplica, a A. referiu, nomeadamente, que foram peticionados e são devidos juros comerciais e concluiu pela improcedência da matéria de excepção e nos termos da petição inicial.

Foi proferido despacho saneador (tabelar) e seleccionada, sem reparo, a matéria de facto (assente e controvertida).

Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal julgou a acção parcialmente procedente e provada e, em consequência, condenou a Ré a pagar à A. a quantia de € 43 742,05, acrescida dos juros moratórios vencidos e vincendos, às taxas de juros comerciais aludidas na sentença (e demais taxas a publicar), sobre cada um dos parciais constante das 10 facturas melhor discriminadas no facto VI[1], decorridos 44 dias sobre a data de emissão de cada uma delas, até efectivo e integral pagamento.

Inconformada e visando a sua absolvição parcial do pedido, a Ré interpôs recurso de apelação formulando as seguintes conclusões:

1ª – À luz dos art.ºs 2º do Código Cooperativo e do Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação, deve aplicar-se in casu a taxa de juros civis do art.º 559º do Código Civil e não a taxa de juros comerciais do parágrafo 3º do art.º 102º do Código Comercial, porquanto a recorrente não é uma sociedade comercial, não faz do comércio profissão e desenvolve a sua actividade sem escopo lucrativo.

2ª – A sentença sob censura violou tais normativos legais, devendo ser alterada, determinando-se a aplicação da taxa de juros civis, actualmente de 4 %, do art.º 559º do Código Civil, à situação vertente.

A A. não respondeu à alegação da recorrente.

            Ante as referidas conclusões, o recurso tem assim por objecto a questão de saber quais os juros moratórios devidos (civis ou comerciais) [art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, na redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8].


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) A A. dedica-se a todo o tipo de trabalhos para construção civil e afins. (A)

b) No âmbito desta actividade, A. e Ré celebraram, juntamente com a “Cooperativa de Habitação Económica T (...), CRL”, e a “Cooperativa de Construção e Habitação M (...), CRL”, um contrato de empreitada para execução de todos os trabalhos de infra-estruturas exteriores (limpeza do terreno, estabelecimento de rasantes, implantação de lancis, caixas de visita, colectores pluviais e domésticos, pavimentação de arruamentos e estacionamentos, rede de águas e esgotos, de electricidade, de telefones, arranjos exteriores e obras de urbanização) da urbanização “ E (...)”, em Coimbra. (B)

c) Os valores acordados pelas partes, para execução destes trabalhos, foram os que constam do contrato de empreitada celebrado em 05.6.1996, subscrito pelos representantes da A. e da Ré, e bem assim pelos demais intervenientes supra identificados, aludidos no documento de fls. 9 a 11, que aqui se dá por integralmente reproduzido. (C)

d) Acordaram igualmente as partes que os trabalhos seriam facturados de acordo com os sucessivos autos de medição, que iam sendo efectuados de acordo com a evolução da obra. (D)

e) Sendo que aos valores unitários executados acresceria o IVA à taxa legal de 5 %, conforme resulta do Contrato de Empreitada, o que a Ré aceitou no que a si dizia respeito. (E)

f) A A. emitiu e enviou à Ré as seguintes facturas:

- Factura n.º 4847, de 30.11.1999, no valor de (Esc. 603.253$00) €3 009,01;

- Factura n.º 4899, de 31.01.2000, no valor de (Esc.1.414.279$00) € 7 054,39;

- Factura n.º 4921, de 29.02.2000, no valor de (Esc.427.299$00) € 2 131,36;

- Factura n.º 4925, de 29.02.2000, no valor de (Esc.330.000$00) € 1 646,03;

- Factura n.º 4985, de 15.5.2000, no valor de (Esc.448.010$00) € 2 234,67;

- Factura n.º 4989, de 15.5.2000, no valor de (Esc.314.675$00) € 1 569,60;

- Factura n.º 4995, de 30.5.2000, no valor de (Esc.1.282.384$00) € 6 396,50;

- Factura n.º 5461, de 29.10.2001, no valor de (Esc.2.555.822$00) € 12 748,39;

- Factura n.º 5465, de 29.10.2001, no valor de (Esc.420.406$00) € 2 096,98;

- Factura n.º 5468, de 29.10.2001, no valor de (Esc.973.364$00) € 4 855,12;

num total de € 43.742,05, referentes aos trabalhos melhor descritos a fls. 12 a 39, que aqui se dão por reproduzidos. (F)

g) A Ré não procedeu à devolução das facturas acima aludidas, nem delas reclamou, quer quanto aos preços, quer quanto às medições delas constantes. (G)

h) Não obstante ter sido várias vezes instada pela A. a proceder ao pagamento dos valores acima aludidos, a Ré não pagou, até ao presente, as facturas em apreço. (H)

i) A A. emitiu a favor da Ré as Notas de Crédito de fls. 40 e 41, no valor global de € 926,88 (novecentos e vinte e seis euros e oitenta e oito cêntimos), relativas a correcções dos Autos de Medição. (I)

j) A A. intentou contra a Ré, em 29.5.2009, uma Acção Ordinária que foi autuada sob o nº. 733/09.6TBCDR, e que correu termos pela 1ª Secção da Vara Mista deste tribunal, na qual a A. pedia que a Ré fosse condenada no pagamento do capital acima aludido e da totalidade dos juros de mora, contados desde as datas de vencimentos das facturas acima aludidas. (J)

k) Por requerimento que deu entrada em 30.6.2009, a A. veio desistir da instância em tal acção. (K)

l) No âmbito do acordo aludido em II. 1. b), acordaram ainda a A. e a Ré que as facturas a emitir pela primeira seriam pagas até 44 dias após a aprovação pela Fiscalização dos autos de medição mensais. (resposta ao art.º 1º)

m) À medida em que as obras foram decorrendo, os autos de medição, no que à Ré diz respeito, foram efectuados, conforme iam evoluindo os trabalhos, sempre na presença de pelo menos um elemento pertencente à Cooperativa, ora Ré. (2º)

n) Só após a aprovação dos referidos autos de medição pela fiscalização nomeada pela Ré é que a A. ia emitindo as facturas. (3º)

o) A Ré, ao longo dos anos, foi propondo à A. formas de pagamento do capital e juros de mora. (resposta ao art.º 6º)

p) A Ré foi citada para a acção aludida em II. 1. j) em 04.6.2009. (7º)

q) No âmbito da referida acção, a Ré propôs à A. o pagamento. (resposta ao art.º 8º)

r) Esta proposta foi aceite pela A., motivo pelo qual desistiu da instância nos termos aludidos em II. 1. k). (9º)

s) As notas de crédito aludidas em II. 1. i) não se reportam a nenhumas das facturas identificadas em II. 1. f), reportando-se a fornecimentos anteriores, e já foram descontadas à dívida, num recibo de 20.6.2005. (resposta ao art.º 10º)

t) A obra a que se alude nos factos provados sofreu um incremento de custos relevante, de valor não concretamente apurado. (resposta ao art.º 11º)

u) Ainda se encontra por executar a construção de 63 garagens numa Urbanização V (...) de que é proprietária a Ré. (resposta ao art.º 13º)

2. No caso em análise nenhuma dúvida subsiste quanto à circunstância de as partes haverem celebrado um contrato de empreitada e se encontrar em dívida a importância do preço supra referida, questionando-se, apenas, os juros moratórios devidos pelo atraso no pagamento do preço.

A A. considera que a Ré é uma pessoa colectiva de direito privado, que os contratos que esta celebra são comerciais e que os juros de mora a aplicar no caso vertente são os devidos para as operações comerciais entre empresas (cf. itens 31º a 33º, da réplica), enquanto a Ré/recorrente propugna a aplicação da taxa de juros civis, invocando, designadamente, os art.ºs 2º do Código Cooperativo, 2º do Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação e 3º dos respectivos Estatutos, que não é uma sociedade mas uma entidade cooperativa sem fins económicos, e que não faz do comércio profissão, pelo que o contrato em apreço não foi celebrado entre entidades empresariais.

O Tribunal recorrido, pronunciando-se sobre a matéria, discorreu e concluiu da seguinte forma: “Sendo como é o acto em causa – realização de uma empreitada entre entidades empresariais – um acto objectiva e subjectivamente comercial, cremos que não pode subsistir qualquer legítima dúvida sobre serem efectivamente devidos juros à taxa comercial.”

3. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido (art.º 804, do Código Civil/CC).

Na obrigação pecuniária a indemnização (pela mora) corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (art.º 806º, n.º1, do CC).

Os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são os fixados em portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano. A estipulação de juros a taxa superior (…) deve ser feita por escrito, sob pena de serem apenas devidos na medida dos juros legais (art.º 559º, do CC, na redacção introduzida pelo DL n.º 200-C/1980, de 24.6).

4. Vem de há muito a preocupação de atalhar ao fenómeno da erosão monetária e a ideia de que a actualização da taxa de juro legal constituirá um relevante elemento dissuasor de uma litigância excessiva, entendimento que presidiu a alguma das alterações introduzidas, no Código Civil e no Código Comercial, pelo DL n.º 200-C/1980, de 24.6 (cf. o preâmbulo do referido DL).

Ao art.º 559º, do CC, foi então conferida a redacção supra referida – remetendo a fixação da taxa de juro para diploma legal avulso – e, por uma evidente razão de coerência legislativa, foram ainda alterados os art.ºs 1146º, do CC, e 102.º, do Código Comercial, passando o § 2.º, deste art.º, a ter a seguinte redacção: “Aplica-se aos juros comerciais o disposto nos artigos 559.º e 1146.º do Código Civil.”

E no prosseguimento desse mesmo desiderato surgiram novos diplomas, entre os quais, o DL n.º 262/83, de 16.6, que alterou, nomeadamente, o art.º 102º, do Código Comercial, na forma seguinte:

- (…)

- § 2.º Aplica-se aos juros comerciais o disposto nos artigos 559.º, 559.º-A e 1146.º do Código Civil[2].

- § 3.º Poderá ser fixada por portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano uma taxa supletiva de juros moratórios relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas.

Por último, o DL n.º 32/2003, de 17.02, veio estabelecer o regime especial relativo aos atrasos de pagamento em todas as transacções comerciais, transpondo a Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29.6, alterando, entre outros, o art.º 102º, do Código Comercial.

Considerando-se, designadamente, a circunstância (contemporânea e actual) de recaírem sobre as empresas, particularmente as de pequena e média dimensão, encargos administrativos e financeiros em resultado de atrasos de pagamento e prazos excessivamente longos - uma das principais causas de insolvência dessas empresas, ameaçando a sua sobrevivência e os postos de trabalho correspondentes – e o propósito, claramente expresso na citada Directiva, de lutar contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais, independentemente de terem sido estabelecidas entre pessoas colectivas privadas (a estas se equiparando os profissionais liberais) ou públicas, ou entre empresas e entidades públicas (tendo em conta que estas últimas procedem a um considerável volume de pagamentos às empresas), foi estabelecido, designadamente:


Artigo 2.º (Âmbito de aplicação)

1 - O presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais[3].

2 - São excluídos da sua aplicação:

a) Os contratos celebrados com consumidores;

b) Os juros relativos a outros pagamentos que não os efectuados para remunerar transacções comerciais;

c) Os pagamentos efectuados a título de indemnização por responsabilidade civil, incluindo os efectuados por companhias de seguros.[4]


Artigo 3.º (Definições)

Para efeitos do presente diploma, entende-se por:

a) «Transacção comercial» qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração;

b) «Empresa» qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular;


Artigo 6.º (Alteração ao Código Comercial)

O artigo 102º do Código Comercial passa a ter a seguinte redacção:


«Artigo 102º

 [...] Há lugar ao decurso e contagem de juros em todos os actos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se e nos mais casos especiais fixados no presente Código.

§ 1.º ...

§ 2.º Aplica-se aos juros comerciais o disposto nos artigos 559º-A e 1146º do Código Civil.

§ 3.º Os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça.

§ 4.º A taxa de juro referida no parágrafo anterior não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efectuada antes do 1.º dia de Janeiro ou Julho, consoante se esteja, respectivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de 7 pontos percentuais.»

5. Estabelece o art.º 2º do Código Cooperativo (aprovado pela Lei n.º 51/96, de 07.9) que as cooperativas são pessoas colectivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles (n.º 1). As cooperativas, na prossecução dos seus objectivos, podem realizar operações com terceiros, sem prejuízo de eventuais limites fixados pelas leis próprias de cada ramo (n.º 2).

O sector cooperativo compreende, entre outros, o ramo da habitação e construção (art.º 4º, n.º 1, alínea e)).

            É nula a transformação de uma cooperativa em qualquer tipo de sociedade comercial, sendo também feridos de nulidade os actos que procurem contrariar ou iludir esta proibição legal (art.º 80º).

6. A par do reconhecimento do direito à livre constituição de cooperativas, consagrado no art.º 61º, a Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu art.º 65º [n.º 2, alínea d)], comete ao Estado o fomento da criação de cooperativas de habitação – forma de resolução do problema habitacional, de que se socorreu uma boa parte da sociedade portuguesa.

Impondo-se dotar o regime jurídico das cooperativas de habitação e construção de mecanismos que respondam às preocupações que envolvem a sua actividade, como sejam a participação associativa e a transparência na sua organização empresarial[5], o DL n.º 502/99, de 19.11, veio definir o actual regime jurídico das cooperativas de habitação e construção, dando-nos, no art.º 2º, a seguinte “noção”: “São cooperativas de habitação e construção as que tenham por objecto principal a promoção, construção ou aquisição de fogos para habitação dos seus membros, bem como a sua manutenção, reparação ou remodelação (n.º 1); Constitui igualmente objectivo das cooperativas de habitação e construção contribuir para a melhoria da qualidade habitacional dos espaços em que se integram, promovendo o tratamento das áreas envolventes dos empreendimentos por que são responsáveis, incluindo as zonas de lazer, e assegurando a manutenção permanente das boas condições de habitabilidade dos edifícios (n.º 2).

Ademais, o Estado está obrigado a estimular e a apoiar a criação de cooperativas, bem como a sua actividade (art.º 85º, n.º 1, da CRP) e cabe à lei definir os benefícios fiscais e financeiros das cooperativas, bem como o estabelecimento de condições privilegiadas em matéria de acesso ao crédito e ao auxílio técnico, verificando-se, assim, uma clara situação de discriminação positiva do sector cooperativo em relação a outros sectores, designadamente o sector privado.[6]

7. Perante o factualismo descrito em II. 1., supra, e o apontado enquadramento jurídico, e embora se considere que a problemática em apreciação não é isenta de dificuldades, afigura-se, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que o recurso deverá proceder.

Atendendo aos Estatutos da Ré/recorrente, verificamos que se trata de uma cooperativa regida pelo Código Cooperativo e pelo DL n.º 502/99, de 19.11.

É do ramo da habitação e construção e tem como “objectivos”: a) A promoção da habitação cooperativa, segundo a modalidade de acesso à propriedade individual por amortização da casa; b) O fomento da cultura, em geral, e em especial, dos princípios e prática do cooperativismo; c) A organização dos serviços de interesse colectivo, designadamente postos de abastecimento, lavandarias, serviços colectivos de limpeza e arranjos domésticos, guarda de crianças, salas de estudo para os filhos dos cooperadores, salas e campos de jogos ou outros serviços locais de promoção sociocultural.

Para melhor prossecução dos seus objectivos, poderá colaborar com outras instituições similares que se proponham promover as realizações de interesse comum, bem como estabelecer acordos com contactos com outras cooperativas (…).

E prevê-se como nula a (eventual) transformação da Cooperativa em qualquer tipo de sociedade comercial, sendo também feridos de nulidade os actos que procurem contrariar esta proibição legal [cf. art.ºs 1º, 3º, 45º e 46º, n.º 2, dos respectivos Estatutos, publicados no DR, III Série, de 30.7.2003/fls. 176].

Atenta a noção de cooperativa aludida em II. 1. 5., supra, pensamos que é correcto concluir, por um lado, que as cooperativas não têm escopo lucrativo e que também a Ré desenvolve a sua actividade tendo como principal objecto/finalidade a satisfação dos interesses dos respectivos cooperadores (a satisfação das necessidades dos seus membros, a cooperação e a entreajuda dos seus membros), e não a obtenção e distribuição de lucros, e, por outro lado, quer se considere que a empresa em sentido objectivo é a unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui um instrumento de exercício relativamente estável e autónomo de uma actividade de produção para a troca[7], quer se veja o estabelecimento comercial ou industrial/empresa como uma organização concreta de factores produtivos como valor de posição no mercado[8], uma cooperativa que prossiga a actividade que a Ré desenvolve (e deverá desenvolver) dificilmente poderá ser qualificada como uma empresa no sentido e contexto do mercado e da actividade económica nele desenvolvida, ainda que a lei lhe atribua essa qualidade sob o ponto de vista organizacional e/ou, sobretudo, para efeitos contabilísticos e fiscais.[9]

8. Se o que fica dito vai no sentido da solução defendida pela recorrente, cremos que, do regime jurídico instituído pelo DL n.º 32/2003, de 17.02, se retiram novos e decisivos elementos no sentido de que o legislador, nas sucessivas alterações que tem vindo a introduzir ao art.º 102º, do Código Comercial, e regulamentação conexa, tem demonstrado o intuito de abranger, apenas, as verdadeiras empresas comerciais, ou seja, as que efectivamente praticam actos de comércio e não aquelas às quais nega a qualidade de comerciais ou comerciantes.

Na verdade, vendo de perto a disciplina instituída por este diploma legal, verificamos que se aplica a todos os pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais e exclui da sua aplicação, designadamente, os contratos celebrados com consumidores [10] [art.º 2º, n.ºs 1 e 2, alínea a)].

Por outro lado, para efeitos do mesmo diploma, entende-se por «Transacção comercial» qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas[11], qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração, integrando-se no conceito de «Empresa» qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular (art.º 3º).

Acresce que, ainda que se considere estarmos perante um contrato de natureza comercial[12], a Ré interveio na estrita prossecução do interesse comum dos cooperadores, os quais são, em bom rigor, os verdadeiros interessados na aquisição dos bens imóveis da dita urbanização “ E (...)” destinados à respectiva habitação.[13]

Neste enquadramento, e reafirmando-se o devido respeito por entendimento em contrário, conclui-se que a taxa de juros moratórios relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais não é aplicável às cooperativas, quer surjam na qualidade de entidade credora[14], quer na de entidade devedora e, como tal, sendo a Ré uma mera cooperativa do ramo da habitação e construção, e não uma entidade empresarial, não está obrigada ao pagamento dos juros comerciais reclamados, devendo pagar os juros civis moratórios fixados pelas Portarias n.ºs 263/99, de 12.4 e 291/2003, de 08.4, ou seja, até 30.4.2003, à taxa de 7 % ao ano e, a partir de 01.5.2003, à taxa de 4 % ao ano (e taxas que venham a vigorar) até integral pagamento.


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III. Pelo exposto, acorda-se em dar provimento ao recurso e em revogar a decisão impugnada na parte em que condenou a Ré a pagar juros moratórios às taxas de juros comerciais, ficando a Ré condenada a pagar à A. os juros civis moratórios, até 30.4.2003, à taxa de 7 % ao ano e, a partir de 01.5.2003, à taxa de 4 % ao ano (e demais  taxas aplicáveis) até integral pagamento.
      Custas da apelação pela A..                                           

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Fonte Ramos ( Relator )

Carlos Querido

Virgílio Mateus



[1] Referidas em II. 1. alínea f), infra.
[2] O DL n.º 262/83, de 16.6, introduziu o art.º 559º-A e alterou o art.º 1146º, dando-lhes a seguinte redacção:

Artigo 559º-A (Juros usurários)
 É aplicável o disposto no artigo 1146º a toda a estipulação de juros ou quaisquer outras vantagens em negócios ou actos de concessão, outorga, renovação, desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito e em outros análogos.
Artigo 1146.º (Usura)
 É havido como usurário o contrato de mútuo em que sejam estipulados juros anuais que excedam os juros legais, acrescidos de 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia real (n.º 1).
É havida também como usurária a cláusula penal que fixar como indemnização devida pela falta de restituição de empréstimo relativamente ao tempo de mora mais do que o correspondente a 7% ou a 9% acima dos juros legais, conforme exista ou não garantia real (n.º 2).
Se a taxa de juros estipulada ou o montante da indemnização exceder o máximo fixado nos números precedentes, considera-se reduzido a esses máximos, ainda que seja outra a vontade dos contraentes (n.º 3).
[3] Itálico nosso, tal como os demais a incluir nos normativos a seguir indicados.

[4] Consta do ponto 13 dos “considerandos” da mencionada Directiva: “(13) A presente directiva limita-se aos pagamentos efectuados para remunerar transacções comerciais e não regulamenta as transacções com os consumidores, os juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efectuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou os pagamentos efectuados a título de indemnização por perdas e danos, incluindo os efectuados por companhias de seguro.”

[5] Neste sentido, afirma-se no preâmbulo - e prevê o art.º 11º - do DL n.º 502/99, de 19.11, “vão (…) a obrigatoriedade de certificação legal de contas a partir da verificação de determinados requisitos”.
[6] Vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 1010.
[7] Vide J. M. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. I, Almedina, 1998, págs. 242 e seguinte.
[8] Cf. Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, colecção Perspectiva Jurídica/Universidade, Coimbra 1977, pág. 196 – nota.
[9] Cf. “nota 5”, supra.
[10] Sobre as implicações decorrentes desta estatuição, mas em sentido divergente, cf., entre outros, o acórdão da RP de 06.10.2008-processo 0854446 [Com o DL n.º 32/2003 de 17 de Fevereiro, o campo de aplicação do art. 102.º do C. Comercial sofreu uma significativa limitação na medida em que este veio excluir do regime especial dos juros de mora pelos atrasos nos pagamentos os contratos celebrados com os consumidores.] e os acórdãos da RC de 06.7.2010-processo 3458/08.6TJCBR.C1 e de 19.10.2010-processo 286652/08.0YIPRT.C1 [refere-se nos “sumários” dos referidos arestos, respectivamente: A exclusão dos contratos celebrados com consumidores do âmbito de aplicação do decreto-lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro significa que as transacções com os consumidores ficam sujeitas às regras gerais, nomeadamente as que regem os actos comerciais unilaterais (artigo 99º do Código Comercial), se outras regras não prevalecerem, como sucede, nomeadamente, no domínio do comércio bancário, no que tange a taxa de juro das operações activas; O Dec. Lei nº 32/2003, de 17/12, não tem por finalidade disciplinar e exclui do seu âmbito as transacções comerciais com consumidores, continuando a ser aplicável aos actos de comércio unilaterais, previstos no art.º 99º do Código Comercial, mesmo que o devedor seja consumidor, a taxa aplicável aos créditos comerciais decorrente do art.º 102º, § 3º, do mesmo diploma, ressalvando os casos em que deva concluir-se pela natureza civil do negócio], publicados no “site” da dgsi.
[11] Interpretando este normativo, cf. o citado acórdão desta Relação de 06.7.2010-processo 3458/08.6TJCBR.C1, no qual se refere, designadamente: “Em transposição da mencionada directiva, o decreto-lei nº 32/2003, excluiu do seu âmbito de aplicação os contratos celebrados com consumidores (artigo 2º, nº 2, alínea a), do diploma que se acaba de citar) e criou um conceito autónomo de transacção comercial (veja-se o artigo 3º, alínea a), do citado decreto-lei), conceito que requer uma comercialidade bilateral, rectius uma “empresarialidade” bilateral.” (sublinhado nosso)
[12] Vide, a propósito, Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, 2ª edição (4ª reimpressão), Almedina, 2010, pág. 324.
[13] Cf., com interesse, o acórdão do STJ de 28.5.1996 (in CJ-STJ, IV, 2, 88), proferido no domínio do Código Cooperativo aprovado pelo DL n.º 454/80, de 09.10, e que, reportando-se a uma cooperativa com objecto idêntico ao da recorrente, considerou que “tal objecto e ramo nada têm a ver com a prática profissional de actos de comércio” e que “a edificação e construção de fogos se destina não para outrem mas antes e unicamente para o seu elemento subjectivo, isto é, para os seus próprios membros”.
    De resto, neste mesmo aresto, à semelhança da posição sufragada pelo acórdão do STJ de 26.9.1995-processo 087560 (publicado no site da dgsi, na CJ-STJ, III, 3, 30 e no BMJ, 449º, 299), considerou-se que uma cooperativa não era sociedade comercial e só era comerciante quando fizesse do comércio profissão.
[14] Vide F. Correia das Neves, Manual dos Juros, Almedina, 1989, pág. 117.